quarta-feira, 19 de julho de 2023

Protestar é viver - Posfácio não publicado do livro Ventomania

Naquele dia fui até a janela do quarto com minha filha Sol, munido de um par de panelas e colheres de pau. Foi dia de panelaço. Juntos, batemos aquelas panelas, gritamos e rimos muito, por um bom tempo enquanto revezávamos o samba com os vizinhos que se manifestavam em peso. Depois, levei-a para a cama e contei uma história. Então ela me perguntou por que afinal tínhamos batido as panelas. Eu expliquei que fazer barulho daquele jeito é uma maneira de lembrar às pessoas que nós também existimos, que não somos apenas sombras numa janela, que somos gente como qualquer outra gente, que somos uma família, que se ama e tem o direito de ser feliz.

Elis Regina disse que "há perigo na esquina", então é preciso estar atento e quando percebermos que nossos direitos estão sendo atacados, devemos abrir a boca, bater panelas e protestar contra os perigos enquanto podemos.

É porque protestar é viver, é mostrar a cara, é contar para as pessoas que eu e você também existimos, é lembrar a nós mesmos, que estamos vivos, que não somos menos do que ninguém.

Ela sorri, diz que ama, diz boa noite, dou-lhe um longo beijo e a cubro com os lençóis. 

A cumplicidade dela é peculiar, a relação com minha filha vai além de pai e filha. Não sou nada autoritário, o que às vezes termina me fazendo parecer que temos a mesma idade. Então juntos, nos divertimos e aprontamos travessuras. Ela parece ter um pedacinho de meu irmão morto, agora vivo, aqui perto de mim, um pouco como reencarnação, se eu acreditasse nisso, apesar de achar a ideia eletrizante.

Uma vez li um texto interessante (e viajante) que, por trás de nossa aparência física, existe uma espécie de corpo inorgânico. Essa deliciosa teoria conta que esse ser inorgânico é algo como um “casulo luminoso”. O casulo é a essência daquilo que somos feitos, algumas pessoas podem chamar isso de “alma”. Esse tal casulo é, ou ao menos deveria ser, perfeito. Mas então, quando nos tornamos pais, involuntariamente cedemos um pedaço do casulo para ajudar na construção de nossos filhos. No lugar de onde saiu o pedaço, fica um buraco, e por esse buraco, passa um fluxo infinito de amor incondicional. Esse fluxo nos conecta, como que por fios, com nossos filhos. Parte desses fios poderão um dia se romper, mas o buraco permanece e apesar de poder ser disfarçado ou chegar perto de ser reparado, nunca mais desaparecerá. Essa conexão permanece ali para sempre, porque somos pais e para sempre, amaremos nossos filhos, independentemente de que caminhos eles sigam.

Escrevi esse texto para que fosse o posfácio de meu livro Ventomania, uma vida voando de parapente, mas era tarde demais, o prelo já rodava e a gráfica acelerava. O posfácio ficou, mas aqui está ele para a próxima edição, quem sabe talvez até lá, não será preciso protestar...

O livro "Ventomania, uma vida voando de parapente" pode ser adquirido aqui.


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Vida de gente, vida de cão

 

Chorei hoje igual bebê,
como há muito não fazia.
Jogado no sofá,
abraçado na almofada,
abri um berreiro daqueles raros,
verdadeira agonia

Não era isso que eu queria,
preferia de outro jeito,
um jeito que tivesse jeito.
Mas como jeito não havia,
a gente logo dá um jeito,
porque não tem nada mais mal feito
que bicho em agonia.

Bicho é feito de alegria,
veio aqui pra passar bem,
E se bicho sofre, meu amigo,
arruma logo um jeito certo,
de provar para teu bicho,
que você é o cara certo
feito de amor, cuidado e respeito
que ele pode confiar
porque você é do bicho,
seu melhor amigo.

Ser humano é uma coisa doida né?
Vem pra Terra pra aprender a ser gente,
levar porrada, perder uns dentes
ralar muito e quem sabe um dia,
chegar ao fim da vida,
olhar pra trás e pensar sobre a vida,
poder falar que valeu a pena,
vida que não foi pequena,
vida que foi bem vivida.
Não foi vida vivida para o outro, 
mas, interessante e plena vida, 
dessas que dá gosto de viver
de poder dizer, essa foi minha vida,
e saber que viveu bem,
cada dia dessa vida
até o dia de morrer.


Vejo a gotinha tão branquinha
que passava pelo tubo
como bilhete só de ida
pra quem já viu de tudo.
A lágrima da doutora
atrapalha pra achar a veia,
como quem não quer fazer
o que a profissão permeia.

E dormiu um sono pesado,
e com as mãos senti seu corpo
passeei por seus densos pelos,
e vi o medo acelerar seu coração
um pouco de pavor talvez
tentando resistir
batendo pela última vez.

E falamos da vida,
das coisas boas,
dessas que fazem a gente
sentir gosto pela vida,
dessas que fazem a gente
querer se apegar mais,
ao que nos resta dessa vida.

É porque vida é sempre o que te resta,
o que ainda falta pra viver,
porque vida passada só serve pra uma coisa
te ajudar a melhor viver melhor,
essa vida por viver.

E tremeu a orelha dele um pouco,
Doutora! Ele tá vivo!
Não, meu amigo, você não tá louco,
é só uma contração, um último adeus,
pra lembrar que nessa vida de cachorro
é bom você saber,
é preciso ter um dono,
alguém que te respeite
e que cuide de você
até na hora mais difícil,
até na hora de morrer.


Hoje meu bichinho, meu cachorrão, meu lindo, meu Ozzy fechou os olhos tranquilos depois de um monte de carinho. 
O Ozzy era um pastor alemão, viveu quase 12 anos. Foi adestrado quando pequeno aprendeu a tomar conta da casa. Quase todos os dias trazia presentes que encontrava pelo jardim. Tomava conta da casa como ninguém. Minha filha Sol passou a vida com ele, deixou muita saudade.

Muito obrigado a dra Bia da Clínica Veterinária e Pet Shop Dra Bia, aqui na Vila Mascote pelo carinho e pelo profissionalismo. +55 11 94202-5804

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI uma última vez. Percorri o corredor antisséptico iluminado com um branco intenso e virei a direita para encontrar com meu pai. Lá estava ele, deitado, imóvel, com a boca ligeiramente aberta e a cabeça um pouco inclinada para trás. Em sua flagrante impermanência, fiz um esforço para tentar enxergar alguma beleza por trás daqueles tubos e daquela expressão vazia. 


Era meu velho pai, um homem cuja vida chegara ao fim. Então me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta, não sei se porque eu preferia assim, diante da gravidade de seu quadro, ou porque ele já estava imerso em uma letargia guiada por remédios contra as dores que sentia. Ele ofegava ligeiro, numa dificultosa respiração. Olhei para seu rosto e reparei que as rugas da testa estavam relaxadas. Isso me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa, daqueles capazes de arrumar briga no trânsito de rolar pela calçada agarrado com quem fosse que o houvesse fechado, enquanto pelos vidros do carro, a família assistia apavorada a grotesca briga gratuita e completamente aleatória. Ora, mas afinal alguém o havia fechado e esse era o pretexto que ele normalmente apresentava como justificativa para um estranho tipo de busca por violência, dessas que se manifestam tão rapidamente quanto são capazes de desaparecer. E de fato, poucos minutos depois, desaparecia como se algum tipo de êxtase tivesse sido alcançado enquanto suspirávamos de alívio por poder ter nosso pai de volta, inteiro, ao menos aparentemente.

Afeto, dedicação e generosidade eram os principais ingredientes que meu pai utilizava para tratar aqueles que pertenciam ao lado de dentro do perímetro imaginário que constituía uma espécie de condomínio, feito para proteger as pessoas que ele amava. Mas as regras eram claras, era ele quem mandava e os eventuais desmandos recebiam a devida punição. Do lado de fora daquelas paredes imaginárias, ele alegava um mundo ingrato, que aparecia para conspirar contra ele e contra os seus.

A hierarquia clássica da sociedade neoliberal machista regia a estrutura familiar, o que significava que mesmo se ele tivesse chegado à questionável conclusão de que o mundo profissional não era mais digno de sua participação ativa, continuava demandando como se ele fosse o modelo de homem atormentado pelo trabalho braçal, que chega em casa cansado na noitinha e não quer nada mais que seus chinelos, o jornal, um café recém coado e a seu programa favorito na TV.


Mas meu pai às vezes ia para a cozinha e cuidava de preparar algo. Às vezes um “bauru”, em outras produzia montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente preparava a massa recortando-a e recheando-a com pedacinhos de queijo fresco que regava com um pouquinho de orégano. Se alguma visita havia sido convidada e se espantava com os deliciosos pastéis que ele fazia, ele dava um sorriso orgulhoso e respondia: Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio... E com esses chistes, deixava a imaginação da gente à solta, viajando na ideia de como seria a vida de um cozinheiro num grande cargueiro que navegava os oceanos com todo aquele monte de gente... e você responsável por uma cozinha tão imensa que quase não dá para ver a parede do outro lado. 

Eu imaginava como teria sido que alguém solto no mundo, perdido pelos 7 mares, cada vez passando por um porto diferente que nunca havia visitado antes, teria repentinamente largado a vida de homem do mar, da maresia, do sal grudado nos cabelos, do sol impiedoso que queima a pele da nuca, para a monotonia de um lar de classe média paulista, administrando um negócio de recuperação de resíduos de fábricas de torneiras e sifões.

Se ele de fato havia um dia trabalhado no navio, ou apenas contava essas estórias para inconscientemente, manifestar onde ele de fato gostaria de estar e o que gostaria de fazer, não vinha ao caso. O interessante é que naquelas estórias do “tempo do navio”, estavam contadas verdades que só viviam em seu mais profundo ser. Histórias de um tempo fictício, de um desejo distante que ele nunca deixava de revelar, e sem notar, escancarava uma vida vivida de maneira tão disfarçada quanto explícita.

Alguns dias antes de ele piorar e terminar naquela enfermaria de UTI, eu o conduzi de cadeira de rodas até meu carro. Enquanto empurrava a cadeira pela calçada, disse para ele que o amava. Aproveitei para dizer que também que o perdoava, e completei que não iria explicar os motivos de eu o estava perdoando, porque ele sabia muito bem. Talvez ele tentasse se justificar de alguma maneira. Talvez ele tivesse até a razão mas meu coração precisava perdoá-lo e foi isso que eu fiz. Para mim foi um alívio muito grande, eu já havia passado dos 50 anos e havia carregado dentro do meu coração, um peso que naquela hora, o larguei em algum ponto entre a sarjeta e a calçada. Provavelmente a próxima chuva o arrastou peso para dentro do bueiro e de lá para as águas do oceano onde dissolveu-se para sempre. Ele então me olhou nos olhos e falou como há muito não fazia: 

— Tenho medo de cair.

Fiquei surpreso e orgulhoso pois era a primeira vez em toda a minha vida que meu pai manifestava na minha presença, sentir medo de alguma coisa. Para mim isso era uma conquista porque quebrava o paradigma da imagem indestrutível, que tanto ele havia se esforçado para manter inabalável ao longo de sua vida.

Dentro do carro ajudei-o a colocar o cinto de segurança, peguei a avenida principal, abri todos os vidros naquela tarde de calor e liguei o som com a música “Sapore di sale”. Agarrei a mão de meu pai pela primeira vez depois de muito tempo e fomos curtindo a música, a brisa da tarde e o calor do sol em nossos rostos.

Finalmente, e pela última vez, segurando sua mão naquela cama de UTI, eu disse a ele:

— Pai, um ônibus vai vir te buscar. Quando ele chegar você pode descer da cama e entrar, ele vai te levar embora desse hospital. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, na beira do mar e lá no final da linha, vai estar o Fernandinho te esperando junto com a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina. Acho que seu pai, o vô Nin também vai estar lá. Vá com eles, vai tranquilo, que eu fico com a mamãe por aqui. Vamos ficar bem... Aí depois a gente se fala. Faça uma boa viagem e obrigado por ter sido meu pai.


Olhei para aquele rosto com suas imperfeições e senti que ao menos por um momento, eu havia conseguido encontrar uma forma de beleza traduzida na transitoriedade daquela vida que se transformava em uma simplicidade inigualável, um retorno ao inanimado, um estado fundamental, tão simples, algo rústico, porém magnificamente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eu consegui fazer pastéis tão gostosos eu respondo: Eu aprendi a fazer há muito tempo atrás, quando eu trabalhava no navio. 


segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre carneiros e lobos

Vivia em uma floresta uma matilha de lobos já há várias gerações. Viviam tranquilos, cuidavam da prole e passavam horas de ócio nos finais das tardes de verão ou dentro de cavernas no inverno. 

Quando batia a fome, um ou dois saíam em busca de comida que caçavam e traziam para dividir entre toda a matilha. Parecia uma boa vida aquela dos lobos.

Do outro lado do vale, numa fazenda que plantava algodão, vivia um grupo de carneiros. O dono da fazenda produzia fios de algodão e de lã para a fábrica de roupas que ficava na periferia da cidade grande. Da plantação retirava o algodão e dos carneiros, retirava a lã.


Naquele tempo ainda não existiam máquinas colhedeiras, então a colheita era feita pelas pessoas que trabalhavam na fazenda que retiravam os nacos de algodão da planta usando as mãos, que invariavelmente estavam sempre machucadas. O problema é que a cápsula onde o algodão fica preso é áspera e é preciso puxar com as pontas do dedos, o que provoca ferimentos regulares ao redor das unhas. Além disso, o esforço repetitivo ao se colher algodão por horas a fio também provoca dores nos dedos e mãos, e naquela fazendo isso era especialmente comum, já uma vez que as pessoas eram pagas por produtividade, quanto mais eram capazes de juntar algodão, melhor o pagamento, que por sinal era bem pouco. Para dizer a verdade, se porventura alguém não conseguisse fazer a jornada diária de 12 horas, dificilmente conseguia o suficiente para alimentar a família no jantar. Eram vidas sofridas as daquelas pessoas.


Entre aquelas pessoas havia um homem chamado Heinz. 
Heinz, que em alemão vem de Heinrich e que significa "rei" ou no mínimo "o dono do castelo", de rei não tinha nada, mas tinha quatro filhos e sua esposa Helga, que de sua descendência nórdica tinha puxado a força e a garra das mulheres que muitas vezes tornavam-se guerreiras tão ou mais poderosas que muitos homens. Helga cuidava da casa, dos filhos, da pequena plantação e ainda costurava para fora e apesar da ajuda de Heinz com seu trabalho na colheita de algodão, passavam grandes necessidades. 
Fato é que Heinz, que já estava se aproximando de seus 40 anos, não contava mais com a disposição dos mais jovens, o que na Europa do século XV significava o início do fim da vida.

Logo de manhã cedo, quando o sol estava apenas nascendo, Heinz passava em frente ao grande celeiro que ficava ao lado do pasto onde ficavam os carneiros que naquela hora, estavam sendo organizados para a tosquia. Os carneiros eram organizados em fila e então, cada um passava pelo mesmo ritual onde sua lã era cuidadosamente raspada para que pudesse ser enviada para a mesma fábrica de roupas que também comprava o algodão. Heinz via que os carneiros eram bem tratados e alimentados, mas tinham de lidar com aquele período de cerca de seis meses até que a lã voltasse a crescer. Durante o restante do tempo, os carneiros apenas pastavam e confraternizavam.  A chateação de ficar um tempo “pelado”, na realidade nem era tão ruim assim, pois normalmente isso acontecia no final da primavera, o que significava que durante o verão que entrava, os carneiros ficavam mais confortáveis por conta do calor.


Mas durante o restante do tempo, os carneiros brincavam, conversavam com os amigos, apoiavam os que choravam, incentivavam os artistas, reprimiam os arrogantes e condenavam os fascistas. Os carneiros mais novos, cresciam felizes, frequentavam a escola, recebiam aulas de matemática, história e carneirês (a língua dos carneiros daquela região). Também estudavam ciências, investigavam causa e efeito, a força da gravidade a força centrífuga... até filosofia, discutiam o ontem, o hoje e o amanhã, voltavam a discutir causa e consequência, mas dessa vez sob o viés filosófico.  

Mas uma coisa incomodava os carneiros... vez por outra um lobo invadia a fazenda, sequestrava e matava um deles para alimentar sua família na floresta, então os carneiros, apesar da aparente vida tranquila viviam num constante estado de tensão, pois sabiam que a qualquer momento, um deles poderia ser o próximo a virar comida de lobo.

Naquela tarde, Heinz estava tão cansado que antes do final do dia decidiu encerrar seu trabalho e entregar a pequena quantidade de algodão que havia conseguido juntar. Recebeu seu soldo, contou as poucas moedas, colocou-as no bolso das calças surradas e cabisbaixo, tomou o rumo de casa. Ao passar ao lado do pasto dos carneiros, reparou que entre berros e certa agitação, eles haviam se aglomerado em um canto do pasto. Olhou na direção oposta e viu um lobo se aproximando. O lobo agiu de maneira rápida e decidida, correu na direção do bando, que dispersou, mas um deles ficou para trás. O lobo então, saltou sobre seu pescoço e em segundos havia matado o animal que tratou de arrastar em meio aos gritos dos demais.


Quando chegou em casa, mostrou o dinheiro que havia recebido à sua esposa Helga, que não gostou nada, pois o pouco que recebera, mal dava para pagar o jantar das crianças, então nesse momento, tomada de fúria, amaldiçoou seu marido Heinz e o expulsou de casa. Heinz, envergonhado saiu da casa e sentou-se sobre uma pedra no quintal. 

Então Heinz ergueu os olhos para o céu e clamou por uma ajuda de Deus. Nesse momento uma luz intensa brotou de dentro das nuvens que já estavam escurecendo com o final do dia e uma voz profunda ecoou na montanha perguntando a Heinz:

— Se é tão ruim sua vida, tão cheia de revezes e injustiças, meu filho Heinz vejo que não é a vida que você desejou, Sendo assim, posso  então transformar você em um animal para que experimente nova vida. Mas... Só existem duas possibilidades. Em qual delas você prefere te transformar? Um lobo ou um carneiro?

Heinz não pensou duas vezes, fez logo sua escolha e imediatamente o Deus todo poderoso lhe concedeu seu pedido. Então naquela noite, sob a luz do luar, na companhia de seus iguais, com os dentes vermelhos de sangue, Hanz celebrou sua nova forma com seu inocente, porém apetitoso; trágico, mas belo; rápido, porém inesquecível, repugnante, mas delicioso jantar. 






sexta-feira, 24 de março de 2023

Água batida na pedra


Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha muito simples, um senhor chamado Seu Beraldo. 

Com seus dedos calejados, seu Beraldo verte água de um jarro de barro em uma surrada caneca de alumínio e me oferece para beber enquanto diz:

— Essa água não é água de torneira não viu? Essa é água da cachoeira, ela vem “batida na pedra!

Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.

Curioso, inclino a caneca contra meus lábios enquanto observo os pequenos olhos de seu Beraldo por cima do alumínio enquanto bebo da frescura que o gélido líquido me oferece.

— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?

Ele ri e explica que é diferente sim, porque se a água da torneira escorre pacífica para dentro do caneco quando você torce a registro, a água da cachoeira, de pacífica não tem nada. Ela é muito mais escolada, vivida. Água de cachoeira é água experiente, sofrida, é água “batida na pedra”.

— Isso deixa ela muito especial, sabe, tá vendo que o gosto é diferente?

Eu bebo mais um gole e penso: talvez... está geladinha. É uma água gostosa.

— Mas como é isso seu Beraldo? Como é esse negócio de “batida na pedra”.

— É assim, rapaz, eu vou te explicar pra ocê entendê. Pra mó di essa água chegar aqui pra dendessa caneca que ocê tá bebeno, a água num chegô assim tão fácil quinem a água da tornera... Ela sofreu todo tipo de ataque! Ela veio batendo nas pedra do riacho, desde lá de cima, passou por um monte de redemoinho, percorreu muitos quilômetro e terminou se atirando de vários metro até bater com toda força no chão cheio de pedra do rio... é uma água transformada e por isso, ela é especial, precisa sentir o gosto dela que é de água batida na pedra.

— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.

— Aproveita rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa água não, lá é só água de torneira ou de supermercado. Eu vou te dar um galão e você leva um pouco pra sua casa pra tomar.

Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...

Anos depois, a empresa onde trabalho contratou pessoas trans para o quadro de funcionários, foi então que ao conhece-las um pouco melhor, algo da vida delas me fez lembrar do seu Beraldo e da água “batida na pedra”. 

Percebi que as pessoas trans são de alguma maneira, como água de cachoeira, que passou por todo tipo de porrada na vida, muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas pela família (dá no mesmo), tiveram várias portas batidas em suas caras, foram agredidas, discriminadas e inclusive covardemente assassinadas. A gente sabe que o psiquismo humano tem muita dificuldade em aceitar as diferenças. A ideia de que alguém possa ser ao mesmo tempo feliz e diferente é o motor da maior parte do preconceito e infelizmente funciona como gatilho para a violência. A gente sabe também que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Só essa informação já é suficiente para que qualquer pessoa trans automaticamente sinta-se ameaçada pelo simples fato de viver em nosso país.


E água é fluido, adapta-se de imediato onde quer que esteja. Água toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Água evapora, pode fugir da força da gravidade, água congela, tornar-se sólida como rocha. Água passa pelos menores buraquinhos, pode ser centrifugada, movimentada, torcida, pode ser batida na pedra com a força que você quiser. É fácil a vida da água...

Mas pessoas de carne e osso não são tão fluidas assim. Pessoas “batidas na pedra” não saem ilesas no final da cachoeira. Essas porradas deixam marcas, cicatrizes, deixam dores e traumas que requerem muito, muita fluidez aquática, muito jogo de cintura e muita vontade de viver para serem superadas. Isso faz com que a pessoa trans alimente uma dificuldade maior em confiar na sociedade, afinal, depois de tanta porrada, convenhamos, não deve ser nada fácil acreditar que aquele novo grupo da qual ela passou a fazer parte realmente não tem intenção de se tornar mais uma pedra em sua vida.

É por isso que os empresários e colaboradores que lidam com pessoas trans devem se conscientizar dessa peculiaridade e agir no sentido de conscientizar o grupo a receber a pessoa trans com uma dose de sensibilidade a mais. 

Essa confiança que sentimos ao lidar com o grupo e nos permitir a fazer brincadeiras, muitas vezes, preconceituosas, mesmo que sem intenção, é algo que precisa ser revisado e repensado para o bem de todos e principalmente de nosso desejo em garantir que nossa sociedade de fato acolhe todas as pessoas como iguais de fato.

A pessoa trans não está em busca de diferença, é justamente o contrário. Ela só deseja ser aceita como qualquer outra pessoa.

Porque assim como água continua sendo água mesmo depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans quer chegar do lado de lá, reconhecida e respeitada como a pessoa que ela é.




Arrogância do bem também faz mal

Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita pri...