sexta-feira, 29 de abril de 2022

O homem invisível


O homem invisível troca a fralda do filho. Imóvel na cama, ele apenas observa. Com seus olhos tão vivos, corre por tudo ao redor, parece que tenta buscar vida em todas as outras partes do seu corpo. Este par de olhos em busca de vida, se esforça para concentrar toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida. 

E o filho observa. Sente, pensa, opina, envia suas mensagens. Claro, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar com uma atenção especial, onde é capaz de sentir, ouvir, receber suas mensagens. 

E lá vem a mãe correndo, Ela abraça, mima, protege, alimenta, escuta e fala, descreve tudo ao redor para que seu filho escute suas palavras dando nome a todas as coisas, dando contorno ao seu pequeno mundo. O filho  responde o sorriso com seu olhos cheios de vida. Vida que esbanja e a mãe sabe disso, porque a mãe sente, a mãe ouve, a mãe ama.

Mas o filho está preocupado, tem medo de ficar sem respirar, então ele pisca o olho e o homem invisível verifica a saturação. Está baixa, então olha para o filho e seus olhos se encontram. De um jeito que não entendi ainda, através do olhar ele entende que o filho tem dificuldade para respirar. E o homem invisível faz o procedimento. Limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira. E então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já se sente melhor. A tecnologia ajuda, o oxímetro confirma e o homem invisível relaxa um pouco e a mãe descansa os ombros e o filho olha para ambos sorri com os olhos.

Sabe? O filho tem medo, mas não de monstros, não dos lobisomens que uivam no quintal, nem da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim e nem do monstro que mora embaixo da cama. O medo que o filho sente é de ficar sozinho, de não ter mais olhos para olhar, olhares para trocar, pele para sentir. 

Em seus sonhos, flutua sobre a cama, levanta voo e sai pela janela, flutuando sozinho pelas ruas do bairro. Penetra na escuridão do bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem. Finge que tem o medo que ele não tem. Olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem. Sente um arrepio na espinha que pouco sente, e lá está a mula sem cabeça com suas labaredas e seu grito de relincho e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E continua sua jornada entre árvores até que sai pela rua sem medo. Ele sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu vendo sua casa lá embaixo e quando chega perto das nuvens, sente um tipo de pequena solidão. Mas mesmo assim fica feliz porque pode escolher para onde vai, escolher seu caminho, pode flutuar como quer e voar por onde quiser. Então ele sai do bosque, volta para o bairro e  lá está sua casa no fim da rua. Entra pela janela do quarto e vê os lençóis e os aparelhos com suas luzes  piscando e seus foles ocupados em inflar e desinflar. E os fios ligados e a cama tranquila e acolhedora, nem liga para o monstro que mora debaixo dela. Ele finge que tem medo porque criança sempre tem medo de monstro. Mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.


Então, a mãe acorda assustada. Escutou um som. Foi a janela que se fechou? O alarme disparou? Os aparelhos biparam? Foi o filho que se engasgou? Preocupada, a mãe sai da cama, e corre até o quarto do filho em busca daquele olhar. Encontra aqueles olhos que lhe dizem para se tranquilizar. Foi só um passeio, mãe... eu saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens, estava tentando sentir só um pouco uma  tal pequena solidão, mas não precisa se preocupar. E a mãe solta uma lágrima, é só uma, filho. Eu preciso deixar escapar. 
Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar. Então o homem invisível, com o lado da mão, alcança a bochecha molhada e as seca. E a mãe fecha os olhos e mergulha no abraço do homem invisível. 
E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.   

E o homem invisível volta a contar histórias, a conferir os aparelhos e levanta os olhos para encontrar naquele olhar do filho, toda a vida que esse pedaço de vida tenta sempre encontrar. E naqueles olhos tão cheios de vida, onde vê o esforço para olhar, encontra a força para contar histórias sem parar. E o filho também tem histórias para contar, quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem e viu as labaredas da mula sem cabeça com seu grito horroroso, mas nada disso deu medo. E quando voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.


Era domingo, final do dia, o homem invisível se sentou olhando o horizonte enquanto o sol mergulhava entre os prédios. Sentiu vontade de chorar, mas lembrou que não podia,  pensou nos vários anos que haviam passado enquanto aqueles olhos furtavam seu olhar e tentou se lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar.

Lembrou de sua avó que o levava visitar as crianças e as velhinhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, ficavam deitadas sem conseguir se levantar. Havia um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que mesmo tão novinho, conseguia perceber que dentro do olhar do menino sem braços, não havia medo de monstros, não havia medo naquele olhar. E ele brincava com o menino, corriam pelo pátio, e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse. Se ele cair, como vai se apoiar? Então ele tentava correr mais devagar, mas o menino não ligava, corria o mais rápido que podia até cansar e o homem invisível corria desajeitado atrás dele e quando finalmente parava, ele finalmente podia encontrar um pouco daquele olhar.

A avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar. Junto com sua avó, o homem invisível levava aquelas velhinhas ladeira acima para passear. Quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.

O homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, escolhas, erros e acertos, idas e vindas. Sentiu o vento bater em seu rosto e um dia, perto das nuvens, sentiu uma pequena solidão, mas ficou feliz em poder escolher para onde ir. 

Um dia o homem invisível encontro outro par de olhos. Trocaram olhares e sentiram que podiam continuar assim. Se olharam, foram morar juntos e se amaram. Então veio o filho e eles também o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo de monstro, de lobisomem, de mula sem cabeça. Só o medo de não ter ninguém para amar.  

E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam em seu olhar, porque viam dentro daquele olhar  que ele era o lugar onde existia a mais essencial das coisas: o saber amar.


sábado, 23 de abril de 2022

Acabando com "isso aí..."

Era um país que já vinha calejado, o ranço burguês contra o sucesso do operário que virara presidente, já irritava há tempos, onde já se viu um parvo presidente? Que direito tem ele, vindo do encardido da graxa das máquinas, sentar-se à cadeira máxima do Planalto? Como se atreve a gastar tanta energia com a gentalha do nordeste? O novo presidente era o símbolo de um levante indesejado, o triunfo do proletário, a derrota da burguesia, era campanha Marxista deslavada, desavergonhada. Muita gente não gostou nada daquilo, apesar do avanço do país, o velho inconformismo falava mais alto.

O operário soube orquestrar relações, foi eleito duas vezes e suas conquistas foram derradeiras para garantir que pela primeira vez na história do país uma mulher se tornasse Presidente da República. Porém com ela, as coisas não foram tão fáceis, sua habilidade política coincidia com seu baixo nível de paciência e ela não custava muito para botar senador corrupto pra fora do gabinete. Uma mulher que fora torturada pelo sistema militar, tinha muito pouca paciência para lidar com os filhos desse mesmo sistema, herdeiros da ditadura, netos do império e da escravidão, filhos de tempos em que lugar de preto era na senzala e em nenhum outro lugar, tempos em que lugar de operário era o chão da fábrica, tempos em que a empregada não andava de avião, tempos em que o filho dela, nascido sabe-se lá de qual pai, não fazia faculdade, tempos em que favelada não vendia discos muito menos virava empresária, bons tempos em que lugar de mulher era na cozinha, com a barriga no fogão, e que homem de verdade não tinha isso aí de viadagem, e se tivesse, era doença fácil de curar na porrada, na facada e no tiro. Naquele tempo, não tinha mimimi, homem não se vestia de mulherzinha, eram tempos em que preto, se não cagava na entrada, cagava na saída... Preto apanhava primeiro, porque preto só queria roubar seu dinheiro, e bandido bom era bandido morto, e direitos humanos defende criminoso e mulher feia não merece ser estuprada, e torturador da ditadura merecia busto em praça e nome de rua.

A mulher presidenta tinha que cair e não foi difícil encontrar uma desculpa para tirá-la do cargo, a tal da pedalada cinicamente serviu para o propósito.

As denúncias de corrupção funcionaram como uma conveniente desculpa para um grupo de pessoas que odiava pobre, poder se voltar contra eles. A classe média que vivia cercada pelos muros do condomínio, comendo picanha e tomando cerveja de grife não podia ser simplesmente invadida por aquela gente. 

Ela caiu em meio a um show de horrores em seu lugar o decrépito vice-presidente assumiu o cargo.

Na época, o discurso era cheio de pompa, um padrão empolado que irritava e cansava especialmente a classe média. Foi então que surgiu um sujeito que tinha uma fala desbocada, parecida com a de nossos tios quando discutiam futebol ou jogavam truco, um jeito suburbano e grosseiro de expressar, ao estilo churrasco de sábado com cerveja além da conta, vocabulário de briga de trânsito, de discussão em portaria de clube, de barraca de feira, o clássico barraco baixaria que fazia parte do dia a dia de muitos brasileiros. No discurso do impeachment, homenageou um legítimo torturador, justamente aquele que havia sido responsável pelas torturas que durante o regime militar foram impostas inclusive à própria presidenta. As pessoas ouviram aquelas palavras e ficaram imersas em um letárgico, dolorido e assustador silêncio. Nascia ali um vírus, uma doença que levaria um bom tempo para ser curada 

E os cidadãos de bem, detentores do estandarte da família tradicional brasileira, adoraram. Finalmente alguém que não tinha frescura, não tinha o tal mimimi, que falava de porrada, que criticava a viadagem, que mandava mulher calar a boca, capaz de dizer na cara de uma deputada, que ela não servia nem para ser estuprada. E aquelas palavras foram normalizadas e isso causou arrepios em muita gente.

Assistimos atônitos o despertar de sentimentos represados e reprimidos e desesperados acompanhamos o resultado final das eleições, aquele homem grosseiro, que fugira de todos os debates e entrevistas, simulou uma facada que despertou uma simpatia inédita em uma parte indecisa da população, justamente aquelas pessoas que mergulhadas em uma história de paternalismo, sentiam falta de um ícone, de um ídolo para chamar de seu. Deu certo, junto com a desmoralização do partido dos trabalhadores, aquelas pessoas acreditaram que o método porrada era a solução. Entre eles, muitos se sentiram identificados com aquele comportamento preconceituoso, machista, homofóbico, xenófobo, misógino, com sua arrogância lasciva. Eram pessoas que tinham sido forçadas a se calar durante os anos anteriores, pelo avanço do politicamente correto. Agora, finalmente aparecia alguém para lhes dar o aval que elas desejavam, e era justamente o presidente da república. 

Nada do que veio a seguir nos impressionou mais do que envergonhou. O novo presidente revelava a cada palavra, a cada decisão, um pouco do que vinha: colocar em prática sua política fascista até as últimas consequências. Suas gafes em todas as áreas eram constantes, sua falta de habilidade política ultrapassava o grotesco enquanto isso, um estranho silêncio emanava da imprensa. 

É claro que muito foi dito contra ele, mas considerando a situação, esperava-se muito mais. Sua retórica continuou fascinando uma pequena multidão que foi gradativamente percebendo a falácia de tudo aquilo, mas um pequeno grupo muito fiel, que se identificava com a essência daquele pensamento, permaneceu agitando suas bandeirinhas verde-amarelas até o final.

Os dias iam virando história, certamente um dia os filhos de nossos filhos abririam o livro de história do Brasil para saber sobre o tempo em que nosso país se transformou em uma nova ditadura fascista sob o comando de um sociopata chamado Jair Messias Bolsonaro.


Arrogância do bem também faz mal

Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita pri...