Naquele dia fui até a janela do quarto com minha filha Sol, munido de um par de panelas e colheres de pau. Foi dia de panelaço. Juntos, batemos aquelas panelas, gritamos e rimos muito, por um bom tempo enquanto revezávamos o samba com os vizinhos que se manifestavam em peso. Depois, levei-a para a cama e contei uma história. Então ela me perguntou por que afinal tínhamos batido as panelas. Eu expliquei que fazer barulho daquele jeito é uma maneira de lembrar às pessoas que nós também existimos, que não somos apenas sombras numa janela, que somos gente como qualquer outra gente, que somos uma família, que se ama e tem o direito de ser feliz.
Elis Regina disse que "há perigo na esquina", então é preciso estar atento e quando percebermos que nossos direitos estão sendo atacados, devemos abrir a boca, bater panelas e protestar contra os perigos enquanto podemos.
Ela sorri, diz que ama, diz boa noite, dou-lhe um longo beijo e a cubro com os lençóis.
A cumplicidade dela é peculiar, a relação com minha filha vai além de pai e filha. Não sou nada autoritário, o que às vezes termina me fazendo parecer que temos a mesma idade. Então juntos, nos divertimos e aprontamos travessuras. Ela parece ter um pedacinho de meu irmão morto, agora vivo, aqui perto de mim, um pouco como reencarnação, se eu acreditasse nisso, apesar de achar a ideia eletrizante.
Uma vez li um texto interessante (e viajante) que, por trás de nossa aparência física, existe uma espécie de corpo inorgânico. Essa deliciosa teoria conta que esse ser inorgânico é algo como um “casulo luminoso”. O casulo é a essência daquilo que somos feitos, algumas pessoas podem chamar isso de “alma”. Esse tal casulo é, ou ao menos deveria ser, perfeito. Mas então, quando nos tornamos pais, involuntariamente cedemos um pedaço do casulo para ajudar na construção de nossos filhos. No lugar de onde saiu o pedaço, fica um buraco, e por esse buraco, passa um fluxo infinito de amor incondicional. Esse fluxo nos conecta, como que por fios, com nossos filhos. Parte desses fios poderão um dia se romper, mas o buraco permanece e apesar de poder ser disfarçado ou chegar perto de ser reparado, nunca mais desaparecerá. Essa conexão permanece ali para sempre, porque somos pais e para sempre, amaremos nossos filhos, independentemente de que caminhos eles sigam.Escrevi esse texto para que fosse o posfácio de meu livro Ventomania, uma vida voando de parapente, mas era tarde demais, o prelo já rodava e a gráfica acelerava. O posfácio ficou, mas aqui está ele para a próxima edição, quem sabe talvez até lá, não será preciso protestar...
O livro "Ventomania, uma vida voando de parapente" pode ser adquirido aqui.