Um Guia Gay para Amigos Héteros (e gays também) - Parte 1
Tenho muitos amigos, eleitos ao longo de meus agora cinquenta e três anos de vida. Muitos são heterossexuais, muitos parecem ser heterossexuais, alguns parecem gays mas dizem que não são, alguns são claramente gays e nem imaginam e outros são declaradamente gays. Digo isso porque já passei por algumas dessas fases e só lá pelo meu 18º aniversário é que comecei a juntar as peças para começar a entender melhor afinal qual era minha sexualidade. Esse processo se consolidou quando eu tinha cerca de 23 anos e aí ficou claro que eu de fato preferia os meninos, embora as meninas continuassem ainda tendo algo de interessante, talvez mais pelo meu interesse em admirar as coisas belas.Introdução
Antes de ir ao assunto, gostaria de lembrar que não sou especialista em nenhum desses assuntos, não sou antropólogo, nem psicólogo ou sexólogo e muito menos cientista político. Não escrevo aqui desejoso de impor minhas ideias, mas sim apenas dividi-las com vocês, afinal estas ideias se baseiam apenas na minha experiência de vida e na satisfação que sinto em observar e refletir sobre o comportamento das pessoas ao meu redor.
O ser humano é pura diversidade, nossa inteligência nos capacita a definir quem somos. Ter liberdade para decidir isso é um direito que considero essencial, afinal uma pessoa tem o direito de ser quem e o que ela desejar ser. Este direito está acima do contexto moral e cultural das sociedades, estes são relativos ao espaço e ao tempo, o que faz de algo inaceitável em uma parte do mundo, perfeitamente plausível em outra, assim como algo que foi tido como razoável, tornou-se abominável com o passar dos anos e vice-versa. De fato as ideias de moralidade e muito do que é certo ou do que é errado vem com uma carga de interpretações que variam de acordo com a "seita" que as pessoas acharam por bem, permitir que regesse suas vidas.
Basta lembrar que comercializar e ter seus próprios escravos era não apenas normal, como "indispensável" em várias sociedades do mundo, inclusive no Brasil até pouco tempo atrás. Atirar homossexuais de cima de prédios ainda hoje é aceitável pelo EI e a seus hipnotizados seguidores. Durante a segunda guerra mundial, assassinar judeus foi considerado uma solução para "o problema que eles representavam" como acreditava o regime nazista. Na mesma época, uma criança com síndrome de Down ou qualquer outra deficiência, poderia ser morta ou entregue em um orfanato, pois ela representava no mínimo, além de um incômodo, uma vergonha para qualquer família "respeitável", afinal até a década de 50, o nascimento de uma criança deficiente era basicamente culpa da mãe que era provavelmente uma devassa.
Algumas pessoas alegam que hoje existe uma "invasão gay", alegando que antigamente essas coisas não eram assim. Estou certo de que no antigamente as pessoas homossexuais mantinham-se no armário, por mais que isso provocasse seu sofrimento, uma vez que o comportamento que saísse da heteronormatividade poderia significar o fim de sua vida. Eu mencionei a palavra "Heteronormatividade". Esta palavra descreve as situações nas quais um comportamento diferente do heterossexual passa a ser marginalizado, ignorado ou perseguido. Não é uma delícia? Cuspa no chão, coce o saco, arrote, vista a camisa do avesso, e aproveite para dar um tapa na orelha na namorada e você estará em dia com os preceitos da heteronormatividade, além de não correr o risco de tomar porrada na Paulista quando resolver dar uma volta com seu short curto.
Classificações e rótulos
Como é descobrir-se gay
Imagina essa cena: você foi feliz chupando sorvete de manga durante a vida toda, saía para comprar sorvete de manga com os amigos, conversava sobre sorvete de manga e até usava camiseta amarela da cor de sorvete de manga. Andava de bike, praticava esportes, ia para a balada, enfim... você era uma "pessoa normal". Então um dia, um amigo que você nunca imaginou, oferece pra você um sorvete de morango. Você fica nervoso, já tinha reparado que existia sorvete de morango, mas na balada da adolescência, você andou com a galera e pegou o sorvete de manga, fato é que você nunca tinha experimentado sorvete de morango na vida. Mas você gosta bastante de seu amigo e numa mistura de curiosidade e interesse inconsciente, experimenta o tal sorvete de morango. Seus olhos se fecham para sentir melhor o sabor, seu coração começa a saltar no peito enquanto um uníssono de orquestra ecoa em seus ouvidos, soam as trombetas, fogos de artifício, chuva de serpentina e finalmente você descobre que aquilo sim é que é sorvete. Putaquepariu, que sorvete gostoso, e eu que tinha chupado manga a vida inteira e nunca tinha me dado conta que morango é muito melhor?! Ah váááá pa..!
Puxa vida, o de manga até que era gostosinho, mas na real... sorvete mesmo tem que ser de morango. Você olha pra cara de seu amigo e ele parece um morango com olhos.
E agora? Você sai para uma vida paralela? Separa-se de seus amigos? Joga fora suas camisetas amarelas e troca tudo por cor de moranguinho? Desiste do surf, do parapente, da escalada, da cultura nerd, da bike, do futebol e tudo mais que você fazia até então e vai correndo pra Marquês de Sapucaí tentar o miss carnaval? Também existe a opção de você tentar se afastar de qualquer elemento que te exponha a sua realidade interior. Então se um casal de meninas passar de mãos dadas na sua frente ou se dois rapazes decidirem se beijar, você pode gritar com eles a quem sabe até dar umas porradas, afinal, vai que dá um revertério na sua cabeça e a vontade de chupar sorvete de morango volta?
Aceitação
Os caminhos são muitos e ainda por cima, entre o sorvete de manga e o de morango, existem vários sabores, cada um deles com sua particularidade e sua atratividade. A questão está relacionada apenas um elemento: Aceitação. Pessoalmente, nunca fui fanático por coisa alguma, sempre fui meio generalista, sabendo um pouco de vários assuntos. Fui de vendedor de relógios a motorista de caminhão, de vendedor de kit gás a diretor de criação, passando por professor de inglês, instrutor de parapente e até escrevi um livro e plantei uma árvore. Encontrei meu companheiro de vida aos 36 anos, me casei e tive uma filha linda que amamos e curtimos a cada segundo.
Hoje, com 53 anos, sinto-me muito tranquilo e relaxado a respeito de minha vida pessoal e também sexual. Não consigo enxergar algo que de fato faça de mim, exceto pelo sorvete que eu gosto, diferente de qualquer chupador de sorvete de manga por aí.
Mas, o que para mim parece claro e simples, pode ser sinistramente complexo para muita gente e é por isso que escrevo este "Guia Gay" para tentar ao menos dar uma mãozinha para deleite geral da nação e é claro, para quem lá no fundo ainda acha que sorvete de morango é coisa do demônio ou de doido, ou de gente de quem é melhor manter distância.
Opção sexual ou orientação sexual?
Vou começar pela expressão que me inspirou a escrever este texto. Gente, de uma vez por todas, não existe "opção sexual", o termo certo é "orientação sexual". Eu explico. Ninguém decide tornar-se gay e muito menos consegue influenciar alguém para que esta pessoa se torne gay. Então, brincar de boneca, vestir rosa ou colocar um vestido não "transforma" nenhum menino em gay, da mesma forma que meninas podem ter o direito de rodar pião, empinar pipa ou trepar em muros, inclusive vestindo azul. Pode ficar tranquilo, papai. Por isso, se alguma mente maligna um dia planejou converter crianças em gays dando a elas a tal mamadeira de piroca (e me contem qual seria a finalidade desse plano estrambótico, porque não consigo vislumbrar o que ganharíamos com um jardim de infância inteiro convertido em sauna gay lotada), lamento informar que não vai dar certo. Inclusive uma professora disse outro dia: Se eu não consigo convencer um moleque a sentar na bendita cadeira da sala de aula, como é que acham que vou convencê-lo a sentar numa rola? Amei.
Não é opção, é fato
É preciso compreender que a sexualidade não é uma escolha, ela faz parte da pessoa desde o dia em que ela nasce. Ninguém decide virar gay, a pessoa nasce preferindo mais ou menos estar com pessoas do mesmo sexo, inclusive são inúmeras possibilidades que vão de um extremo até o outro. Existem então pessoas que se relacionam exclusivamente com pessoas de outro sexo assim como pessoas que se relacionam exclusivamente com pessoas do mesmo sexo e todas as graduações possíveis entre os dois lados. É claro que uma coisa é aquilo que está dentro de seu inconsciente e outra é aquilo que você pratica no seu dia a dia, sendo assim, o planeta está cheio de gente que se casou com alguém do outro sexo, se relaciona com o cônjuge, mas no fundo, no fundo, bem lá no fundo... ficaria muito mais satisfeito se fosse alguém do mesmo sexo e por aí vai.
A decisão de viver na prática sua orientação sexual, invariavelmente sofre influência cultural que pode vir da família, do trabalho, da escola, dos amigos. Alguém como eu, por exemplo, que foi criado em família tradicional e aprendeu a cultivar preconceito contra homossexuais passa por grandes dificuldades em compreender sua própria sexualidade, já que justamente aquilo que você mais quer ser, é precisamente aquilo que as pessoas lhe disseram que é feio e proibido. De qualquer forma, nunca existiu aquele momento em minha vida em que eu pensei em opção. Ao contrário, foi sim uma descoberta, uma constatação pura, simples e irrevogável.
É como quando você vira a esquina e vê um cachorro. Ele está lá, não há nada para optar, apenas reconhecer que lá está o cão. é preciso então decidir o que fazer, se você desvia, sai correndo, enfrenta o bicho na porrada ou tenta se aproximar com um gesto carinhoso. O que é que você vai fazer?
Da minha parte, sou um privilegiado, pois minha família sempre me deu claros sinais de compreensão e respeito. Não deve ter sido nada fácil para meu pai que foi criado em um ambiente machista, ficar sabendo que o filho é gay. Lembro-me da pergunta: "mas... não tem cura?"... e a resposta: Fica tranquilo pai, seu filho não está doente, nada vai mudar e eu continuarei sendo o mesmo de sempre para sempre.
Com minha mãe, foi mais peculiar: "Ai meu filho, e agora você não vai ficar saindo por aí a noite?" e a resposta: Mãe, eu sempre saí a noite...
De qualquer forma por mais que o meio social possa de uma maneira ou de outra, abominar a homossexualidade, isto não irá mudar o curso do desenvolvimento da sexualidade de uma pessoa, o que significa que não existe forma de um gay deixar de sê-lo. Qualquer tentativa nesse sentido, poderá sim transformar a vida de sua linda menina que quer usar coturnos e namorar meninas em um tormento infernal, inclusive levando-a à destruição. A verdade é que você não precisa entender sua filha ou seu filho, basta respeitá-la(o).
Este artigo continua, clique no link para ler a segunda e última parte