A Perda do Pai
Ou "Como me descobri ateu e segui vivendo feliz"
A perda do Pai
Naquele dia chuvoso, o menino, todo molhado, depois de tomar o ônibus errado e voltar para casa muito atrasado, entrou pela sala e procurou o aconchego do pai.
Encontrou a casa vazia. Chamou, repetiu… não era o que queria. Procurou, mas não encontrou. O pai sumido havia…
Passou um dia, dois, três… uma semana, um mês, um ano… o pai nunca mais retornou.
Na solidão de sua responsabilidade, durante aqueles dias que se arrastavam, o menino foi devagar entendendo: na comida que preparava, nos pratos que lavava, no chão que varria, na cama que arrumava, no cachorro que latia, na roupa que pendurava… em tudo aquilo que fazia — nas coisas que amava, e também nas que não queria — tomar conta de si era o que ele faria.
Aos poucos, ficou claro que não adiantava mais pedir ajuda, conselhos, alívio… agradecer pelos acertos. O pai que fazia todas essas coisas, não estava mais ali.
Viu que as coisas do pai se cobriam de poeira. As roupas paradas na gaveta não se moviam. As folhas largadas sobre a mesa só acordavam com a janela aberta e o vento.
Na solidão de seu dia, descobriu que era o único responsável pelo próprio sucesso. E que sozinho poderia muito facilmente fazer acontecer o pior de seus fracassos.
Entendeu que, se mantivesse o foco e se esforçasse muito, o sucesso poderia acontecer. Mas que, se não ficasse atento, o fracasso viria correndo interceder.
Descobriu que lhe dava prazer e alegria levar alívio a alguém que precisava. Mas, a não ser por esse prazer e essa alegria, o pai não viria para lhe sorrir. Ele não se importou. O sorriso de quem sofria era o prazer e a alegria que ele sentia — a coisa mais importante de seu dia.
Viu que vergonha e culpa viriam ao provocar dor e sofrimento. Mas, no fundo, sabia: punido não seria, a não ser pelo espelho que o próprio olhar culpado trazia.
O menino ficou feliz, pois entendeu que poderia ser feliz ou infeliz — mas não por ser negro, ou crente, ou ateu, ou doente, ou rico, ou branco, ou por gostar de homens, de tolos ou de santos, por ser gari, doutor ou presidente.
O menino entendeu e aceitou que não tinha controle sobre o mundo, sobre os outros. E entendeu que quem controlava o mundo era o acaso. O puro acaso — o verdadeiro motor do mundo.
Então ficou claro: a desgraça não escolhe a cor das pessoas, nem a fé, nem a falta dela. O desavento não escolhe, nem se importa. É como o vento: apenas sopra. Apenas é.
O menino viu que podia escolher entre o medo e o desespero… ou a serenidade e o desejo de reconstruir o que lhe fosse arrancado.
Poderia virar a página. Uma folha em branco o esperava, para receber suas palavras, suas frases, suas rimas.
O menino não contava com o golpe de sorte — porque não havia sorte, apenas morte. Viu que era o puro acaso que atropela a primeira alma que passa, assim como o vento leva as folhas… sabe-se lá qual delas, sabe-se lá para onde.
Viu que não havia destino. Não havia nada escrito. Mas havia um caminho — mesmo estreito — traçado no chão como linha do destino, esperando ser percorrido. E depois, poderia olhar para trás e, no tempo que passou, chamar de destino aquele mesmo caminho por onde andou.
Entendeu que o que estava escrito era obra de alguém que buscou uma pena e a dedicou ao papel, imaginando cada cena, cada problema, cada poema. Mas, no fundo, fora só mais um que escreveu — só porque decidiu, ou porque ouviu, algo que alguém havia dito. Só isso. Cada palavra, cada linha.
Logo, o menino cresceu. E entendeu que do pai que sumira, ficara só uma ideia. Como num sonho distante. Um devaneio. Uma odisseia.
Sentiu o calor do fim do dia, os primeiros raios de sol. O arrepio da água fria, o brilho das estrelas no céu, o acariciar da brisa.
E a lembrança do pai… nuvem passageira, quase irrelevante… passava distante, e logo adiante, desse mundo tão gigante acelerando ao seu redor. Mundo esse que corre solto — nasce, vive e morre — sem se dar conta de si. Entrega a vida assim, de bandeja.
O menino até voltou para a igreja. Admirou a cultura, a arte, a beleza. Aprendeu a meditar e viu que era o mesmo que rezar — um tempo para si, escutando o próprio coração — e isso era muito bom.
Viu que não precisava pedir. O universo já conspiraria, ou não. Bastava agir, sem muito esperar.
O menino ficou tranquilo. Entendeu que, ao morrer, não iria para outro lugar. Mas poderia continuar vivo na memória e no coração das pessoas — especialmente daquelas para quem tivesse significado. Sentiu então a urgência de criar esse significado. Fazer a vida valer a pena era o que mais importava.
Descobriu que o pecado mora na cabeça dos homens. Que o que hoje é condenação, amanhã pode ser virtude.
E que pecado de verdade é fazer sofrer. É provocar dor, desumanizar, desprezar, odiar o outro — sua cor, seu corpo, seu amor.
O menino entendeu que viver é transformar o mundo ao redor. É construir, realizar, perdoar, tocar, mas principalmente… amar.
E foi então que ele viu o próprio desejo. E pela primeira vez, reconheceu: era seu.
Pela primeira vez, não era o desejo do outro projetado nele. Era o dele. O menino não iria desaparecer para dar espaço ao desejo do outro.
Descobriu que também tinha um lugar no mundo. Que tinha um nome. Que podia amar a si mesmo.
Por isso, ele correu. Correu o quanto pôde. Era preciso correr — o tempo era curto — e deixar uma marca, um sorriso, uma lembrança…
Mas logo percebeu: continuava correndo, não por medo, nem por obrigação. Corria porque queria. Porque desejava.
Corre, menino.
texto: Silvio Ambrosini
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3 comentários:
Muito lindo como sempre, inteligente e verdadeiro. Voce é muito bom no que escreve. Parabens
Muito bom Sivuca, como sempre.
Muito bom.
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