quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A Van da Discórdia

Foi ainda outro dia, muito recentemente, tão recentemente que ainda molha o dedo de tinta. Deveria haver um aviso de “Tinta Fresca”... mas aí... já ia aparecer um pra questionar, né? Se a tinta é fresca, deveria ser pink, porque é a cor de “frescura”, então meninos de azul, meninas de rosa e coisas frescas de pink. Mas a coisa é que essa tinta é feita de todas as cores porque essas coisas não têm cor, só têm rancor, só têm dor e ainda lhes faltam uma boa dose de amor. 


Mas não foi nada tão grave não, foi só uma conversa, daquelas de van, de gente que não tem para onde ir, está confinado dentro do cubo metálico. Não teve soco na cara, não teve insulto direto, não teve assassinato, e olha que essas coisas acontecem a toda hora, todo dia em todo lugar. Aqui no Brasil, no país que mais mata bicha no mundo, acontece mais fácil que vento leste.

Mas como dessa vez foi só uma conversa, então me conta o amigo que se queixou com o grupo, contando que ele estava chateado, pois ele, que só queria conversar, bater um papo assim, jogar conversa fora, mas no final a conversa terminou em tumulto, virou a “Van da Discórdia” como ele mesmo contou. O caso é que vinham todos juntos, justamente dentro da tal van e voltavam de um lugar, com sérios planos de ir para outro. 

Foi mesmo bom que estivessem voltando, assim o episódio da van da discórdia ficou só para a volta, quando todos já tinham se divertido bastante, esgotado todas as possibilidades de risos e brincadeiras, de festa e diversão. Se tivesse sido na ida, aí teria complicado, pois discórdia na ida costuma atrapalhar o evento. 

Então era uma daquelas horas em que o povo já tinha se divertido além das pencas, e alguém chega à brilhante conclusão que não faz sentido a essa vida possa ser mesmo tão legal assim gratuitamente. Entredentes, o sujeito pensa que para levar uma vida tão boa, ele só pode ter algo de especial. Afinal, privilégios e mordomias não são coisa para se entregar para qualquer um, é preciso ter um diferencial, uma indicação, é preciso não ser apenas mais um na multidão. É nessa hora, quando aparece um sujeito que sente que merece algo mais que a simples multidão, que umas coisas doidas começam a acontecer dentro dele. Dá até para descrever, um tipo de força que aparece dentro do peito, um tipo de poder, como de Superman hétero, uma força de eu posso, você não pode, eu tenho, você não tem, eu mereço esse lugar na van mais que você, Rosa Parks (mulher negra símbolo do movimento segregacionista norte-americano, a que em 1913, se recusou a dar o lugar dela para um branco no ônibus, mesmo sendo o que dizia a lei naquela época).  

É assim que acontece, é assim que termina, com o sujeito fazendo sua descoberta interna onde ele não é só mais uma pessoa no mundo, mas um especial do tipo Dias Paes, ou um Especial Borba Gato, como o da estátua escravagista, ou um Especial Plínio Salgado, da escola fascista brasileira, talvez um Especial Cabral, do cara que descobriu uma terra que já tinha dono ou um especial Messias B., aquele sujeito lá no palácio que o Niemeyer construiu, enfim especial assim Especial com E maiúsculo.

Então, sem mais desvios de assunto e conduta, voltemos à van... a van da discórdia, lembra? E em meio as reflexões filosóficas que costumam tomar espaço no ócio das longas quilometragens que a estrada proporciona, um dos colegas, despretensiosamente faz um comentário a respeito de outro colega que não estava presente: “Ele é muito inteligente, apesar de ser gay”. Pelo menos cinco ou seis pares de olhos se arregalaram nessa hora e o dono de um par deles, que não se aguenta debaixo de suas cabeleiras, movimenta o indicador como ponteiros do relógio que urgem para que o tempo pare e manda um “Alto lá... o senhor por acaso está insinuando que basicamente gays não são inteligentes e esse nosso amigo conseguiu romper alguma espécie de conexão invisível que mantém a população LGBTQI+ dentro dos limites da estupidez?”. Naturalmente, a resposta vem precedida do clássico sufixo  “Veja bem” e completa: “não foi isso que eu quis dizer...”... Não quis, mas disse, bem parecido com o sujeito que atropelou os ciclistas com suas bicicletas na beira da estrada, também disse que não queria fazer aquilo, mas pelo que entendi, apesar do fato consumado do sujeito ser gay – tom de lástima, lamento ou rejeição – ele até que é surpreendentemente inteligente. 

Nesse ponto, os ânimos se enriquecem e uma argumentação inflamada segue viva, apesar da pretensa falta de inteligência apontada na direção da população gay e a van segue incólume por seu caminho pelo asfalto quente. Mas, por onde passa, cabeças se viram em sua direção, possivelmente para tentar esclarecer a curiosidade que o aroma que exala de seu interior, deixa nos acostamentos da estrada. Um aroma que pede para ser compreendido. Não é aroma novo, o cheiro lembra coisa velha, como a parte de baixo da almofada do sofá, ou o pano de chão que largado molhado ao lado da máquina de lavar na semana passada, já secou e ficou meio duro, ou então aquele odor de lista telefônica da Telesp, ou de camiseta de candidato no fundo da gaveta de baixo.

Não que estes cheiros sejam incomuns, mas a gente só costuma sentir quando chega perto de algo que já teve sua chance e em meio a velocidade com que as coisas acontecem hoje em dia, as coisas velhas rapidamente perdem espaço para as coisas novas. 

Dentro da van, seguia a discórdia, não que todos discordassem entre si, mas uma boa parcela a bordo discordava da atribuição mencionada, entretanto alguns refletiam: seria possível isso? Seria de fato possível que existisse uma relação entre a sexualidade de uma pessoa e seu nível de inteligência? Entre as mentes que matutavam esse assunto, uma se recordava dos relatos enviados à corte portuguesa quando da descoberta do Brasil, em que alguns deles falavam sobre as pessoas nuas e ignorantes que aqui habitavam. Naquela época ficava muito claro entre as mentes formadoras de opinião, que de fato os índios seriam menos inteligentes que os portugueses, quando não, bastante pouco dados ao trabalho. Viviam em choupanas improvisadas e mesmo aqueles tidos como detentores de posições de maior destaque hierárquico, sequer se preocupavam em utilizar roupas. De fato, os índios sequer possuíam alma, nem poderiam ser de fato, filhos de Deus, mas sim eram como almas perdidas que só poderiam encontrar a redenção se terminassem se convertendo em cristãos. Era muito claro que aquilo em que os europeus de Portugal acreditavam só poderia ser o certo, enquanto os índios, só poderiam estar errados. 

O mesmo podia ser dito a respeito dos escravos negros que foram trazidos ao Brasil a seguir. Os escravos, como diz o nome, eram uma mercadoria, propriedade de alguém que poderia dispor dele da maneira que desejasse. Esse dono de escravos tinha poder de vida e morte inclusive. Escravos não era diferentes de um boi ou um cavalo, talvez um pouco mais caros, talvez capazes de fazer tarefas mais complexas, mas o português europeu branco não acreditava que um escravo fosse capaz de competir com sua inteligência.

Naquela época, não existia o conhecimento de DNA que temos hoje e certamente aquelas pessoas não tinham como comprovar que tanto um índio quanto um negro eram de fato seres humanos absolutamente idênticos a um branco e era aqui que a van da discórdia ia ficando cada vez mais interessante, afinal, se dois seres humanos de cores diferentes são exatamente o mesmo ser humano, não é possível que a cor vá afetar o nível de inteligência daquelas pessoas. Da mesma maneira foi embaraçoso lembrar que até onde a tecnologia atual de escrutínio da estrutura genética, os homossexuais também possuem exatamente a mesma configuração de DNA dos heterossexuais e que uma pesquisa de 2019 feita com mais de meio milhão de pessoas sustenta que é virtualmente impossível predizer por sua informação genética, se aquela pessoa será homossexual ou heterossexual. Sendo assim, atribuir um nível mais baixo de inteligência aos homossexuais fica parecendo um arriscado passo na direção de um comportamento que objetiva desmerecer as diferenças entre os seres humanos e nesse caso, a orientação sexual.

Mas apesar de sacudir levemente, muito mais pela irregularidade do piso, a van da discórdia seguiu seu caminho até o destino e lá todos se despediram lembrando os agradáveis momentos que tinham passado juntos, fizeram promessas de novos encontros, novas festas, mais cerveja e alegria e cada um seguiu seu caminho. 

Mas no fundo do pensamento de alguns, algo havia mudado.  


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flores para uma pessoa viva

Você pode escutar esse texto em meu podcast no Spotify clicando aqui.


Flores para uma pessoa viva

Poliana assistia impassível aos seus dias sendo arruinados cada vez que se deitava na cama para enfrentar o intervalo entre dormir e acordar para o próximo. Tentaria dormir girando sob as cobertas enquanto as horas iriam se arrastar até que, de manhã a luz do dia entraria pela janela. Colocaria os pés para fora dos cobertores e antes mesmo de tocar o frio do chão, sentiria medo. Recolheria os pés num átimo, como se os tivesse tocado em brasa, mas era gelo que também queimava. Seu amigo e colega de trabalho Daniel, havia morrido meses antes, ingênua vítima da pandemia, não havia durado dez dias, talvez tivessem sido nove. Deixou a família em prantos, os amigos incrédulos, os colegas assustados e seus planos, desmoronaram enquanto sua vida se tornava estatística. 

Entrar no ônibus era assustador e em meio a essa loucura, amigos morrendo, máscara, distanciamento, notícias horríveis escorriam da tela do celular. Sentada no canto do ônibus, calculava como chegaria ao trabalho ilesa. Levantava-se para apertar o botão do próximo ponto e planejava cuidadosamente como faria para sair do veículo sem tocar naqueles canos, naquelas superfícies impregnadas de suspeitas e terror. Na mesa, diante de seu computador, organizava suas tarefas meticulosamente, revisando cada item para que tudo ficasse perfeito. Uma perfeição possível, embora questionável, passava pela tela do PC, enquanto ao seu redor, uma imperfeição irresponsável e incorrigível controlava o mundo enquanto estendia seus dedos frios e nodosos em sua direção. Sentia medo, sentia-se oprimida. 

Em fevereiro, alguém a empurrou no ponto de ônibus e arrancou a bolsa de suas mãos. Atônita, acompanhou com os olhos o seu correr pela rua movimentada, arriscando a vida entre os veículos. Ela, que salvava moscas de se perder na vidraça da janela, torceu para que um carro atingisse aquele rapaz com sua camiseta de futebol. Imaginou seu corpo voando no espaço enquanto o tempo passava e ele corria até desaparecer na esquina do outro lado.

Então seu companheiro também contraiu o mal. Isolou-se no quarto enquanto pela fresta da porta, ela empurrava o prato de macarrão. Depois, ambos sentados contra a porta, separados pela madeira fria, perdiam-se em tentativas de palavras que se estendiam em longos e sóbrios silêncios. Seus olhos corriam pelo corredor enquanto observava as sombras na parede da cozinha, tentando invadir o apartamento. Encolhia os tornozelos para quase debaixo de si e no frio do piso, deixava a lágrima molhar seus joelhos. Enxugava o rosto com o dorso da mão, soltava um boa noite enquanto tocava a fórmica e cambaleava até a cama. No dia seguinte, tudo recomeçava. Era hora de fazer algo.

Decidiu abandonar o trabalho, na primeira manhã fria do início de outono, irredutível comunicou aos patrões, enquanto escutava suas monótonas sugestões alternativas inalcançáveis. Férias, descanso, afastamento... nada disso servia. Só a demissão traria o caráter definitivo que ela precisava impor a qualquer parte de sua vida tão incerta, tão cheia de dúvidas.

Ao longo daqueles vinte dias, as horas se arrastaram enquanto organizava seu trabalho e as tarefas que iria passar para seus colegas. Criou tabelas, procedimentos, tudo com a costumeira perfeição que lhe resgatava das dúvidas do dia seguinte. Ao longo daqueles vinte dias, consultou especialistas, aviou receitas, lidou com melhoras e pioras. Recebeu a compreensão e o consolo dos amigos e familiares, mas seu olhar traduzia o desespero que sua alma habitava. Poliana se esforçava para acreditar que um dia conseguiria superar aqueles dias, mas suas esperanças apareciam cobertas por uma névoa incompreensível.


Então chegou o dia da despedida, imaginei que seria uma coisa boa fazer uma pequena homenagem, com flores, talvez. Procurei uma floricultura sem sucesso quando me lembrei que ali perto do cemitério, certamente haveria alguma, e acho que flores de perto do cemitério são flores como quaisquer flores que florescem e alegram o coração de qualquer cidadão. Encontre-se facilmente, entrei e fui recebido por uma moça silenciosa. “Bom dia, gostaria de flores para uma pessoa viva.” – “Claro”, disse ela me apontando alguns arranjos agradáveis na extremidade da loja. Escolhi um bonito buquê e enquanto ela o preparava, encontrei um grande cartão colorido. 

Deixei o buquê dentro do carro e entrei no escritório dirigindo-me ao pessoal. Conversei em separado com cada um deles, contando que aquele seria o último dia de Poliana enquanto estendia aquela cartolina colorida dobrada, pedindo que escrevessem algumas palavras de carinho.

Horas depois, o cartão voltou para minhas mãos. Abri-o e vi o papel coberto de palavras que se espremiam para poder transmitir suas mensagens. Eu fui lendo enquanto as primeiras lágrimas brotaram de meus olhos. O amor contido nas palavras de seus colegas me comoveu, pessoas que nunca imaginei que um dia fossem escrever qualquer coisa, colocaram naquele papel, suas emoções sinceras, seu carinho e sua compreensão. Havia de fato, amor no coração daqueles colegas de trabalho. Então, comovido, conversei com Benício que concordou que seria mais prudente que eu entregasse o presente em particular e assim decidi fazer. 

Entrei na sala de Poliana abrindo a porta que dava de frente para sua mesa de trabalho, ela virou o olhar em minha direção e eu coloquei o buquê sobre a mesa. Comecei a falar, mas os soluços vieram enquanto tentava dizer que tínhamos feito uma homenagem para ela. Fui incapaz de terminar a frase. Atirei-me em seus braços em prantos, não por perder minha secretária, mas por ver minha amiga partir em meio a tanta dor sem que eu tivesse conseguido ajudá-la. 

Sem saber direito como agir, ela me abraçou e me apertou com seus braços. De repente eu estava sendo consolado pela pessoa mais triste que eu conhecia, parecia então, que eu tinha conseguido superá-la em sua tristeza. Haveria então a tristeza definitiva? Quem então era a pessoa mais triste do mundo? Como se mede a tristeza? Essas perguntas não estavam sendo verbalizadas, mas de alguma forma, Poliana percebia que elas existiam. 

Foi então que eu disse: “Me dá uma dessas pílulas que o psiquiatra te deu, vai?” Nessa hora ela riu, riu pela primeira vez em tanto tempo e eu senti que ela poderia sair e um dia, voltar refeita. Entre soluços, eu lhe disse: “Está vendo como você é capaz de rir? Logo você estará bem, você vai vencer, Poliana, você consegue, menina!”

Pela primeira vez então, Poliana pareceu acreditar que conseguiria, e no final daquela tarde, com um discreto pedacinho de sorriso no canto de seu lindo e dolorido rosto, partiu confiante de que ela teria uma chance.

 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Finalmente te amo, pai.

Empurrei devagar a cadeira de rodas, presente de uma amiga querida, vencendo as irregularidades da calçada de Itararé até pararmos em frente à praia. Uma brisa suave soprava do mar, trazendo humidade e calor. Estacionei a cadeira e me sentei no banco olhando-o de frente. Falei sobre o tio Alfredo, sobre a Tia Madalena e ele apenas aquiesceu com um leve sorriso. Então ele agarrou os aros da cadeira e iniciou algumas pequenas manobras, se esforçando para movimentar a engenhoca. Fiquei observando espantado, pois andava acostumado com sua flagrante passividade, finalmente ele agia. Perguntei então, se ele tinha gostado da cadeira. Ele fez que sim com a cabeça, num gesto previsível dentro de seu universo de poucas palavras, mas então me surpreendeu outra vez comentando que era boa, porque ele andava com medo de cair.

Concordei formalmente, mas dentro de mim uma surpresa imensa se materializou. Pela primeira vez na vida eu o via confessar um medo. Ele, que sempre havia sido tão orgulhoso a ponto de perder a credibilidade, fazendo sempre questão de deixar uma impressão de invencibilidade inabalável, constantemente acompanhada do eterno bom humor com toques de ironia e arrogância, finalmente me confessava um medo, seu medo. Poderia ter feito isso antes, Seu Fernando... para que demorar tanto até admitir que você é apenas humano?

E como humano, ele tentou ser o melhor pai que pode conseguir, mostrou seu amor das maneiras mais estranhas, pois se por um lado, sua generosidade era flagrante, um estranho véu de violência pairava constantemente sobre muito do que ele fazia. Era seu método, ele estava se esforçando e acreditava nele. É claro que da minha parte, muito do seu método era reprovável, levei muito tempo para me desvencilhar da dor dos tapas, fingir esquecer do medo dos gritos e da tensão de seus passos ressoando pelo corredor de casa, mas acho que consegui chegar lá. Senti que se eu não conseguisse perdoá-lo, entendendo sua maneira de ser, uma mágoa iria me corroer para sempre, então vi que era preciso recuar e olhar para as “boas coisas”.

Ele me ensinou a apertar parafusos, martelar pregos, torcer arames, cortar e soldar fios. Me apresentou ao mundo dos carros de corrida, das marcas de automóveis, do futebol (que eu nunca consegui gostar), das antenas e transceptores do radioamador e se não fosse por isso, eu talvez nunca teria me tornado tão fluente em inglês. Ele me ensinou a dirigir e com 15 anos, eu conduzia seu caminhão carregado com 4 toneladas de tambores de latão e dois trabalhadores grandões de meu lado. Ele me ensinou a não ter medo de altura, a não ter medo de desafios, a não ter medo do amanhã. Com ele, aprendi a gostar de mim mesmo, aprendi que eu poderia ser quem e o que eu quisesse ser. 

Entre tapas na orelha, brigas de trânsito e o claro desprezo pelos mais fracos, ele me valorizou, me respeitou e confiou em mim. Com o tempo, me tornei adulto e o “pai” gradualmente virou o “Seu Fernando”. E o filho se tornou um confidente, um companheiro de profissão e de vida.

Aprendi que meu estúpido pai também era meu maravilhoso pai.

Então, dentro do carro para um raro passeio pela avenida, mandei que ele apertasse o cinto e segui em frente. Parado na luz vermelha, olhei sua mão esquerda encolhida sobre a perna e a tomei em minhas mãos suavemente. Abri seus dedos e acariciei sua palma enquanto aprendia curioso as débeis linhas. Virei aquela mão, e acariciei a fina pele sobre os ossos dos dedos, então a luz verde apareceu e eu acelerei segurando o volante. Alcancei o celular e coloquei “Sapore di Sale” no Spotify, abri as janelas e deslizando a 25km/h, tomei a orla do oceano Atlântico que soprava sua brisa suave pela janela. Trocamos um olhar incógnito, mas que para mim significava só uma coisa: Eu já te perdoei pai, então é hora de dizer que te amo.

 

domingo, 7 de março de 2021

Vamos ser pais?

VAMOS SER PAIS?

Foi a pergunta que rompeu a rotina daquela manhã. Só consegui olhá-lo nos olhos e abrir um sorriso. Era mais um sorrir que sim, do que um sorrir de “Ficou louco?”. Já havíamos viajado tanto, e tantas viagens haveriam por vir, então por que não embarcar nessa nova aventura? Durante os sete anos que havíamos vivido juntos, parecia que tínhamos sincronizado muito bem nossa vida dividida entre os dois. Aos poucos fomos aprendendo mais e mais a respeito de nós mesmos e da arte de conviver com outra pessoa. É algo parecido com uma locomotiva sobre os trilhos da vida, cada um de nós é uma dessas composições motorizadas, capaz de rodar pelos trilhos puxando seus vagões e dirigir-se ao seu destino. Quando duas pessoas decidem viver juntas, duas dessas máquinas se conectam, tornam-se capazes de subir uma montanha ou puxar uma quantidade maior de vagões, dividindo as forças, uma ajudando a outra.

É nessa hora que fica claro que ao dividir sua vida com outra pessoa, projetos que normalmente seriam muito difíceis de engajar sozinho, tornam-se factíveis. Algo como fazer uma viagem incrível, construir uma casa, ou até mesmo, criar um filho. Não que sozinha, a locomotiva não teria forças para subir montanhas ou puxar muitos vagões, mas quando você sabe que é possível dividir forças, o peso da responsabilidade também fica dividido e tudo fica mais fácil.

Mas as ferrovias variam, algumas possuem mais ou menos curvas, outras mais subidas e descidas, cruzam cidades, precisam parar em mais estações. E à moda das ferrovias, nossas vidas percorrem caminhos mais ou menos complexos. Talvez uma possível complexidade que vale a pena comentar é o fato de sermos um casal diferente da maioria, pois somos dois caras (poderíamos ser duas garotas) e vivemos num país homofóbico, bastante homofóbico por sinal. 

Mas a homofobia ainda não tinha nos incomodado diretamente, talvez por conta de nossa aparência truculenta, dois carecas fortões, que de uma forma ou de outra, ajuda a despertar alguma cautela nos mais impulsivos, tínhamos tido uma história de tranquilidade em todos os lugares que havíamos frequentado. Viajamos por países comunistas, onde dividimos a mesma cama em todos os hotéis, a mesma mesa em todos os restaurantes e o mesmo espaço em todas as calçadas. Não tínhamos recebido nada diferente de sorrisos.


Tenho a impressão de que a palavra-chave desse aparente sucesso é auto aceitação. A verdade é que pessoalmente nunca me senti desconfortável como gay, nunca estive no armário de fato, pois enquanto namorava garotas, até o início de minha vida adulta, sequer percebia que de fato eu preferia estar com rapazes. Quando descobri que me interessava mais por eles, simplesmente virei naquela direção e segui com a vida. Com o Alejandro, também tinha sido assim.  


É mais ou menos como gostar de sorvete de chocolate, você passa anos e anos de sua vida curtindo os sorvetes de chocolate belga, africano, meio amargo, ao leite, com ovomaltine ou chocolate chip... tudo bem, vive feliz e curte a festa. Até que um dia, alguém te oferece um sorvete de morango. Você reluta um pouco, oferece certa resistência como é natural quando aparece algo novo para ser enfrentado, mas a pessoa insiste e você termina experimentando o tal sorvete de morango. Você experimenta, percebe o sabor e as texturas, os pedaços de morango, a cor e o cheiro. Então sua cabeça dá um estalo, algo acontece e você se olha no espelho questionando: “Onde foi que eu estava com a cabeça e ter preferido sorvete de chocolate até hoje?”. Então, sem maiores dramas, você passa a ser um voraz consumidor de sorvete de morango e todas suas variações. Logo você se vê usando uma camiseta de sorvete de morango e fica orgulhoso de ter tomado uma decisão em sua vida, uma decisão que poderia ter acontecido há muito tempo, apenas era uma questão de ter experimentado a nova possibilidade. Você não se lamenta pelo “tempo perdido”, afinal não houve tempo perdido, apenas houve uma outra variedade de sorvete, de resto, tudo segue como antes. Você continua comendo pizzas, churrasco e tomando cerveja. Você continua mergulhando no oceano, voando de parapente, tocando um instrumento ou montando um modelo de plástico. A única coisa que de fato mudou é que o sorvete de chocolate vai sendo preterido, vai ficando cada vez mais, como uma bicicleta velha que você não curte mais e encosta em algum canto da garagem. 

Talvez por considerar minha sexualidade apenas um dos muitos aspectos de mim mesmo, e não ter me tornado um tipo de fanático com relação a isso, eu tenha me habituado a lidar com essa parte de mim de uma maneira suave. Quando algo é importante demais, a gente parece ficar mais preocupado e carrega aquilo com mais tensão. Essa suavidade me deu segurança e a sexualidade se tornou apenas mais um detalhe sobre mim mesmo. É um detalhe, mas pode ou não ser bem aceito, então você age com a precaução natural que teria com qualquer outro aspecto, mais ou menos como ter o cuidado de não ir ao estádio de futebol com a camiseta da torcida do outro time.

Eu não tinha imaginado que um dia iria me tornar pai, isso acontece, acho, com a maioria dos casais homoafetivos. É uma quebra de paradigma, afinal existe a figura do casal papai e mamãe, entalhada em nossa cultura. O macho no sofá com a cerveja e o futebol e a mulher na cozinha com as crianças ao redor, ranho escorrendo, cachorro latindo, bonecas jogadas no velho tapete, latas vazias e restos de comida na mesa de centro. Lendo essa frase assim, parece até piada, mas essa cena está no imaginário popular, impressa na cultura da gente, geração após geração. Então, arrancar essa gravura de dentro da sua antiga moldura e trocar por outra onde aparecem dois carecas revezando um bebê fofo enquanto o outro esquenta a mamadeira parece algo difícil de acontecer. Talvez um pouco porque me encantan quebrar paradigmas eu tenha dito que sim com aquele sorriso e confirmado com um “ora, então vamos ser pais?”.

A ideia tinha tudo para dar certo porque havia uma base fundamental vivendo em nós naquele momento. Era o amor que sentíamos um pelo outro, o amor que sentíamos pela intensidade de viver uma fascinante aventura após a outra e é claro, o amor completamente eterno e incondicional que explodiu como fogos de artifício que serenam prata sobre a escuridão da praia, como a aparição de uma fada de Grimm, envolta em luz, tule e estrelinhas, que lança um feitiço, um passe de mágica sobre nossos corações diante da mais remota notícia de que poderia haver uma criança, pendurada no bico de uma valente cegonha, percorrendo florestas e cidades, voando entre nuvens ensolaradas, tempestades implacáveis e oceanos bravios, a caminho de nossas vidas, a caminho de nosso ninho, a caminho de nosso lar.

 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Eu queria acreditar

Eu queria acreditar...


Eu queria acreditar, pedir aos espíritos, aos Deuses e Santos.

Que escutassem meus pedidos, minhas rezas, meus Cantos

E olha que não são poucos, a lista é grande, são tantos.


Mas meu pai foi-se embora, me deixou sozinho em casa.

Lembro dele ainda agora, batendo seu par de asas

Agora sou eu e meus desejos, minhas vontades e anseios.

Resolvendo meus problemas, preparando meus esquemas.

Estou sozinho, é o que vejo


Já perdi a esperança, de que uma fada apareça.

E faça assim com a mão, realize meus caprichos.

Escute meus cochichos, e com a varinha de condão, 

gentil e delicada me toque a cabeça.


Ou talvez um pai de santo, me traga essa alegria.

O mesmo alguém morto, me mande a psicografia.

O mulá, o rabino, ou Meca, e me curvo para Alá

E me dê o que eu preciso, para eu trazer para cá.


O tempo vai passando e me diz "você perdeu"

Descobriu que não tem santo, não tem fada não tem Deus

Levanta do chão e sacode a poeira

Pega a sacola de abre um sorriso e vai pra feira

Sai pra rua e grita bem alto: eu sou mais eu.


Pois não basta querer para acreditar, é preciso perceber, ver, analisar

E entender a física, a química, a primeira e a última

E repetir mais de mil vezes, eu queria acreditar.


 

Arrogância do bem também faz mal

Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita pri...