terça-feira, 29 de março de 2022

A panela de ovos



Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.


E então vem o ponto de ônibus e a banca de jornal e as pessoas que desviam e as que não desviam também, aquelas que vão, aquelas que vêm. E na porta da loja popular, um homem alcança seu olhar. Nas cores desbotadas de suas roupas, nas sandálias de dedo, em seu mover cauteloso, em sua mão, um punhado de moedas de diferentes cores e tamanhos. Dona me ajuda por favor, a completar o que me falta para que eu possa comprar aquela panela. E aponta com o dedo da outra mão enquanto traz para o peito a mão das moedas, fechada em punho protegendo o que é seu. Não falta muito, se eu conseguir, até o final do dia vou poder fritar uns ovos nela. E do outro lado do vidro, a pequena panela com a etiqueta pendurada dizia dezessete reais, a panela da loja popular. E ela não pensou muito e entrou e comprou a pequena panela e a entregou na mão do homem, e ele sem acreditar questionou, mas dona, essa panela é para mim? E ela disse que sim, e que usasse as moedas para comprar os ovos, e ele então agradeceu e tremia a voz, e disse que fazia tempo que ele não via o Papai Noel... e ela brincou, Mamãe Noel, talvez... E ele brincou com as moças do caixa, que pouco lhe deram atenção, mas mesmo assim ele disse: Nessa panela, vou fritar meus ovos e vou fritar minha pele de frango, vocês já provaram que delícia que é a pele de frango com ovos? E a alegria do homem era flagrante e mesmo sem enxergar muito bem, pelo pouco que as lentes de seus óculos lhe permitiam ver, ela sentiu, mais que viu, a alegria do homem que se materializara e então o tempo andou mais devagar por um instante e o ponteiro do relógio tentou não avançar para os próximos segundos.


E ela então ela voltou para a rua e enquanto seu avental voltava a voar na brisa da manhã e as pessoas voltavam a caminhar e a brisa também voltava a soprar seu rosto, ela se lembrou de como se sentia completa em poder fazer algo por alguém, se lembrou de como era fácil encontrar felicidade assim, tão de repente. Ela que poderia ficar feliz com novos azulejos para a cozinha ou o piso do apartamento ou com qualquer coisa que ganhasse de alguém. Mas a felicidade estava lá, não no que ela recebia, mas no que ela era capaz de entregar.



Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.


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