| Cemitério Israelita do Butantã - um lindo lugar. |
Uma torneirinha de escape para o maravilhoso e o aterrorizante do dia a dia de um cidadão do mundo, pai, voador, empresário, psicanalista, que gosta demais de escrever. Silvio Ambrosini é conhecido pelos amigos como Sivuca, é autor dos livros publicados "Ventomania - Uma Vida Voando" e "Voando de Parapente" A venda em https://ventomania.com.br. Aproveite para visitar meu instagram em @sivukus
| Cemitério Israelita do Butantã - um lindo lugar. |
Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabéns menino! Vejo que sabes gritar… Ah, é um direito meu, sabe? Conquistado recentemente — é verdade. Precisei de um irmão morto para conseguir chorar esse choro pela primeira vez… agora não foi tanto assim, bastou um fora do namorado. Não que seja pouca coisa, é um pedaço de mim que se foi, ficou aberto um buraco, bem aqui ó… encostado no coração. E entreguei pra ele minha aflição, preocupado eu, que sou bobo.
Ele saiu para o retiro de meditação, já passou uma semana, mandei mensagem… “se quiser eu vou te buscar, viu?” nem tchuns… quando será que ele volta? Devem ser mais dias né? Fui olhar… volta domingo, ainda faltam três dias. Será que ele está deprimido? Ah, eu acho que eu ia ficar, sabe? Deprimido por ficar em silêncio tanto tempo naquele retiro. O lugar é lindo, em Santana do Parnaíba, no meio do mato… muitas árvores, deve ter até uns macaquinhos.Mas eu acho que não estou em momento de silêncio.. ao contrário, estou pra falar! Preciso falar muito, contar por aí as coisas que eu tenho direito, como chorar por exemplo. Parece pouco, mas não é. Chorar, que deveria ser um direito de todos, não era um direito muito meuo. Tanto é que naquele primeiro choro, precisou morrer meu irmão… ah, minto… tiveram os choros de bebê, que eram muitos, conta minha mãe... e depois, de moleque, nos meus primeiros choros, levava bronca dela: “FALA QUENEM HOMEM!”, afinal onde ja se viu homem falar assim chorando?
“Esse menino tem a pomba gira”, disse pra ela um dia, uma mulher das macumbas… então me mandou para o Karatê. Assim quem sabe não para com essas choramingas?
Segui valente, faixa branca, azul, amarela, verde, marrom.. primeiro grau, segundo grau, terceiro grau!! Só faltava mais uma pra me tornar um faixa preta de Karatê! Mas era tanto chute na orelha, soco na barriga… Até que eu estava indo bem, era um Karateca! E tinha minha faixa marrom com as três listrinhas, era coisa de respeito para um cara de 13 anos em 1978.
Tinha aprendido uns golpes, daqueles que encerram a luta ali mesmo. Os caras ficam te manjando, os faixa azul te veneram, os amarelos respeitam, os verdes invejam, os outros marrons admiram e os brancos.. bem, eles não entenderam bem o que aconteceu. E eu voltava pra casa destilando triunfo com ódio.
Então chegou um fim de semana que fomos para a praia e uns moleques resolveram mexer com minhas primas e minha irmã: Ficaram falando umas besteiras, fazendo uns gestos obscenos, apertando o saco. Eu fui lá tirar satisfação, me aproximei do mais invocado e mandei um giro lateral só pra mostrar quem eu era, mas o giro passou longe e eu nem tinha terminado de baixar a perna, quando ele chutou meu saco. Desabei pro chão na hora e fiquei ali me contorcendo. É difícil, descrever a dor. Parece que o mundo inteiro foi pro saco.
Não me lembro nem como cheguei em casa, de repente eu estava dentro do chuveiro quente chorando com as lágrimas misturando com a água do chuveiro que escorria e ia embora pelo ralo. Minha avó me abraçou com a toalha… Então contei que tinha arrumado briga com os moleques da rua e um deles tinha me chutado. Chorei dolorido nos braços de minha avó e acho que porque ela não fez mais nenhuma pergunta e ficou lá em silêncio só me segurando até eu me acalmar, eu me senti melhor depois disso, bem melhor.
Quando morreu meu irmão, foi horrível. Eu passei 24 horas ou mais cuidando de tudo, necrotério, doação de órgãos, caixão, flores, autópsia, crematório, música, discurso… ficou tudo pra mim. A família entorpecida num canto, lambendo a ferida aberta e eu não podia chorar, tava muito ocupado. Só depois que tudo terminou e eu voltei pra casa, pude deitar na minha cama e pensar em tudo aquilo. Então chorei, berrei muito, num choro longo, soluçante, desorganizado e muito dolorido.
Houveram outros choros pequenos, as mortes dos cães, alguns amigos… Só voltei a chorar mais quando terminou meu casamento, mas dei um jeito de chorar enquanto pedalava minha bicicleta. Fiz até uma playlist pra organizar minha fossa. Acho sim, que eu estava ainda, inserido nos tempos dos choros proibidos.
Mas ontem foi diferente, percebi que chorava não só por ter ficado sem namorado, pelo sonho de que um dia o namoro retome, aflito por ele poder estar triste enfiado lá naquele retiro onde é proibido falar. Acho que foi isso que me motivou mais, fiquei me imaginando proibido de falar e também proibido de chorar e aí o choro veio. Proibido de chorar é o escambau, olha como eu choro o quanto eu quiser. Acho que foi assim. Abraçado no travesseiro, chorei tanto que fiquei com o nariz entupido, quase não conseguia respirar. Levantei da cama e fui ao banheiro. Então abri o chuveiro e fiquei lá um tempão olhando as lágrimas misturando com a água que escorria e ia embora pelo ralo... Aquilo foi bom.
Voltei pra cama mais organizado e dormi profundamente.
Hoje acordei leve e me lembrei de como foi libertador poder chorar. O choro sem vergonha é um som bonito que um homem pode fazer.
E eu chorei, como há tempos não chorava.
Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e virei a direita para encontrar com meu pai.
Lá estava ele, deitado, imóvel, a boca ligeiramente aberta, a cabeça um pouco inclinada para trás. Tentei, com algum esforço, enxergar alguma beleza por trás dos tubos e daquela expressão vazia.
Era meu velho pai, um homem cuja vida se aproximava do fim. Me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta — não sei se por causa dos remédios, ou porque, secretamente eu preferia assim, diante do que já parecia inevitável. Observei seu rosto. As rugas da testa estavam relaxadas. Isso, de alguma forma me tranquilizou.
Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa. Era capaz de arrumar briga no trânsito, de rolar pela calçada agarrado ao sujeito que o fechasse no carro, enquanto a família assistia apavorada pela janela, torcendo para que saíssemos inteiros daquela cena grotesca e absurda. Mas minutos depois, ele voltava ao normal, como se um estranho êxtase o tivesse invadido — e a gente, aliviado, tinha nosso pai de volta, ao menos por um tempo.
Dentro da família, seu afeto e dedicação eram indiscutíveis — mas seguiam regras claras. Ele mandava. Do lado de fora desse perímetro imaginário que ele criou para proteger os seus, o mundo era um lugar ingrato, sempre pronto a conspirar contra ele e contra nós.
A velha cartilha masculina, a hierarquia clássica, regia nossa casa. Mesmo quando já não participava ativamente do trabalho, ele ainda encenava o papel do homem cansado, que chega em casa e só quer o jornal, o café e a televisão.
Ele me olhou nos olhos com sua voz enrolada disse, pela primeira vez e única vez que eu iria escutar aquilo:
— Tenho medo de cair.
Então aquele homem inabalável, admitiu um medo diante de seu filho, aquele mesmo filho para quem ele só podia mostrar força. Senti que isso tinha sido uma grande conquista. Quebrava-se ali, no calor do sol do fim de tarde, o mito da invencibilidade que ele tanto se dedicou a cultivar.
Dentro do carro, ajeitei o cinto nele, abri os vidros naquela tarde de calor e liguei o som: Sapore di sale. Segurei sua mão pela primeira vez em muito tempo. Viajamos juntos, curtindo a música, o vento e o sol no rosto.
Na UTI, já no fim, segurei sua mão e disse:
— Pai, presta atenção: Um ônibus vem te buscar. Quando ele chegar, você pode ir. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, beira-mar… Lá no final, o Fernandinho, a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina vão estar te esperando. Acho que o vô Nin também. Vá tranquilo. Eu fico por aqui com a mamãe. Depois a gente se fala. Boa viagem.
Olhei para as curvas e rugas de seu rosto e pela primeira vez, encontrei ali uma forma de beleza — uma simplicidade verdadeira, fundamental, tão simples, algo rústico, porém surpreendentemente belo.A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória. Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eles ficam tão bons, eu respondo sorrindo:
— Eu aprendi no tempo que eu trabalhava no navio.
Naquele dia fui até a janela do quarto com minha filha Sol, munido de um par de panelas e colheres de pau. Foi dia de panelaço. Juntos, batemos aquelas panelas, gritamos e rimos muito, por um bom tempo enquanto revezávamos o samba com os vizinhos que se manifestavam em peso. Depois, levei-a para a cama e contei uma história. Então ela me perguntou por que afinal tínhamos batido as panelas. Eu expliquei que fazer barulho daquele jeito é uma maneira de lembrar às pessoas que nós também existimos, que não somos apenas sombras numa janela, que somos gente como qualquer outra gente, que somos uma família, que se ama e tem o direito de ser feliz.
Elis Regina disse que "há perigo na esquina", então é preciso estar atento e quando percebermos que nossos direitos estão sendo atacados, devemos abrir a boca, bater panelas e protestar contra os perigos enquanto podemos.
Ela sorri, diz que ama, diz boa noite, dou-lhe um longo beijo e a cubro com os lençóis.
A cumplicidade dela é peculiar, a relação com minha filha vai além de pai e filha. Não sou nada autoritário, o que às vezes termina me fazendo parecer que temos a mesma idade. Então juntos, nos divertimos e aprontamos travessuras. Ela parece ter um pedacinho de meu irmão morto, agora vivo, aqui perto de mim, um pouco como reencarnação, se eu acreditasse nisso, apesar de achar a ideia eletrizante.
Uma vez li um texto interessante (e viajante) que, por trás de nossa aparência física, existe uma espécie de corpo inorgânico. Essa deliciosa teoria conta que esse ser inorgânico é algo como um “casulo luminoso”. O casulo é a essência daquilo que somos feitos, algumas pessoas podem chamar isso de “alma”. Esse tal casulo é, ou ao menos deveria ser, perfeito. Mas então, quando nos tornamos pais, involuntariamente cedemos um pedaço do casulo para ajudar na construção de nossos filhos. No lugar de onde saiu o pedaço, fica um buraco, e por esse buraco, passa um fluxo infinito de amor incondicional. Esse fluxo nos conecta, como que por fios, com nossos filhos. Parte desses fios poderão um dia se romper, mas o buraco permanece e apesar de poder ser disfarçado ou chegar perto de ser reparado, nunca mais desaparecerá. Essa conexão permanece ali para sempre, porque somos pais e para sempre, amaremos nossos filhos, independentemente de que caminhos eles sigam.
Vejo a gotinha tão branquinha
que passava pelo tubo
como bilhete só de ida
pra quem já viu de tudo.
A lágrima da doutora
atrapalha pra achar a veia,
como quem não quer fazer
o que a profissão permeia.
E dormiu um sono pesado,
e com as mãos senti seu corpo
passeei por seus densos pelos,
e vi o medo acelerar seu coração
um pouco de pavor talvez
tentando resistir
batendo pela última vez.
E falamos da vida,
das coisas boas,
dessas que fazem a gente
sentir gosto pela vida,
dessas que fazem a gente
querer se apegar mais,
ao que nos resta dessa vida.
É porque vida é sempre o que te resta,
o que ainda falta pra viver,
porque vida passada só serve pra uma coisa
te ajudar a melhor viver melhor,
essa vida por viver.
E tremeu a orelha dele um pouco,
Doutora! Ele tá vivo!
Não, meu amigo, você não tá louco,
é só uma contração, um último adeus,
pra lembrar que nessa vida de cachorro
é bom você saber,
é preciso ter um dono,
alguém que te respeite
e que cuide de você
até na hora mais difícil,
até na hora de morrer.
Hoje meu bichinho, meu cachorrão, meu lindo, meu Ozzy fechou os olhos tranquilos depois de um monte de carinho.
O Ozzy era um pastor alemão, viveu quase 12 anos. Foi adestrado quando pequeno aprendeu a tomar conta da casa. Quase todos os dias trazia presentes que encontrava pelo jardim. Tomava conta da casa como ninguém. Minha filha Sol passou a vida com ele, deixou muita saudade.
Muito obrigado a dra Bia da Clínica Veterinária e Pet Shop Dra Bia, aqui na Vila Mascote pelo carinho e pelo profissionalismo. +55 11 94202-5804
Em uma floresta distante, vivia uma matilha de lobos havia muitas gerações. Levavam uma vida tranquila, cuidavam da prole e passavam as tardes de verão preguiçosamente à sombra das árvores ou se recolhiam nas cavernas durante o inverno.
Do outro lado do vale, numa fazenda de algodão, vivia um rebanho de carneiros. O dono da fazenda produzia lã e fios de algodão para a fábrica de roupas na periferia da cidade. O algodão brotava dos campos. A lã, dos carneiros.
Naquele tempo, ainda não existiam máquinas colheitadeiras. As mãos humanas faziam o serviço — mãos calejadas, feridas, dedos cortados pelas cápsulas ásperas que protegiam o algodão. Quanto mais algodão se colhia, mais se ganhava. Mas, ainda assim, o pagamento mal dava para encher o prato no jantar. Eram vidas duras, aquelas.
Entre os trabalhadores estava Heinz. Seu nome, que em alemão deriva de Heinrich — "rei" ou "dono do castelo" —, soava como uma ironia amarga. De rei, ele só tinha o nome. Tinha quatro filhos e sua esposa, Helga. Dela, sim, vinha algo da força das mulheres nórdicas, que cuidavam da casa, dos filhos, costuravam, plantavam e sustentavam a vida em meio às dificuldades.
Aos quase quarenta, Heinz já não tinha o vigor dos jovens — o que, na Europa do século XV, significava o prenúncio da velhice.
Pela manhã, cruzava o celeiro a caminho dos campos, passando ao lado do pasto dos carneiros. Observava-os, sempre organizados para a tosquia. A lã era retirada, enviada à fábrica. Depois, os carneiros pastavam tranquilos, confraternizavam, aprendiam, cuidavam uns dos outros.
De tempos em tempos, um deles desaparecia, levado pela floresta. E, por mais que tentassem esquecer, o medo estava sempre ali, pastando junto.
Em casa, mostrou o que havia ganho. Helga, tomada pela frustração, amaldiçoou o marido e o expulsou, indignada. Heinz saiu envergonhado e sentou-se numa pedra do quintal. Olhou para o céu e, num sussurro, pediu ajuda a Deus.
As nuvens do entardecer se abriram. Uma luz intensa iluminou a montanha. Uma voz grave ecoou pelo vale:
— Vejo tua vida, Heinz. Vejo tua miséria, tua fadiga. Se a vida que tens não te serve, posso te transformar em outra criatura. Mas só há duas escolhas: um lobo ou um carneiro. Decide.
Naquela noite, sob o luar, entre os irmãos de matilha, com o gosto quente do sangue ainda nos dentes, Heinz celebrou sua nova existência:
inocente, porém inevitável; trágica, mas bela; cruel, mas deliciosa.
— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?
Ele ri e explica: é diferente, sim. A água da torneira escorre pacífica quando você abre o registro. Já a da cachoeira… pacífica, ela não tem nada. É uma água vivida, sofrida, “batida na pedra”.
— Isso deixa ela especial, sabe? Tá vendo que o gosto é diferente?
Dou outro gole e penso: talvez… está geladinha. É boa.
— Mas como é isso, Seu Beraldo? O que significa “batida na pedra”?
— É assim, rapaz. Pra essa água chegar aqui, dentro dessa caneca que ocê tá bebendo, ela não veio fácil, não. Sofreu todo tipo de ataque. Veio descendo o riacho, batendo nas pedras, enfrentou redemoinho, andou muitos quilômetros, se atirou de vários metros lá de cima, bateu com força no chão cheio de pedra do rio… É água transformada. Por isso, é especial. Precisa sentir o gosto dela… é água batida na pedra.
— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.
— Aproveita, rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa, não. Lá é só água de torneira ou de supermercado. Vou te dar um galão, leva um pouco pra sua casa.
Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...
Eu rio por dentro e, claro, aceito o galão da “água batida na pedra”. Mesmo sabendo que água é tudo água. Ou pelo menos, achava que era.
Anos depois, contratei pessoas trans para o quadro de colaboradores da empresa onde trabalho. E, ao conhecê-las um pouco melhor, lembrei de Seu Beraldo e da água batida na pedra.
Eu já tinha um amigo trans-masculino que trabalha em assistência pessoal e antes de fazer a contratação, perguntei a ele sua opinião. Para minha surpresa, ele me desaconselhou a seguir com o processo seletivo, me explicando que o risco de que tudo aquilo se transformasse em mais sofrimento era grande demais. Mas eu insisti e ele me disse: "aprenda mais sobre as transsexualidades, o mais que você puder. Se nada daquilo te assusta, então siga com teu projeto, mas seja especialmente cuidadoso".
Eu segui em frente, me informe o máximo que pude e conversei especificamente sobre estes temas com aqueles candidatos. Resolvemos tentar.
Percebi que, de certo modo, pessoas trans são como água de cachoeira. Passaram por todo tipo de porrada na vida: muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas (o que dá no mesmo). Tiveram portas batidas na cara, enfrentaram agressões, discriminação e, não raro, a morte. Sabemos como o psiquismo humano resiste às diferenças. A simples ideia de que alguém possa ser, ao mesmo tempo, feliz e diferente é o motor de muito preconceito. E, infelizmente, isso alimenta a violência.
Não por acaso, o Brasil lidera o triste ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Essa informação já basta para que qualquer pessoa trans se sinta ameaçada apenas por existir.
Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta. Meu avô, com seu espírito aventureiro, resolveu fazer um "atalho" e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos e de sua épica teimosia, achou que aquilo valia a pena.
Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Régis Bittencourt. Na época, era pista simples e mão dupla, onde acidentes graves eram rotina.
Entramos então na rodovia Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe, e seguimos pela pequena serra, percorrendo em velocidade baixa as sucessivas curvas mal projetadas.
Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada nova curva e eu balançava de um lado para outro no banco de trás, ora me apoiando num muro de travesseiros, ora na lateral áspera do fuscão.
Foi quando meu avô reduziu a velocidade por conta de uma enorme fila de carros. O trânsito se arrastava e, entre protestos, algum tempo depois, descobrimos o motivo.
Numa daquelas curvas, um acidente espetacular se tornara a notícia da viagem. Outro Fusca, cujo motorista provavelmente não conseguiu fazer a curva, invadiu a contramão e colidiu de frente com um caminhão amarelo. A batida foi tão violenta que tirou a vida de todos no carro.
Passamos devagar, observando o caos à beira da estrada, e meu avô Chico parou no acostamento alguns metros adiante. Parar para olhar o acidente é prática comum — talvez pelo desejo mórbido de acumular assunto para a próxima conversa, ou pelo simples alívio de saber que não foi com a gente.
Meu avô saiu do carro. Eu me ajoelhei no banco traseiro, observando ele se afastar em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça. Curioso que era o velho Chico, logo estava inclinado sobre o carro fumegante, bisbilhotando em busca de “pistas”.
Um minuto depois, vejo meu avô retornar. Ele tamborilou o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse:
— Vem cá, Sivuquinha, o vovô vai te mostrar uma coisa.
Em obediência à autoridade do avô, saí do carro. Minha avó saiu primeiro para levantar o encosto do banco e eu saltei para a aspereza do asfalto. Curioso, segui meu avô até o local do acidente.
Havia fumaça subindo da frente de um dos carros. As pessoas e os policiais se aglomeravam ao redor da cena, enquanto o teto amassado do Fusca azul calcinha me chamava a atenção. Era como se o teto estivesse tentando saltar por cima do restante do carro, fugindo do próprio desastre.
Aproximei-me um pouco mais e os detalhes daquela cena inesquecível começaram a se materializar diante dos meus olhos. Havia incontáveis cacos de vidro espalhados pelo chão, a lataria deformada e enrugada como papel amassado, uma das rodas torcida violentamente para a direita, lembrando um braço quebrado, dobrado para um lado impossível. No asfalto, repousavam um quepe azul, como os dos carteiros, e o pé solitário de um tamanco de madeira, desses que estavam na moda naquela época, em plenos anos 70. Estranhamente, não havia ninguém por perto. Imaginei que alguma senhora, vítima da tragédia, havia sido levada às pressas para o hospital na ambulância dos vigilantes rodoviários.
Foi então, no calor da tarde, que meus olhos de menino enxergaram, entre a lataria retorcida, algo que parecia um homem dormindo. Mas aquilo não era sono.
Lá estava meu primeiro cadáver de verdade.
O motorista, provavelmente. Oculto atrás da porta semiaberta, um senhor de poucos cabelos brancos, bigodes enrolados cobrindo o lábio superior e parte da boca, escancarada num enorme susto. Os olhos arregalados, parados, miravam o horizonte por cima do meu ombro. Um olhar triste, suplicante. Sentado ao volante, o peito esmagado pelo volante, respingado de sangue. O braço esquerdo caía inerte, vestido com blusa cinza de lã fina. As pernas, encolhidas, desapareciam sob o painel.
Fiquei ali quase paralizado, Observava a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.
Os olhos do morto se fecharam numa piscada repentina e, num segundo, abriram-se de novo, assustados. Voltaram-se diretamente para o meu rosto. A boca se fechou por um instante.
— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?
Aterrorizado, recuei um passo no cascalho da calçada. Um arrepio percorreu minha espinha. Mas o fascínio de ouvir aquela voz me atraiu de volta.
— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...
— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?
— S... Silvio...
— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a confusão que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma barbaridade dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.
— Mas o caminhão...
— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, moleque! Eu estava correndo muito e o Fusca não faz curva, eu passei reto, não deu nem tempo.
— Não teve como desviar?
— Quando eu vi já era...
— Não tem mais jeito?
— E mesmo que tivesse? Minha mulher morreu. Nem viu nada, tava dormindo. Agora tá em algum lugar no céu, ou sei lá onde, tentando entender como foi parar lá. Levaram ela no rabecão. Culpa minha.
— Mas você está aqui falando comigo...
— Isso não me serve de nada. Daqui a pouco me levam também. Necrotério. Vou estragar a vida da minha família toda. Vai ser choradeira. Minha mulher era avó, igual tua avó. Nossos netos vão chorar. Meus filhos, meus amigos do futebol de botão. Vai ser uma bosta.
— Nossa, que ruim isso...
— É horrível e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que acha que sim, que é indestrutível, o mais esperto do mundo… Engano puro. Um segundo a mais de erro… tá fodido. Então, se liga, Silvio. Te chamam de Sivuca, né?
— É sim...
— Então, Sivuquinha, não faz uma cagada dessas, hein? Aprende a dirigir direito. Presta atenção nas curvas. E quando inventarem um telefone que dá pra levar no bolso, não fica teclando enquanto dirige. Vai prometer isso, moleque?
— Tá bom...
— Tá bom o que? Vai fazer o que eu disse? Presta atenção e me responde, moleque!!
— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!
Nesse instante, uma mão tocou meu ombro. Soltei um grito. Era meu avô, ofuscado pelo brilho do sol, me puxando de volta para o carro.
— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando.
Hesitei, mas fui. Antes de entrar no carro, virei o corpo e olhei uma última vez para o homem morto. Lá estava ele, imóvel, perdido no horizonte. Talvez, só talvez, com um olhar um pouco menos desesperado. Um pouco menos triste. Como quem, pela primeira vez na vida… fez algo de útil.
Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.
Silvio Ambrosini
O homem invisível troca a fralda do filho. Imóvel na cama, ele apenas observa. Com seus olhos tão vivos, corre por tudo ao redor, parece que tenta buscar vida em todas as outras partes do seu corpo. Este par de olhos em busca de vida, se esforça para concentrar toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida.
E o filho observa. Sente, pensa, opina, envia suas mensagens. Claro, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar com uma atenção especial, onde é capaz de sentir, ouvir, receber suas mensagens.
E lá vem a mãe correndo, Ela abraça, mima, protege, alimenta, escuta e fala, descreve tudo ao redor para que seu filho escute suas palavras dando nome a todas as coisas, dando contorno ao seu pequeno mundo. O filho responde o sorriso com seu olhos cheios de vida. Vida que esbanja e a mãe sabe disso, porque a mãe sente, a mãe ouve, a mãe ama.
Mas o filho está preocupado, tem medo de ficar sem respirar, então ele pisca o olho e o homem invisível verifica a saturação. Está baixa, então olha para o filho e seus olhos se encontram. De um jeito que não entendi ainda, através do olhar ele entende que o filho tem dificuldade para respirar. E o homem invisível faz o procedimento. Limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira. E então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já se sente melhor. A tecnologia ajuda, o oxímetro confirma e o homem invisível relaxa um pouco e a mãe descansa os ombros e o filho olha para ambos sorri com os olhos.
Sabe? O filho tem medo, mas não de monstros, não dos lobisomens que uivam no quintal, nem da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim e nem do monstro que mora embaixo da cama. O medo que o filho sente é de ficar sozinho, de não ter mais olhos para olhar, olhares para trocar, pele para sentir.
Em seus sonhos, flutua sobre a cama, levanta voo e sai pela janela, flutuando sozinho pelas ruas do bairro. Penetra na escuridão do bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem. Finge que tem o medo que ele não tem. Olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem. Sente um arrepio na espinha que pouco sente, e lá está a mula sem cabeça com suas labaredas e seu grito de relincho e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E continua sua jornada entre árvores até que sai pela rua sem medo. Ele sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu vendo sua casa lá embaixo e quando chega perto das nuvens, sente um tipo de pequena solidão. Mas mesmo assim fica feliz porque pode escolher para onde vai, escolher seu caminho, pode flutuar como quer e voar por onde quiser. Então ele sai do bosque, volta para o bairro e lá está sua casa no fim da rua. Entra pela janela do quarto e vê os lençóis e os aparelhos com suas luzes piscando e seus foles ocupados em inflar e desinflar. E os fios ligados e a cama tranquila e acolhedora, nem liga para o monstro que mora debaixo dela. Ele finge que tem medo porque criança sempre tem medo de monstro. Mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.
E o homem invisível volta a contar histórias, a conferir os aparelhos e levanta os olhos para encontrar naquele olhar do filho, toda a vida que esse pedaço de vida tenta sempre encontrar. E naqueles olhos tão cheios de vida, onde vê o esforço para olhar, encontra a força para contar histórias sem parar. E o filho também tem histórias para contar, quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem e viu as labaredas da mula sem cabeça com seu grito horroroso, mas nada disso deu medo. E quando voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.
A avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar. Junto com sua avó, o homem invisível levava aquelas velhinhas ladeira acima para passear. Quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.
O homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, escolhas, erros e acertos, idas e vindas. Sentiu o vento bater em seu rosto e um dia, perto das nuvens, sentiu uma pequena solidão, mas ficou feliz em poder escolher para onde ir.
Um dia o homem invisível encontro outro par de olhos. Trocaram olhares e sentiram que podiam continuar assim. Se olharam, foram morar juntos e se amaram. Então veio o filho e eles também o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo de monstro, de lobisomem, de mula sem cabeça. Só o medo de não ter ninguém para amar.
E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam em seu olhar, porque viam dentro daquele olhar que ele era o lugar onde existia a mais essencial das coisas: o saber amar.
Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.
Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.
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Foi ainda outro dia, muito recentemente, tão recentemente que ainda molha o dedo de tinta. Deveria haver um aviso de “Tinta Fresca”... mas aí... já ia aparecer um pra questionar, né? Se a tinta é fresca, deveria ser pink, porque é a cor de “frescura”, então meninos de azul, meninas de rosa e coisas frescas de pink. Mas a coisa é que essa tinta é feita de todas as cores porque essas coisas não têm cor, só têm rancor, só têm dor e ainda lhes faltam uma boa dose de amor.
Mas não foi nada tão grave não, foi só uma conversa, daquelas de van, de gente que não tem para onde ir, está confinado dentro do cubo metálico. Não teve soco na cara, não teve insulto direto, não teve assassinato, e olha que essas coisas acontecem a toda hora, todo dia em todo lugar. Aqui no Brasil, no país que mais mata bicha no mundo, acontece mais fácil que vento leste.
Mas como dessa vez foi só uma conversa, então me conta o amigo que se queixou com o grupo, contando que ele estava chateado, pois ele, que só queria conversar, bater um papo assim, jogar conversa fora, mas no final a conversa terminou em tumulto, virou a “Van da Discórdia” como ele mesmo contou. O caso é que vinham todos juntos, justamente dentro da tal van e voltavam de um lugar, com sérios planos de ir para outro.
Foi mesmo bom que estivessem voltando, assim o episódio da van da discórdia ficou só para a volta, quando todos já tinham se divertido bastante, esgotado todas as possibilidades de risos e brincadeiras, de festa e diversão. Se tivesse sido na ida, aí teria complicado, pois discórdia na ida costuma atrapalhar o evento.
Então era uma daquelas horas em que o povo já tinha se divertido além das pencas, e alguém chega à brilhante conclusão que não faz sentido a essa vida possa ser mesmo tão legal assim gratuitamente. Entredentes, o sujeito pensa que para levar uma vida tão boa, ele só pode ter algo de especial. Afinal, privilégios e mordomias não são coisa para se entregar para qualquer um, é preciso ter um diferencial, uma indicação, é preciso não ser apenas mais um na multidão. É nessa hora, quando aparece um sujeito que sente que merece algo mais que a simples multidão, que umas coisas doidas começam a acontecer dentro dele. Dá até para descrever, um tipo de força que aparece dentro do peito, um tipo de poder, como de Superman hétero, uma força de eu posso, você não pode, eu tenho, você não tem, eu mereço esse lugar na van mais que você, Rosa Parks (mulher negra símbolo do movimento segregacionista norte-americano, a que em 1913, se recusou a dar o lugar dela para um branco no ônibus, mesmo sendo o que dizia a lei naquela época).
É assim que acontece, é assim que termina, com o sujeito fazendo sua descoberta interna onde ele não é só mais uma pessoa no mundo, mas um especial do tipo Dias Paes, ou um Especial Borba Gato, como o da estátua escravagista, ou um Especial Plínio Salgado, da escola fascista brasileira, talvez um Especial Cabral, do cara que descobriu uma terra que já tinha dono ou um especial Messias B., aquele sujeito lá no palácio que o Niemeyer construiu, enfim especial assim Especial com E maiúsculo.
Então, sem mais desvios de assunto e conduta, voltemos à van... a van da discórdia, lembra? E em meio as reflexões filosóficas que costumam tomar espaço no ócio das longas quilometragens que a estrada proporciona, um dos colegas, despretensiosamente faz um comentário a respeito de outro colega que não estava presente: “Ele é muito inteligente, apesar de ser gay”. Pelo menos cinco ou seis pares de olhos se arregalaram nessa hora e o dono de um par deles, que não se aguenta debaixo de suas cabeleiras, movimenta o indicador como ponteiros do relógio que urgem para que o tempo pare e manda um “Alto lá... o senhor por acaso está insinuando que basicamente gays não são inteligentes e esse nosso amigo conseguiu romper alguma espécie de conexão invisível que mantém a população LGBTQI+ dentro dos limites da estupidez?”. Naturalmente, a resposta vem precedida do clássico sufixo “Veja bem” e completa: “não foi isso que eu quis dizer...”... Não quis, mas disse, bem parecido com o sujeito que atropelou os ciclistas com suas bicicletas na beira da estrada, também disse que não queria fazer aquilo, mas pelo que entendi, apesar do fato consumado do sujeito ser gay – tom de lástima, lamento ou rejeição – ele até que é surpreendentemente inteligente.
Nesse ponto, os ânimos se enriquecem e uma argumentação inflamada segue viva, apesar da pretensa falta de inteligência apontada na direção da população gay e a van segue incólume por seu caminho pelo asfalto quente. Mas, por onde passa, cabeças se viram em sua direção, possivelmente para tentar esclarecer a curiosidade que o aroma que exala de seu interior, deixa nos acostamentos da estrada. Um aroma que pede para ser compreendido. Não é aroma novo, o cheiro lembra coisa velha, como a parte de baixo da almofada do sofá, ou o pano de chão que largado molhado ao lado da máquina de lavar na semana passada, já secou e ficou meio duro, ou então aquele odor de lista telefônica da Telesp, ou de camiseta de candidato no fundo da gaveta de baixo.
Não que estes cheiros sejam incomuns, mas a gente só costuma sentir quando chega perto de algo que já teve sua chance e em meio a velocidade com que as coisas acontecem hoje em dia, as coisas velhas rapidamente perdem espaço para as coisas novas.
Dentro da van, seguia a discórdia, não que todos discordassem entre si, mas uma boa parcela a bordo discordava da atribuição mencionada, entretanto alguns refletiam: seria possível isso? Seria de fato possível que existisse uma relação entre a sexualidade de uma pessoa e seu nível de inteligência? Entre as mentes que matutavam esse assunto, uma se recordava dos relatos enviados à corte portuguesa quando da descoberta do Brasil, em que alguns deles falavam sobre as pessoas nuas e ignorantes que aqui habitavam. Naquela época ficava muito claro entre as mentes formadoras de opinião, que de fato os índios seriam menos inteligentes que os portugueses, quando não, bastante pouco dados ao trabalho. Viviam em choupanas improvisadas e mesmo aqueles tidos como detentores de posições de maior destaque hierárquico, sequer se preocupavam em utilizar roupas. De fato, os índios sequer possuíam alma, nem poderiam ser de fato, filhos de Deus, mas sim eram como almas perdidas que só poderiam encontrar a redenção se terminassem se convertendo em cristãos. Era muito claro que aquilo em que os europeus de Portugal acreditavam só poderia ser o certo, enquanto os índios, só poderiam estar errados.
O mesmo podia ser dito a respeito dos escravos negros que foram trazidos ao Brasil a seguir. Os escravos, como diz o nome, eram uma mercadoria, propriedade de alguém que poderia dispor dele da maneira que desejasse. Esse dono de escravos tinha poder de vida e morte inclusive. Escravos não era diferentes de um boi ou um cavalo, talvez um pouco mais caros, talvez capazes de fazer tarefas mais complexas, mas o português europeu branco não acreditava que um escravo fosse capaz de competir com sua inteligência.
Naquela época, não existia o conhecimento de DNA que temos hoje e certamente aquelas pessoas não tinham como comprovar que tanto um índio quanto um negro eram de fato seres humanos absolutamente idênticos a um branco e era aqui que a van da discórdia ia ficando cada vez mais interessante, afinal, se dois seres humanos de cores diferentes são exatamente o mesmo ser humano, não é possível que a cor vá afetar o nível de inteligência daquelas pessoas. Da mesma maneira foi embaraçoso lembrar que até onde a tecnologia atual de escrutínio da estrutura genética, os homossexuais também possuem exatamente a mesma configuração de DNA dos heterossexuais e que uma pesquisa de 2019 feita com mais de meio milhão de pessoas sustenta que é virtualmente impossível predizer por sua informação genética, se aquela pessoa será homossexual ou heterossexual. Sendo assim, atribuir um nível mais baixo de inteligência aos homossexuais fica parecendo um arriscado passo na direção de um comportamento que objetiva desmerecer as diferenças entre os seres humanos e nesse caso, a orientação sexual.
Mas apesar de sacudir levemente, muito mais pela irregularidade do piso, a van da discórdia seguiu seu caminho até o destino e lá todos se despediram lembrando os agradáveis momentos que tinham passado juntos, fizeram promessas de novos encontros, novas festas, mais cerveja e alegria e cada um seguiu seu caminho.
Mas no fundo do pensamento de alguns, algo havia mudado.
Cemitério Israelita do Butantã - um lindo lugar. Fui até o cemitério hoje me despedir de meu amigo Roberto Simon. Fazia um bom tempo que e...