quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flores para uma pessoa viva

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Flores para uma pessoa viva

Poliana assistia impassível aos seus dias sendo arruinados cada vez que se deitava na cama para enfrentar o intervalo entre dormir e acordar para o próximo. Tentaria dormir girando sob as cobertas enquanto as horas iriam se arrastar até que, de manhã a luz do dia entraria pela janela. Colocaria os pés para fora dos cobertores e antes mesmo de tocar o frio do chão, sentiria medo. Recolheria os pés num átimo, como se os tivesse tocado em brasa, mas era gelo que também queimava. Seu amigo e colega de trabalho Daniel, havia morrido meses antes, ingênua vítima da pandemia, não havia durado dez dias, talvez tivessem sido nove. Deixou a família em prantos, os amigos incrédulos, os colegas assustados e seus planos, desmoronaram enquanto sua vida se tornava estatística. 

Entrar no ônibus era assustador e em meio a essa loucura, amigos morrendo, máscara, distanciamento, notícias horríveis escorriam da tela do celular. Sentada no canto do ônibus, calculava como chegaria ao trabalho ilesa. Levantava-se para apertar o botão do próximo ponto e planejava cuidadosamente como faria para sair do veículo sem tocar naqueles canos, naquelas superfícies impregnadas de suspeitas e terror. Na mesa, diante de seu computador, organizava suas tarefas meticulosamente, revisando cada item para que tudo ficasse perfeito. Uma perfeição possível, embora questionável, passava pela tela do PC, enquanto ao seu redor, uma imperfeição irresponsável e incorrigível controlava o mundo enquanto estendia seus dedos frios e nodosos em sua direção. Sentia medo, sentia-se oprimida. 

Em fevereiro, alguém a empurrou no ponto de ônibus e arrancou a bolsa de suas mãos. Atônita, acompanhou com os olhos o seu correr pela rua movimentada, arriscando a vida entre os veículos. Ela, que salvava moscas de se perder na vidraça da janela, torceu para que um carro atingisse aquele rapaz com sua camiseta de futebol. Imaginou seu corpo voando no espaço enquanto o tempo passava e ele corria até desaparecer na esquina do outro lado.

Então seu companheiro também contraiu o mal. Isolou-se no quarto enquanto pela fresta da porta, ela empurrava o prato de macarrão. Depois, ambos sentados contra a porta, separados pela madeira fria, perdiam-se em tentativas de palavras que se estendiam em longos e sóbrios silêncios. Seus olhos corriam pelo corredor enquanto observava as sombras na parede da cozinha, tentando invadir o apartamento. Encolhia os tornozelos para quase debaixo de si e no frio do piso, deixava a lágrima molhar seus joelhos. Enxugava o rosto com o dorso da mão, soltava um boa noite enquanto tocava a fórmica e cambaleava até a cama. No dia seguinte, tudo recomeçava. Era hora de fazer algo.

Decidiu abandonar o trabalho, na primeira manhã fria do início de outono, irredutível comunicou aos patrões, enquanto escutava suas monótonas sugestões alternativas inalcançáveis. Férias, descanso, afastamento... nada disso servia. Só a demissão traria o caráter definitivo que ela precisava impor a qualquer parte de sua vida tão incerta, tão cheia de dúvidas.

Ao longo daqueles vinte dias, as horas se arrastaram enquanto organizava seu trabalho e as tarefas que iria passar para seus colegas. Criou tabelas, procedimentos, tudo com a costumeira perfeição que lhe resgatava das dúvidas do dia seguinte. Ao longo daqueles vinte dias, consultou especialistas, aviou receitas, lidou com melhoras e pioras. Recebeu a compreensão e o consolo dos amigos e familiares, mas seu olhar traduzia o desespero que sua alma habitava. Poliana se esforçava para acreditar que um dia conseguiria superar aqueles dias, mas suas esperanças apareciam cobertas por uma névoa incompreensível.


Então chegou o dia da despedida, imaginei que seria uma coisa boa fazer uma pequena homenagem, com flores, talvez. Procurei uma floricultura sem sucesso quando me lembrei que ali perto do cemitério, certamente haveria alguma, e acho que flores de perto do cemitério são flores como quaisquer flores que florescem e alegram o coração de qualquer cidadão. Encontre-se facilmente, entrei e fui recebido por uma moça silenciosa. “Bom dia, gostaria de flores para uma pessoa viva.” – “Claro”, disse ela me apontando alguns arranjos agradáveis na extremidade da loja. Escolhi um bonito buquê e enquanto ela o preparava, encontrei um grande cartão colorido. 

Deixei o buquê dentro do carro e entrei no escritório dirigindo-me ao pessoal. Conversei em separado com cada um deles, contando que aquele seria o último dia de Poliana enquanto estendia aquela cartolina colorida dobrada, pedindo que escrevessem algumas palavras de carinho.

Horas depois, o cartão voltou para minhas mãos. Abri-o e vi o papel coberto de palavras que se espremiam para poder transmitir suas mensagens. Eu fui lendo enquanto as primeiras lágrimas brotaram de meus olhos. O amor contido nas palavras de seus colegas me comoveu, pessoas que nunca imaginei que um dia fossem escrever qualquer coisa, colocaram naquele papel, suas emoções sinceras, seu carinho e sua compreensão. Havia de fato, amor no coração daqueles colegas de trabalho. Então, comovido, conversei com Benício que concordou que seria mais prudente que eu entregasse o presente em particular e assim decidi fazer. 

Entrei na sala de Poliana abrindo a porta que dava de frente para sua mesa de trabalho, ela virou o olhar em minha direção e eu coloquei o buquê sobre a mesa. Comecei a falar, mas os soluços vieram enquanto tentava dizer que tínhamos feito uma homenagem para ela. Fui incapaz de terminar a frase. Atirei-me em seus braços em prantos, não por perder minha secretária, mas por ver minha amiga partir em meio a tanta dor sem que eu tivesse conseguido ajudá-la. 

Sem saber direito como agir, ela me abraçou e me apertou com seus braços. De repente eu estava sendo consolado pela pessoa mais triste que eu conhecia, parecia então, que eu tinha conseguido superá-la em sua tristeza. Haveria então a tristeza definitiva? Quem então era a pessoa mais triste do mundo? Como se mede a tristeza? Essas perguntas não estavam sendo verbalizadas, mas de alguma forma, Poliana percebia que elas existiam. 

Foi então que eu disse: “Me dá uma dessas pílulas que o psiquiatra te deu, vai?” Nessa hora ela riu, riu pela primeira vez em tanto tempo e eu senti que ela poderia sair e um dia, voltar refeita. Entre soluços, eu lhe disse: “Está vendo como você é capaz de rir? Logo você estará bem, você vai vencer, Poliana, você consegue, menina!”

Pela primeira vez então, Poliana pareceu acreditar que conseguiria, e no final daquela tarde, com um discreto pedacinho de sorriso no canto de seu lindo e dolorido rosto, partiu confiante de que ela teria uma chance.

 

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