sexta-feira, 5 de maio de 2023

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI uma última vez. Percorri o corredor antisséptico iluminado com um branco intenso e virei a direita para encontrar com meu pai. Lá estava ele, deitado, imóvel, com a boca ligeiramente aberta e a cabeça um pouco inclinada para trás. Em sua flagrante impermanência, fiz um esforço para tentar enxergar alguma beleza por trás daqueles tubos e daquela expressão vazia. 


Era meu velho pai, um homem cuja vida chegara ao fim. Então me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta, não sei se porque eu preferia assim, diante da gravidade de seu quadro, ou porque ele já estava imerso em uma letargia guiada por remédios contra as dores que sentia. Ele ofegava ligeiro, numa dificultosa respiração. Olhei para seu rosto e reparei que as rugas da testa estavam relaxadas. Isso me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa, daqueles capazes de arrumar briga no trânsito de rolar pela calçada agarrado com quem fosse que o houvesse fechado, enquanto pelos vidros do carro, a família assistia apavorada a grotesca briga gratuita e completamente aleatória. Ora, mas afinal alguém o havia fechado e esse era o pretexto que ele normalmente apresentava como justificativa para um estranho tipo de busca por violência, dessas que se manifestam tão rapidamente quanto são capazes de desaparecer. E de fato, poucos minutos depois, desaparecia como se algum tipo de êxtase tivesse sido alcançado enquanto suspirávamos de alívio por poder ter nosso pai de volta, inteiro, ao menos aparentemente.

Afeto, dedicação e generosidade eram os principais ingredientes que meu pai utilizava para tratar aqueles que pertenciam ao lado de dentro do perímetro imaginário que constituía uma espécie de condomínio, feito para proteger as pessoas que ele amava. Mas as regras eram claras, era ele quem mandava e os eventuais desmandos recebiam a devida punição. Do lado de fora daquelas paredes imaginárias, ele alegava um mundo ingrato, que aparecia para conspirar contra ele e contra os seus.

A hierarquia clássica da sociedade neoliberal machista regia a estrutura familiar, o que significava que mesmo se ele tivesse chegado à questionável conclusão de que o mundo profissional não era mais digno de sua participação ativa, continuava demandando como se ele fosse o modelo de homem atormentado pelo trabalho braçal, que chega em casa cansado na noitinha e não quer nada mais que seus chinelos, o jornal, um café recém coado e a seu programa favorito na TV.


Mas meu pai às vezes ia para a cozinha e cuidava de preparar algo. Às vezes um “bauru”, em outras produzia montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente preparava a massa recortando-a e recheando-a com pedacinhos de queijo fresco que regava com um pouquinho de orégano. Se alguma visita havia sido convidada e se espantava com os deliciosos pastéis que ele fazia, ele dava um sorriso orgulhoso e respondia: Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio... E com esses chistes, deixava a imaginação da gente à solta, viajando na ideia de como seria a vida de um cozinheiro num grande cargueiro que navegava os oceanos com todo aquele monte de gente... e você responsável por uma cozinha tão imensa que quase não dá para ver a parede do outro lado. 

Eu imaginava como teria sido que alguém solto no mundo, perdido pelos 7 mares, cada vez passando por um porto diferente que nunca havia visitado antes, teria repentinamente largado a vida de homem do mar, da maresia, do sal grudado nos cabelos, do sol impiedoso que queima a pele da nuca, para a monotonia de um lar de classe média paulista, administrando um negócio de recuperação de resíduos de fábricas de torneiras e sifões.

Se ele de fato havia um dia trabalhado no navio, ou apenas contava essas estórias para inconscientemente, manifestar onde ele de fato gostaria de estar e o que gostaria de fazer, não vinha ao caso. O interessante é que naquelas estórias do “tempo do navio”, estavam contadas verdades que só viviam em seu mais profundo ser. Histórias de um tempo fictício, de um desejo distante que ele nunca deixava de revelar, e sem notar, escancarava uma vida vivida de maneira tão disfarçada quanto explícita.

Alguns dias antes de ele piorar e terminar naquela enfermaria de UTI, eu o conduzi de cadeira de rodas até meu carro. Enquanto empurrava a cadeira pela calçada, disse para ele que o amava. Aproveitei para dizer que também que o perdoava, e completei que não iria explicar os motivos de eu o estava perdoando, porque ele sabia muito bem. Talvez ele tentasse se justificar de alguma maneira. Talvez ele tivesse até a razão mas meu coração precisava perdoá-lo e foi isso que eu fiz. Para mim foi um alívio muito grande, eu já havia passado dos 50 anos e havia carregado dentro do meu coração, um peso que naquela hora, o larguei em algum ponto entre a sarjeta e a calçada. Provavelmente a próxima chuva o arrastou peso para dentro do bueiro e de lá para as águas do oceano onde dissolveu-se para sempre. Ele então me olhou nos olhos e falou como há muito não fazia: 

— Tenho medo de cair.

Fiquei surpreso e orgulhoso pois era a primeira vez em toda a minha vida que meu pai manifestava na minha presença, sentir medo de alguma coisa. Para mim isso era uma conquista porque quebrava o paradigma da imagem indestrutível, que tanto ele havia se esforçado para manter inabalável ao longo de sua vida.

Dentro do carro ajudei-o a colocar o cinto de segurança, peguei a avenida principal, abri todos os vidros naquela tarde de calor e liguei o som com a música “Sapore di sale”. Agarrei a mão de meu pai pela primeira vez depois de muito tempo e fomos curtindo a música, a brisa da tarde e o calor do sol em nossos rostos.

Finalmente, e pela última vez, segurando sua mão naquela cama de UTI, eu disse a ele:

— Pai, um ônibus vai vir te buscar. Quando ele chegar você pode descer da cama e entrar, ele vai te levar embora desse hospital. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, na beira do mar e lá no final da linha, vai estar o Fernandinho te esperando junto com a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina. Acho que seu pai, o vô Nin também vai estar lá. Vá com eles, vai tranquilo, que eu fico com a mamãe por aqui. Vamos ficar bem... Aí depois a gente se fala. Faça uma boa viagem e obrigado por ter sido meu pai.


Olhei para aquele rosto com suas imperfeições e senti que ao menos por um momento, eu havia conseguido encontrar uma forma de beleza traduzida na transitoriedade daquela vida que se transformava em uma simplicidade inigualável, um retorno ao inanimado, um estado fundamental, tão simples, algo rústico, porém magnificamente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eu consegui fazer pastéis tão gostosos eu respondo: Eu aprendi a fazer há muito tempo atrás, quando eu trabalhava no navio. 


Reencontrando amigos do Samiar

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