A entrega do voo em equipe
Os recordistas mundiais de voo em parapente, Fleury, Cecéu, Frank Brown, Samuca,
Saladini, Bigode... têm uma receita que eles construíram e que invariavelmente dá
certo para se conseguir conquistar um voo incrível:
Ah tá... lá vem o Sivuca outra vez com essa conversa... eu
já faço isso, diz o Joãozinho. Será?
Nos últimos anos tenho nas raras oportunidades que arrumo
para voar, experimentado me esforçar ao máximo para conseguir voar junto com
outro(s) piloto(s), juntos de verdade. Mas tenho encontrado uma impressionante
dificuldade em fazer isso acontecer. Eu tive a honra de ter sido convidado
pelos cariocas da equipe Guaratiba Fly para voar com eles e temos feito algumas
experiências formidáveis juntos.
Mesmo assim, depois de algum tempo, olho ao redor e posso
concluir que são poucas as pessoas que realmente praticam o voo em equipe de
forma completa, sendo que uma parte sequer sabe como funciona e uma outra
simplesmente não consegue aderir às pequenas e simples regras que são
essenciais para que o voo em equipe aconteça.
Contando para vocês o que aprendi com Rafael Saladini, mesmo
que, lamentavelmente sem nunca ter tido o privilégio de voar junto com ele,
gostaria de chamar a atenção dos pilotos para algumas vantagens que fazem do
voo em equipe, na minha forma de ver, muito mais que uma evolução de nosso
esporte, mas uma necessidade essencial para quem quer voar mais tempo e mais
longe.
Vou contar o que acontece comigo e suponho que seja o que possivelmente
terminará acontecendo com muitos de vocês.
Eu voo de parapente há 28 anos, já tenho 52 anos de idade,
voo com equipamento CCC até hoje porque é onde me sinto mais confortável, ao
menos por enquanto. Quando vou voar, sinto uma necessidade muito grande de me
concentrar no exclusivamente no voo, fazendo um esforço especial para dirigir
todas as energias para um voo seguro e de alto rendimento. A verdade é que nosso
esporte é muito perigoso e o nível de risco é muito alto, por isso considero
que temos de tomar muito cuidado para que o ato de voar nunca se transforme numa
coisa banal, onde você vai lá apenas por ir, porque não tem outra coisa para
fazer ou porque não está a fim de ficar lavando o carro no sábado. Para reduzir
o nível de risco, transformo minhas excursões de voo num ritual, voltado
inteiramente para o ato de voar. É por isso que hoje em dia você quase nunca me
encontra em uma rampa para apenas “um voozinho”.
Levando isso em conta, percebo que a energia gasta em um voo
é bastante alta, onde um voo de cinco, seis, ou mais horas, pode ser tão
cansativo quanto insustentável. Provavelmente você não verá mais o Sivuca
fazendo grandes voos sozinho simplesmente porque eu acho muito chato e
cansativo ficar sozinho com toda aquela imensidão ao meu redor e ter de tomar
todas aquelas decisões por tanto tempo sem descanso. Quando eu consigo dividir
isso tudo com outra pessoa, passo para outro estado, encontro novas motivações e
me sinto preparado para enfrentar voos enormes, como os que fiz em Quixadá com
cerca de 10 horas de duração. O que acontece é que durante um voo em equipe, as
várias tarefas que você tem de dar conta quando está voando sozinho se dividem
entre os membros do grupo.
Então, posso listar algumas tarefas que somos obrigados a
assumir na íntegra, durante o voo inteiro, quando fazemos voos longos e que
podemos ao menos durante vários momentos, dividir entre os membros do grupo:
1.
Fazer contato com o resgate pelo rádio.
2.
Manter-se atualizado sobre dados de planeio, distâncias,
rotas, velocidades e direção do vento, estradas e locais de pouso. (sempre tem
um nerd que adora isso)
3.
Escolha de mini-rotas (vou pra baixo daquela
nuvem ou pra cima daquela cordilheira?).
4.
Lembrar dos horários de hidratação, alimentação
e necessidades (xixi).
5.
Triangular a próxima térmica.
6.
Encontrar um núcleo mais favorável na térmica
atual.
Ninguém vai fazer xixi por você, mas muita gente se esquece
de beber água, se alimentar e fazer xixi. Ter alguém para te lembrar disso durante
o voo, assim como poder deixar a decisão da mini-rota daquele momento para
outro piloto ou ficar falando com o resgate no rádio, é uma forma de relaxar um
pouco a tensão. Isso tem um efeito muito importante, especialmente se levarmos
em conta que várias vezes eu estava muito cansado e pronto para me preparar
para o pouso quando um colega do grupo localizou uma nova ascendente e lá fomos
nós para a base outra vez. Enquanto no dia anterior fizemos juntos um voo
fantástico com um quase triângulo FAI de 150km, o meu penúltimo voo foi feito
sozinho. Meu companheiro de voo, o André Abrantes fez uma saída ruim e terminou
na frente da rampa e eu, sozinho. Tentei sinalizar e “arrastar” alguns colegas
que cruzei pelo caminho, mas ninguém atendeu meus apelos, então resolvi pegar
pesado e acelerar o voo para relembrar os tempos de competição. Duas horas e
meia depois eu estava pousado cansadíssimo, com 110km voados. Poderia ter voado
muito mais, ainda havia no mínimo três horas de voo, o que significa que
naquele dia eu poderia ter voado mais de 200km... mas onde estava a disposição
para fazer isto sozinho? (Pausa para rir do Sivuca dizendo que quase fez um voo
de 200km quando fez só 110..).
No voo que fiz na companhia do Grandão e do Fabrício em
Quixadá a dois anos, fizemos 300km. No quilômetro 200 eu não aguentava mais, não
estava mais com saco de procurar térmica, queria pousar... Grandão achou uma termal
e lá fomos nós para a base novamente. Esse cenário se repete com frequência,
não é fácil ficar horas e horas pendurado no parapente e ainda tendo que
decidir e administrar um monte de coisas simultaneamente. Quando podemos
relaxar um pouco e deixar alguém decidir para qual nuvem iremos, ajuda
bastante.
É nessa hora que o Joãozinho me pergunta: É, mas e se o cara
decidir a nuvem errada? E eu respondo: Joãozinho, você nunca decidiu ir para
nuvem errada? Quem disse que suas decisões são sempre certas? Esta é a questão
que provavelmente impede algumas pessoas de aceitar o voo em equipe, temos uma
opinião muito alta a respeito de nós mesmos, custa-nos a crer que outra pessoa
poderia ser capaz de tomar decisões tão acertadas quanto as nossas e daí somos
levados a não confiar nos outros pilotos e terminamos voando sozinhos. Triste não
é? Até que ponto isso é uma verdade para muitos de nós?
Veja só, existe uma regra essencial para o funcionamento do
voo em equipe que é: Quando se aproxima o momento de sair de uma térmica
(porque está ficando fraca, ou porque o grupo tem pressa), quem sai primeiro é
quem está mais baixo. E Joãozinho desesperado levanta a mão: Mais baixo tio?
Então estou me fodendo pra subir, todos estão 100m mais alto que eu e eu é quem
tem que sair procurando térmica? Isso mesmo, Joãozinho, você sai e todos saem
atrás (e mais alto) que você para te ajudar. Se não for assim, ou seja, se
todos esperam quem está mais alto sair, o grupo se fragmenta. Imagine o grupo
como um ser alado, uma Quimera voadora onde cada parapente é um membro do corpo
da Quimera. Se a Quimera perde um braço, pode morrer... a Quimera precisa
manter sua forma para poder voar. Inteira, ela é muito mais eficiente
simplesmente porque ela é muito maior e muito mais capaz de encontrar o melhor
núcleo da termal, além de ter uma capacidade maior de encontrar a próxima
termal, simplesmente devido ao seu tamanho.
Se voarmos pensando que não podemos
nos distanciar do colega, conseguiremos manter a forma da Quimera e ela
conseguirá voar mais longe, durante mais tempo. A Quimera abre suas asas ao
máximo para fazer a tirada e isso significa que os pilotos voam lado a lado,
sempre evitando alinhar em fila com o companheiro da frente. É preciso abrir as
asas para cobrir mais espaço, isso facilita muito encontrar a próxima térmica. Ora,
se um parapente tem 11m de envergadura, dois parapentes conseguem cobrir no mínimo
30 metros facilmente... o que três parapentes podem fazer, chega a ser covardia.
Enquanto você não pode estar em dois ou três lugares ao
mesmo tempo, dois ou três parapentes na mesma térmica conseguem triangular o
melhor núcleo com uma eficiência muito superior. Noutro dia, um colega que
tentamos trazer para a equipe e não conseguiu passar da primeira térmica alegou
que voamos muito baixo. Achei aquilo muito divertido de escutar e até brinquei
com ele comparando com o adolescente que fez uma campanha enorme para que seus
pais permitissem que ele fosse a uma festa com os colegas à noite e na última
hora ele desistiu porque sua calça preferida estava lavando.
Então o voo em equipe é uma verdadeira entrega, em muitos
momentos você deixa de fazer aquilo que acreditava para fazer aquilo que o
outro acreditou. Isso é uma coisa muito dura para muita gente e volto a
afirmar, especialmente aquelas que não são capazes de acreditar que existe alguém
na face da terra capaz de tomar decisões tão acertadas quanto elas mesmas. O André
Wolf me disse que se para nós parapentelhos, voar em equipe é uma coisa difícil
de fazer, para os voadores de asa é ainda mais complicado, pois eles são muito
mais antigos no voo e consequentemente carregam uma carga cultural de voo
individual muito mais poderosa que nós... vamos então aproveitar nossa posição
de vantagem e fazer algo mais bacana, galera?
Voo em equipe não requer parapentes de altíssimo desempenho,
nem instrumentos tecnológicos de ponta, a única coisa é que o grupo tenha mais
ou menos o mesmo nível técnico e voe parapentes mais ou menos parecidos. Então é
perfeitamente possível você ter um ano e meio de voo e juntar-se com dois ou três
de seus amigos voando parapente B e conseguirem fazer um voo espetacularmente melhor
do que você seria capaz de fazer sozinho.
Ah, Sivuca, você está sendo irônico, pois basicamente você afirma
que o voo em equipe não acontece porque as pessoas são arrogantes, não é bem
assim.
É mesmo, Joãozinho? Então me explique por que o voo em
equipe não acontece.
E Joãozinho me olhou em silêncio...
Sivuca