segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Sexualidade, Transexuais, Tammy Miranda e Natura





Sexualidade, Transexuais, Tammy Miranda e Natura


Meu amigo Antônio Viviani deu vida ao meu texto sobre sexualidade. Ele é locutor e fez esta gravação para o programa "Texto Sentido" acompanhem https://youtu.be/bbgeeUU4J6k

Eu gostaria de acrescentar que quando a gente chega em uma parte da vida em que um profissional da envergadura do Antônio Viviani lhe faz um telefonema pedindo autorização para gravar um texto seu, você chega a conclusão que realmente percorreu o caminho certo. Fico profundamente lisonjeado e agradecido a ele por esta fantástica obra, especialmente levando em conta que o texto em si não é um assunto nada fácil de ser sequer abordado.

Muito obrigado, Antônio.

Sivuca

#transexualidade #lgbtqia #tranfobia #homofobia #preconceito



Eis o texto original:



O que penso sobre o preconceito contra transexuais, Natura e Tammy Miranda.

Gostaria de ressaltar que embora devesse, iniciei esse texto com um discreto "O que penso..." e não com um "A verdade é...". Então se você não pensa assim, paciência, né?

Nossa cultura vê o falo como símbolo do modelo masculino, porém um homem não é seu pênis. O gênero não se resume àquilo que está entre as pernas, a genitália. O gênero de uma pessoa é o retrato de uma mente, ou se preferir entender assim, de uma alma. Sendo assim, pessoas que nascem com um sexo e sentem que pertencem, se identificam com este mesmo sexo, como eu e você são pessoas cisgênero. Homens ou mulheres cisgênero, ou apenas cis.
Por outro lado existem aquelas pessoas que sentem que pertencem a um sexo diferente do sexo biológico. Estas pessoas são chamadas transgênero. Isso se chama Identidade Sexual, ou seja, o sexo a qual a pessoa sente que pertence.

Isso pode acontecer tanto com pessoas de um sexo quanto com pessoas do outro. Estas pessoas podem ser homens trans, como Tammy e vários outros, e também podem ser mulheres trans, como a cartunista Laerte, por exemplo. (lembre-se que Laerte transformou-se após os 65 anos de idade).

Quando uma pessoa transgênero decide passar a realmente identificar-se como pertencendo ao outro sexo, essa pessoa passa a ser transexual. Isso pode nunca acontecer, ou acontecer em qualquer fase da vida da pessoa, depende exclusivamente dela, das motivações interiores e exteriores a que esta pessoa está sujeita. Imagine que um número enorme de pessoas trans simplesmente não conseguem sentir-se seguras para assumir seu verdadeiro sexo e não há dúvida que estas pessoas passam por um sofrimento enorme até que esta questão tão grave possa quem sabe um dia, estar finalmente resolvida na vida dela.

A essa altura, o pênis ou a vagina, de fato torna-se um detalhe, afinal você não precisa ver o pênis para identificar um homem na rua e nem ver a vagina para concluir que está diante de uma mulher, basta olhar para a aparência. Homens gostam de se parecer com homens e mulheres sentem-se felizes parecidas com mulheres. É claro que isso não é binário, existem muitas graduações de uma ponta desse fio até o outro.
De fato, o pênis é hipervalorizado pela nossa cultura, e a verdade é que não importa se um homem trans o possui, pois mesmo sem um, ele ainda será um homem, da mesma maneira que se por exemplo, um homem cis sofrer um acidente e ter seu pênis cortado, ele não se transformará em uma mulher, ao contrário, seguirá sendo um homem, porém um homem sem um pênis.

Então, não vem ao caso se Tammy tem ou não pênis, Tammy é um homem trans. Sente-se homem, identifica-se como sendo um homem e ainda por cima é um homem heterossexual, pois casou-se com uma mulher e juntos, tiveram um filho (não vem ao caso de que forma a criança foi gerada, não é mesmo?).
Aproveito o detalhe para lembrar que a Identidade sexual não tem relação com a Preferência Sexual. A preferência é assim como diz o nome, com qual sexo a pessoa prefere se relacionar (ir pra cama). Quem prefere pessoas do outro sexo, como o Tammy (porque Tammy é homem) ou como muitos de vocês, são pessoas heterossexuais. Quem prefere pessoas do mesmo sexo como a Daniela Mercury ou eu ou muitos de nós, são pessoas homossexuais. Isso não tem relação com a identidade sexual. Daniela é uma mulher cisgênero homossexual. Há os homem cisgênero heterossexuais, Tammy é um homem transgênero heterossexual. Eu e muitos, somos homens cisgênero homossexuais.

Como comentei acima, estas pessoas não têm uma vida nada fácil, especialmente em um país machista e pouco culto como o nosso e são facilmente alvo de intolerância, desprezo e violência todos os dias.

Isso é lamentavelmente triste, em minha opinião, todos os seres humanos são iguais e não cabe a mim ou a ninguém julgar ninguém por acreditar naquilo que sente na parte mais profunda de seu ser.

Transfobia, assim como homofobia, racismo ou qualquer outro tipo de preconceito, é uma merda, um inferno, um câncer que arruína nossa condição de seres humanos sociais e são comportamentos que devem ser insistentemente enfrentados e coibidos.


Não é suficiente fingir que não viu, que não é comigo, silenciar-se, porque quem cala, consente. Quem se cala diante do preconceito o avaliza. É sim preciso lutar, lutar pelo direito que todas as pessoas têm de serem tratadas como iguais, sejam elas quem forem, com quem ou o que se parecem, que cor têm, ou com quem elas vão para cama.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

A perda do pai
























A Perda do Pai
Ou "Como me descobri ateu e segui vivendo feliz"

As vezes me perguntam como é que que pude "me tornar ateu"... Bem, eu não fiz uma escolha, não me tornei ateu, mas me descobri ateu. E não foi nada divertido, ao contrário.. dolorido. Então, para ilustrar essa ideia, segue uma odisseia:

A perda do Pai

Naquele dia chuvoso, o menino, todo molhado, depois de tomar o ônibus errado e voltar para casa muito atrasado, entrou pela sala e procurou o aconchego do pai.
Encontrou a casa vazia. Chamou, repetiu… não era o que queria. Procurou, mas não encontrou. O pai sumido havia…
Passou um dia, dois, três… uma semana, um mês, um ano… o pai nunca mais retornou.

Na solidão de sua responsabilidade, durante aqueles dias que se arrastavam, o menino foi devagar entendendo: na comida que preparava, nos pratos que lavava, no chão que varria, na cama que arrumava, no cachorro que latia, na roupa que pendurava… em tudo aquilo que fazia — nas coisas que amava, e também nas que não queria — tomar conta de si era o que ele faria.

Aos poucos, ficou claro que não adiantava mais pedir ajuda, conselhos, alívio… agradecer pelos acertos. O pai que fazia todas essas coisas, não estava mais ali.
Viu que as coisas do pai se cobriam de poeira. As roupas paradas na gaveta não se moviam. As folhas largadas sobre a mesa só acordavam com a janela aberta e o vento.

Na solidão de seu dia, descobriu que era o único responsável pelo próprio sucesso. E que sozinho poderia muito facilmente fazer acontecer o pior de seus fracassos.
Entendeu que, se mantivesse o foco e se esforçasse muito, o sucesso poderia acontecer. Mas que, se não ficasse atento, o fracasso viria correndo interceder.
Descobriu que lhe dava prazer e alegria levar alívio a alguém que precisava. Mas, a não ser por esse prazer e essa alegria, o pai não viria para lhe sorrir. Ele não se importou. O sorriso de quem sofria era o prazer e a alegria que ele sentia — a coisa mais importante de seu dia.

Viu que vergonha e culpa viriam ao provocar dor e sofrimento. Mas, no fundo, sabia: punido não seria, a não ser pelo espelho que o próprio olhar culpado trazia.

O menino ficou feliz, pois entendeu que poderia ser feliz ou infeliz — mas não por ser negro, ou crente, ou ateu, ou doente, ou rico, ou branco, ou por gostar de homens, de tolos ou de santos, por ser gari, doutor ou presidente.

O menino entendeu e aceitou que não tinha controle sobre o mundo, sobre os outros. E entendeu que quem controlava o mundo era o acaso. O puro acaso — o verdadeiro motor do mundo.

Então ficou claro: a desgraça não escolhe a cor das pessoas, nem a fé, nem a falta dela. O desavento não escolhe, nem se importa. É como o vento: apenas sopra. Apenas é.

O menino viu que podia escolher entre o medo e o desespero… ou a serenidade e o desejo de reconstruir o que lhe fosse arrancado.
Poderia virar a página. Uma folha em branco o esperava, para receber suas palavras, suas frases, suas rimas.

O menino não contava com o golpe de sorte — porque não havia sorte, apenas morte. Viu que era o puro acaso que atropela a primeira alma que passa, assim como o vento leva as folhas… sabe-se lá qual delas, sabe-se lá para onde.

Viu que não havia destino. Não havia nada escrito. Mas havia um caminho — mesmo estreito — traçado no chão como linha do destino, esperando ser percorrido. E depois, poderia olhar para trás e, no tempo que passou, chamar de destino aquele mesmo caminho por onde andou.

Entendeu que o que estava escrito era obra de alguém que buscou uma pena e a dedicou ao papel, imaginando cada cena, cada problema, cada poema. Mas, no fundo, fora só mais um que escreveu — só porque decidiu, ou porque ouviu, algo que alguém havia dito. Só isso. Cada palavra, cada linha.

Logo, o menino cresceu. E entendeu que do pai que sumira, ficara só uma ideia. Como num sonho distante. Um devaneio. Uma odisseia.
Sentiu o calor do fim do dia, os primeiros raios de sol. O arrepio da água fria, o brilho das estrelas no céu, o acariciar da brisa.
E a lembrança do pai… nuvem passageira, quase irrelevante… passava distante, e logo adiante, desse mundo tão gigante acelerando ao seu redor. Mundo esse que corre solto — nasce, vive e morre — sem se dar conta de si. Entrega a vida assim, de bandeja.

O menino até voltou para a igreja. Admirou a cultura, a arte, a beleza. Aprendeu a meditar e viu que era o mesmo que rezar — um tempo para si, escutando o próprio coração — e isso era muito bom.

Viu que não precisava pedir. O universo já conspiraria, ou não. Bastava agir, sem muito esperar.

O menino ficou tranquilo. Entendeu que, ao morrer, não iria para outro lugar. Mas poderia continuar vivo na memória e no coração das pessoas — especialmente daquelas para quem tivesse significado. Sentiu então a urgência de criar esse significado. Fazer a vida valer a pena era o que mais importava.

Descobriu que o pecado mora na cabeça dos homens. Que o que hoje é condenação, amanhã pode ser virtude.
E que pecado de verdade é fazer sofrer. É provocar dor, desumanizar, desprezar, odiar o outro — sua cor, seu corpo, seu amor.

O menino entendeu que viver é transformar o mundo ao redor. É construir, realizar, perdoar, tocar, mas principalmente… amar.

E foi então que ele viu o próprio desejo. E pela primeira vez, reconheceu: era seu.
Pela primeira vez, não era o desejo do outro projetado nele. Era o dele. O menino não iria desaparecer para dar espaço ao desejo do outro.
Descobriu que também tinha um lugar no mundo. Que tinha um nome. Que podia amar a si mesmo.

Por isso, ele correu. Correu o quanto pôde. Era preciso correr — o tempo era curto — e deixar uma marca, um sorriso, uma lembrança…
Mas logo percebeu: continuava correndo, não por medo, nem por obrigação. Corria porque queria. Porque desejava.

Corre, menino.


texto: Silvio Ambrosini
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quinta-feira, 16 de abril de 2020

Debaixo dos seus caracóis

Sol e seus caracóis...


Cada vez minha filha, que à noite antes de dormir, você me pede para cantar "Debaixo dos Caracóis", confesso que reluto, mas sucumbo. Resisto, mas obedeço.

Apesar da letra de Roberto e Erasmo, ter sido uma homenagem feita à Caetano Veloso, que amargava o exílio durante a ditadura no Brasil e imaginava o dia em que ele voltaria para o Brasil, em mim aquelas palavras geram um efeito inverso. Elas me apertam o coração, quando ao navegar por essa melodia, enxergo um convite à ruptura. Na minha realidade, o exílio é aqui e para mim, a letra conta que chegará o dia em que você poderá querer me deixar, ir embora, deixar meus braços, meus beijos, meus carinhos e “voltar pra sua gente”. Mas que gente será essa?

Os versos me sangram o peito, dizem que você olha tudo o que está ao seu redor, e nada lhe faz ficar contente... que agora, você só deseja “voltar pra sua gente”. São versos doloridos, mas se me torturo com as palavras que te puxam para longe de mim, me esforço para caprichar na beleza da melodia tão linda que Roberto criou. Derramo meu amor pelas notas e viajo em verdades que podem estar enroladas naquelas palavras, debaixo desses caracóis de seus cabelos.

Então dou um pigarrinho e começo a cantar: Um dia a areia branca, seus pés irão tocar... Seus bracinhos me apertam enquanto cantarolo as primeiras linhas. No verso seguinte, você aproveita a carona, salta para dentro do meu ritmo e num uníssono, canta comigo enquanto me aperta a mão e deita o macio de seu rosto em minha perna. Me oferece seus caracóis e eu vou cantando...

E diz a letra, que a água azul do mar vai molhar seus cabelos. Canto aquelas notas, resignado. Aquelas promessas não são páreo para a quarentena do coronavirus. Confinada em casa, aposto que você iria preferir tocar areias brancas, ver janelas e portas se abrindo. Então me esforço para que você se sinta em casa, e vou cantando e passeando meus dedos pelos caracóis de seus cabelos.

Sorrio e choro imaginando esse tal mundo tão distante. Que mundo será esse que te traz essa vontade contida? O que poderá entristecer seu olhar quando você andar pela tarde, sentir vontade, sentir saudade, sonhar. Você que tem todas essas luzes e esse colorido ao seu redor, aqui na casa onde mora.

A música me dói cantar, mas você está aqui, me abraça e canta junto. Meus dedos ainda viajam pelos caracóis de seus cabelos. Quero ficar aqui mais um instante cantando para você dormir. Me pré-ocupo de uma saudade que um dia sei que vou sentir.

Sei que vai chegar um dia em que você irá embora de verdade, você vai crescer, vai correr mundo, conhecer gente, lugares, ventos e mares, ideias e sensações. E eu vou ficar em casa te esperando até que então, vou ver você chegando num sorriso. Então levanto e corro abrir portas e janelas, olho para fora e vejo você com seus pés descalços, pisando a areia branca. Você voltou, porque consegui fazer desse lugar, seu paraíso.

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Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos
Roberto e Erasmo Carlos



Um dia a areia branca
Teus pés irão tocar
E vai molhar seus cabelos
A água azul do mar

Janelas e portas vão se abrir
Pra ver você chegar
E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar
De um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade
De ficar mais um instante

As luzes e o colorido
Que você vê agora
Nas ruas por onde anda
Na casa onde mora

Você olha tudo e nada
Lhe faz ficar contente
Você só deseja agora
Voltar pra sua gente

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar
De um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade
De ficar mais um instante

Você anda pela tarde
E o seu olhar tristonho
Deixa sangrar no peito
Uma saudade, um sonho

Um dia vou ver você
Chegando num sorriso
Pisando a areia branca
Que é seu paraíso

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar
De um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade
De ficar mais um instante

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O poder do amor



Então descobri-me ateu.

Mas suponho que posso chamar de Deus a esta angústia que sinto no coração diante da inexorabilidade do universo. Esse universo, tão cego e surdo a tudo ao seu redor. Universo que se expande, cresce, roda e recicla. Esse universo que não tem preconceito, não faz distinção entre quem merece ou quem não merece estar no caminho de suas decisões, sejam elas as mais assustadoramente arbitrárias ou aquelas mais cabalmente justas. A verdade é que não há justiça, tampouco injustiça, apenas o haver, apenas o acontecer.

Em duas decisões, esse universo que não faz esforço algum para agradar ou desagradar,
Punir nem recompensar,
Perdoar ou agradecer,
Escutar ou ignorar.

Universo esse que impõe sua aparente invencibilidade aos fracos e fortes, brancos e pretos, crentes e descrentes, ricos e pobres, presentes ou ausentes, estúpidos ou inteligentes.

É angústia que abre espaço no peito, se acotovelando entre assombro e terror, entre deslumbramento e indignação, entre medo e desejo.
É angústia que não pode ser ouvida porque emana de lá de dentro, cuja voz bem conheço.

É angústia de estar em meio a tanta vida e tanta morte, tanta beleza e tanta tragédia; tanto amor e tanto ódio.

É o belo que dói,
O feliz que aflige,
O ínfimo que oprime,
O gigante que definha.

É angústia por não poder estar em todos lugares ao mesmo tempo, por saber que não há tempo sobrando para se sentir cada dia que passa nessa vida com a intensidade que acho que estar vivo merece.

É por isso que recomendo gastar seu tempo do lado de quem você ama, pois sei que de tudo aquilo que sinto e não posso provar que existe, só uma coisa merece minha atenção, só uma coisa vale a pena acreditar.

Amor é o nome dessa coisa.
Coisa essa que me mantém vivo
Coisa essa que me permite acreditar no dia de amanhã.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Barbárie e empatia


Em 1997, um grupo de cinco jovens delinquentes ateou fogo em um índio Pataxó, que dormia em uma parada de ônibus em condição de rua. Naquela madrugada, eles vinham de uma balada, tinham bebido bastante. Estacionaram o carro ao lado da parada de ônibus, desceram, e munidos de álcool e fósforos atearam fogo ao homem que dormia. Galdino, o índio, não resistiu aos ferimentos e morreu.

Na época, a barbárie causou comoção no Brasil todo e muito se especulou sobre os motivos que levam as pessoas a cometerem crimes tão horríveis.

Com o tempo, ficou mais claro entender que quando em grupo, as pessoas tornam-se capazes de atos que não teriam sido, se estivessem sozinhas. O grupo produz uma espécie de aval, já que a culpa não pertence mais a este ou àquele, mas a todos. Mais que isso, se o grupo avaliza, a culpa se invalida, já que tecnicamente, o coletivo prevalece sobre o individual.

Durante 350 anos, o Brasil escravizou, torturou, explorou e matou pessoas negras, roubadas de seus lares, separadas de suas famílias, destituídas de suas identidades, de suas culturas, de seus nomes, de suas próprias personalidades como seres humanos. Por volta de 1700, o meio intelectual discutia se os índios eram de fatos desprovidos de alma ou não, e discutiam se poderiam ser ou não, ser “salvos” por meio do batismo cristão, custasse o que fosse. Para todos os efeitos, eram almas perdidas e qualquer ação contra eles era plenamente aceita e avalizada pela sociedade, o que incluía a igreja católica, naturalmente. Já a situação dos negros, sequer era levada à discussão, negros eram considerados subespécie e ponto final.

Durante o nazismo, a sociedade alemã rapidamente aceitou como correto o antissemitismo e avalizou qualquer atitude contra o povo judeu. À frente desta, seu líder, que era visto como o homem que veio para salvar a Alemanha dos graves problemas econômicos que o pós primeira guerra infligiu à população, mostrava-se realizado com o aparente sucesso de seu plano de limpeza étnica. Eu poderia continuar enumerando um sem número de crimes contra a humanidade, idealizados, promovidos e avalizados por seus líderes.

Os seres humanos são animais difíceis de lidar, mas apesar de suas imprevisibilidades, me parece simples entender que os humanos são além de apenas um animal social, um animal paternalista. O humano necessita ter um superior. A dificuldade em assumir as responsabilidades que a vida impõe às pessoas, é facilmente (mas apenas aparentemente), solucionada quando estas, consideram que existe algo ou alguém acima delas, produzindo um efeito de responsabilização e avalizando seus atos. Essa responsabilização é ilusória, é claro, mas o efeito emocional que a figura paterna de um chefe, um presidente ou mesmo uma religião causa nas pessoas, é capaz de fazê-las agir, como não agiriam se de fato, assumissem seu livre arbítrio como característica inescrutável e pessoal de cada um.

Na madrugada de ontem, uma pessoa sozinha ateou fogo em um morador de rua, que morreu logo após. O criminoso estava sozinho, decidiu se aproximar enquanto o homem dormia, e cometer seu crime. Ele não estava acompanhado de nenhum grupo. Quando vejo uma coisa assim acontecendo, me questiono nossos rumos a partir de amanhã. Me questiono quais são as ideias e circunstâncias, que na mente doentia daquele sujeito, conseguiram ratificar, funcionando como aval para seu ato hediondo.

Imediatamente me vejo olhando em volta e vendo pessoas de fato preocupadas com o avanço da economia, ou com a alta da bolsa. Me esforço tremendamente, mas não consigo me preocupar com essas coisas. Sinto que nos falta o básico, nos falta o essencial, nos falta a essência, nos falta uma ideia do que significa ocupar espaço, enquanto destruímos um planeta, avalizados por nos considerarmos seres superiores e absolutos, reinando sobre todos os demais e governados por mentes que consideramos superiores a nós ou simples ideias de seres divinos.

Os humanos têm uma dificuldade primordial: colocar-se nas calças do outro. Haverá solução para isso um dia? Certamente que não, e é por isso que é preciso abrir a boca, é preciso protestar, é preciso reclamar, bater panela, botar a boca no trombone, porque quem se cala diante da barbárie, torna-se parte da própria barbárie.

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e ...