sábado, 24 de dezembro de 2022

Meu primeiro cadáver

Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta, então meu avô resolveu fazer um atalho e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos, achou que aquilo valia a pena. 


Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Regis Bittencourt que na época era uma estrada de pista simples e mão dupla, onde acidentes graves aconteciam o tempo todo. Então, logo após a cidade, entramos à esquerda na Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe. No caminho há uma pequena serra que se percorre em velocidade relativamente baixa para dar conta das sucessivas curvas mal projetadas. Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada mudança de direção, quando de repente meu avô reduziu a velocidade tomando seu lugar numa enorme fila e o trânsito foi se movendo lentamente. Após alguma espera, um pouco mais à frente, descobrimos o que havia acontecido. 

Foi numa daquelas curvas que um acidente espetacular se transformou na notícia da viagem. Um carro, que também era um Fusca, cujo motorista foi provavelmente incapaz de cumprir o raio da curva, avançou para a contramão, colidindo de frente com outro veículo que vinha no sentido inverso, numa colisão frontal que tirou as vidas de seus ocupantes. 

Passamos lentamente observando o caos à direita da estrada e então o avô Chico parou no acostamento uns 30 metros para frente. Parar para olhar o acidente é prática comum até hoje entre os brasileiros e demais povos que possuem esse mórbido interesse em observar a desgraça alheia de perto. Talvez seja pelo simples desejo de acumular assunto para uma conversa informal com parentes e amigos, ou para de fato, se certificar de que aquilo não aconteceu consigo mesmo. 

Meu avô saiu do carro e eu me ajoelhei no banco traseiro para observá-lo se afastando em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça, onde deteve-se por um tempo, observando mais atentamente enquanto curioso, inclinava o corpo para dentro do carro fumegante. 

Um minuto depois, meu avô retornou lentamente até com os dedos, tamborilar o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse: 

— Vem cá, Sivuquinha o vovô vai te mostrar uma coisa.

Em minha obediência à autoridade do avô, saí do carro assim que minha avó levantou o encosto do banco. Saltei para a aspereza do asfalto e o acompanhei até o local do acidente. Havia fumaça na frente de um dos carros, as pessoas e policiais aglomeravam-se ao redor do evento enquanto o teto amassado do Fusca me chamava a atenção, parecia que estava tentando saltar por cima do restante do carro. 

Aproximei-me um pouco mais e aquela cena inesquecível foi se materializando à minha frente. Eram incontáveis os cacos de vidro espalhados pelo chão, a lata azul deformada, uma roda torcida com violência para a direita, lembrava um braço quebrado, que se dobra tragicamente para o lado impossível. No chão, um quepe daqueles que usam os carteiros e um tamanco, daqueles de madeira, que estavam na moda da época, em plenos anos 70, mas não havia ninguém por perto. Provavelmente uma vítima que havia sido levada para o hospital pela ambulância dos vigilantes rodoviários.

Foi então, que no calor da tarde, diante de meus olhos de menino, surgiu imóvel entre as latas retorcidas do Fusca, o que certamente se parecia com uma pessoa dormindo. Mas aquilo não era sono, lá estava meu primeiro cadáver de verdade. Era com certeza o motorista. Um pouco oculto atrás da porta semiaberta, descansava um senhor de poucos cabelos brancos, uns bigodes enrolados bem grandes que cobriam o lábio superior e um bocado de sua boca escancarada, seus olhos arregalados, num olhar estático e perdido, mirando o horizonte por cima de meu ombro, sem sinal de vida. Era um olhar triste, como que suplicando por alguma coisa. Estava sentado ao volante, que apertava seu peito e pintava de sangue espirrado, tudo ao redor. Seu braço esquerdo, pendurado para o lado, inerte e vestido com uma blusa cinza, de lã fina, descansava. As pernas enigmáticas, mergulhavam na escuridão debaixo do painel. 

Fiquei ali observando a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.

Os olhos esbugalhados do homem morto se fecharam numa surpreendente piscada, apertando as pálpebras contra si mesmas e então aquele par de olhos perdidos no horizonte, voltou-se para meu rosto, focando diretamente em meus olhos. Era um olhar fixo e reto, colado em meu olhar. Foi quando a boca se fechou por um instante...

— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?

Recuei um passo para trás, mas o fascínio de me terem feito uma pergunta direta, me atraiu para a posição anterior.

— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...

— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?

— Silvio...

— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a merda que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma cagada dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.

— Mas o caminhão...

— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, caralho! Eu estava correndo muito e essa merda de Fusca não fez a curva, eu passei reto, não deu nem tempo.

— Não teve como desviar?

— Quando eu vi já era...

— Não tem mais jeito?

— E mesmo que tivesse? Olha o que deu, minha mulher morreu, eu amava ela, e ela nem viu nada, estava dormindo, a essa altura ela já tá em algum lugar no céu ou seilá onde, tentando entender como ela foi parar lá, tentando entender o que aconteceu. Levaram ela no rabecão e foi culpa minha.

— Mas você está aqui falando comigo...

— Isso não me serve de nada, daqui a pouco vão me levar também, olha aquele carro preto lá do outro lado da estrada, vão me levar pro necrotério e eu vou cagar a vida da minha família inteira, vai ser a maior choradeira. Minha mulher era avó, igual a sua, nossos netos vão chorar, meus filhos vão chorar, meus amigos do futebol de botão vão chorar, vai ser uma bosta.

— Nossa, que ruim isso...

— Isso é uma merda e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que pensa que sim, pensa que é indestrutível, pensa que é o mais esperto do mundo e que os outros são tudo uns trouxas, mas tá redondamente enganado, não é nada disso, se errar por um segundo a mais, tá fodido. Então se liga Silvio, sua família te chama de Sivuca, né?

— É sim...

— Então Sivuca, não vai você fazer uma cagada dessas. Aprende a dirigir o carro direito e presta atenção na curva, diminui a velocidade antes de ela chegar. E quando inventarem um tal telefone que dá pra levar para todo lado, não vai ficar brincando com aquela bosta enquanto dirige, você vai fazer isso, Sivuquinha?

— Tá bom...

— Tá bom o que, moleque? Você vai fazer o que eu te falei? Vai prestar atenção pra não fazer essa merda? Me responde, moleque!!

— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!

Nesse instante, uma mão me tocou no ombro e soltei um grito. Olhei para trás, era meu avô que me puxava pelo braço de volta para o carro para seguirmos viagem. 

— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando no carro.

Foi com meu avô, mas virei o corpo para dar uma última olhada no meu homem morto. Ele continuava lá, dentro do carro destruído e seu olhar continuava como antes, perdido no horizonte, desligado deste mundo. Talvez um olhar um pouco menos desesperado, um pouco menos triste, como quem parece que pelo menos uma vez na vida, fez algo de útil.


Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.

Silvio Ambrosini


domingo, 9 de outubro de 2022

Pedalando até Santos pra filar boia na mamãe

 


Saí cedo de casa pra filar boia na mamãe, peguei a bicicleta e me joguei na estrada, ai que medo, abre o olho, cuidado com os assaltantes, cuidado com os automóveis, mas também toma cuidado com a vida que passa e precisa ser vivida, porque é vida que passa rápido igual bonde que só se pega andando e tem que pular quando chegar a estação, porque o bonde, assim como a vida, não para, ela vai passando.

Olhei para baixo e vi meus pés pedalando, pedalando quase sem parar. O asfalto passa rápido, a ponte e os matos, os pássaros que fogem e gritam nos raios do sol que entram de lado ainda porque é tão cedo de manhãzinha.
Tenho vontade de terminar a subida para alcançar a descida, e descendo, olho a próxima subida que vai crescendo.

Os carros passam zunindo na estrada, todos com pressa ou sem ela, mas riscando a estrada de branco, prata e preto, as vezes um vermelho, um azul, uma moto barulhenta, um triciclo com uma caveira, um caminhão perdido na paisagem, as famílias com as crianças coladas no vidro, as moças com os pés sobre o painel, os homens com o cigarro do lado de fora da janela.

Em minha bicicleta vejo o mundo andando rápido e meus pés que rodam nos pedais. E chega a polícia rodoviária e lá estão os guardas rodoviários e olho para o outro lado fingindo que não vi. Bicicleta é proibido, mas eles não ligam, porque ciclista é tudo de bom.

Na primeira curva está o sujeito, chego perto, tudo bem? Vai para a praia? Como tu te chama? Marcos? Eu sou Sivuca. É um prazer! Vamos juntos, a gente se ajuda! E seguimos alinhados, brincando de pequenas ultrapassagens, testando a pressa que nenhum dos dois tem.

Juntos, passamos por baixo da estrada, olha a mata, os pássaros, os carros que às vezes aparecem entre as árvores e os outros ciclistas que acenam sorrindo. Rápido nas ladeiras, devagar nas pirambas. Parada na cachoeira, cuecas, a água gelada, fotos, seguimos em frente, demos dicas para os rapazes na dúvida, pedimos dicas aos rapazes com certeza.

Erramos uma curva, acertamos a outra, voltamos, carregamos as bikes nas costas, encontramos a rodovia e aceleramos o passo, cruzamos as faixas brincando de automóvel. Essa é aquela parte da viagem que a gente não conta pra ninguém... Olha aqueles dois malucos entre os carros... E no fim deu tudo certo, quantos quilômetros? Setenta e cinco! Amanhã tem mais! Obrigado Marcos, pela companhia!

Pedal é assim, é companhia de amigo que aparece porque todos querem a mesma coisa, pedalar e sentir a vida que está passando.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

O homem invisível


O homem invisível troca a fralda do filho. Imóvel na cama, ele apenas observa. Com seus olhos tão vivos, corre por tudo ao redor, parece que tenta buscar vida em todas as outras partes do seu corpo. Este par de olhos em busca de vida, se esforça para concentrar toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida. 

E o filho observa. Sente, pensa, opina, envia suas mensagens. Claro, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar com uma atenção especial, onde é capaz de sentir, ouvir, receber suas mensagens. 

E lá vem a mãe correndo, Ela abraça, mima, protege, alimenta, escuta e fala, descreve tudo ao redor para que seu filho escute suas palavras dando nome a todas as coisas, dando contorno ao seu pequeno mundo. O filho  responde o sorriso com seu olhos cheios de vida. Vida que esbanja e a mãe sabe disso, porque a mãe sente, a mãe ouve, a mãe ama.

Mas o filho está preocupado, tem medo de ficar sem respirar, então ele pisca o olho e o homem invisível verifica a saturação. Está baixa, então olha para o filho e seus olhos se encontram. De um jeito que não entendi ainda, através do olhar ele entende que o filho tem dificuldade para respirar. E o homem invisível faz o procedimento. Limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira. E então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já se sente melhor. A tecnologia ajuda, o oxímetro confirma e o homem invisível relaxa um pouco e a mãe descansa os ombros e o filho olha para ambos sorri com os olhos.

Sabe? O filho tem medo, mas não de monstros, não dos lobisomens que uivam no quintal, nem da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim e nem do monstro que mora embaixo da cama. O medo que o filho sente é de ficar sozinho, de não ter mais olhos para olhar, olhares para trocar, pele para sentir. 

Em seus sonhos, flutua sobre a cama, levanta voo e sai pela janela, flutuando sozinho pelas ruas do bairro. Penetra na escuridão do bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem. Finge que tem o medo que ele não tem. Olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem. Sente um arrepio na espinha que pouco sente, e lá está a mula sem cabeça com suas labaredas e seu grito de relincho e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E continua sua jornada entre árvores até que sai pela rua sem medo. Ele sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu vendo sua casa lá embaixo e quando chega perto das nuvens, sente um tipo de pequena solidão. Mas mesmo assim fica feliz porque pode escolher para onde vai, escolher seu caminho, pode flutuar como quer e voar por onde quiser. Então ele sai do bosque, volta para o bairro e  lá está sua casa no fim da rua. Entra pela janela do quarto e vê os lençóis e os aparelhos com suas luzes  piscando e seus foles ocupados em inflar e desinflar. E os fios ligados e a cama tranquila e acolhedora, nem liga para o monstro que mora debaixo dela. Ele finge que tem medo porque criança sempre tem medo de monstro. Mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.


Então, a mãe acorda assustada. Escutou um som. Foi a janela que se fechou? O alarme disparou? Os aparelhos biparam? Foi o filho que se engasgou? Preocupada, a mãe sai da cama, e corre até o quarto do filho em busca daquele olhar. Encontra aqueles olhos que lhe dizem para se tranquilizar. Foi só um passeio, mãe... eu saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens, estava tentando sentir só um pouco uma  tal pequena solidão, mas não precisa se preocupar. E a mãe solta uma lágrima, é só uma, filho. Eu preciso deixar escapar. 
Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar. Então o homem invisível, com o lado da mão, alcança a bochecha molhada e as seca. E a mãe fecha os olhos e mergulha no abraço do homem invisível. 
E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.   

E o homem invisível volta a contar histórias, a conferir os aparelhos e levanta os olhos para encontrar naquele olhar do filho, toda a vida que esse pedaço de vida tenta sempre encontrar. E naqueles olhos tão cheios de vida, onde vê o esforço para olhar, encontra a força para contar histórias sem parar. E o filho também tem histórias para contar, quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem e viu as labaredas da mula sem cabeça com seu grito horroroso, mas nada disso deu medo. E quando voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.


Era domingo, final do dia, o homem invisível se sentou olhando o horizonte enquanto o sol mergulhava entre os prédios. Sentiu vontade de chorar, mas lembrou que não podia,  pensou nos vários anos que haviam passado enquanto aqueles olhos furtavam seu olhar e tentou se lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar.

Lembrou de sua avó que o levava visitar as crianças e as velhinhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, ficavam deitadas sem conseguir se levantar. Havia um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que mesmo tão novinho, conseguia perceber que dentro do olhar do menino sem braços, não havia medo de monstros, não havia medo naquele olhar. E ele brincava com o menino, corriam pelo pátio, e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse. Se ele cair, como vai se apoiar? Então ele tentava correr mais devagar, mas o menino não ligava, corria o mais rápido que podia até cansar e o homem invisível corria desajeitado atrás dele e quando finalmente parava, ele finalmente podia encontrar um pouco daquele olhar.

A avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar. Junto com sua avó, o homem invisível levava aquelas velhinhas ladeira acima para passear. Quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.

O homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, escolhas, erros e acertos, idas e vindas. Sentiu o vento bater em seu rosto e um dia, perto das nuvens, sentiu uma pequena solidão, mas ficou feliz em poder escolher para onde ir. 

Um dia o homem invisível encontro outro par de olhos. Trocaram olhares e sentiram que podiam continuar assim. Se olharam, foram morar juntos e se amaram. Então veio o filho e eles também o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo de monstro, de lobisomem, de mula sem cabeça. Só o medo de não ter ninguém para amar.  

E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam em seu olhar, porque viam dentro daquele olhar  que ele era o lugar onde existia a mais essencial das coisas: o saber amar.


sábado, 23 de abril de 2022

Acabando com "isso aí..."

Era um país que já vinha calejado, o ranço burguês contra o sucesso do operário que virara presidente, já irritava há tempos, onde já se viu um parvo presidente? Que direito tem ele, vindo do encardido da graxa das máquinas, sentar-se à cadeira máxima do Planalto? Como se atreve a gastar tanta energia com a gentalha do nordeste? O novo presidente era o símbolo de um levante indesejado, o triunfo do proletário, a derrota da burguesia, era campanha Marxista deslavada, desavergonhada. Muita gente não gostou nada daquilo, apesar do avanço do país, o velho inconformismo falava mais alto.

O operário soube orquestrar relações, foi eleito duas vezes e suas conquistas foram derradeiras para garantir que pela primeira vez na história do país uma mulher se tornasse Presidente da República. Porém com ela, as coisas não foram tão fáceis, sua habilidade política coincidia com seu baixo nível de paciência e ela não custava muito para botar senador corrupto pra fora do gabinete. Uma mulher que fora torturada pelo sistema militar, tinha muito pouca paciência para lidar com os filhos desse mesmo sistema, herdeiros da ditadura, netos do império e da escravidão, filhos de tempos em que lugar de preto era na senzala e em nenhum outro lugar, tempos em que lugar de operário era o chão da fábrica, tempos em que a empregada não andava de avião, tempos em que o filho dela, nascido sabe-se lá de qual pai, não fazia faculdade, tempos em que favelada não vendia discos muito menos virava empresária, bons tempos em que lugar de mulher era na cozinha, com a barriga no fogão, e que homem de verdade não tinha isso aí de viadagem, e se tivesse, era doença fácil de curar na porrada, na facada e no tiro. Naquele tempo, não tinha mimimi, homem não se vestia de mulherzinha, eram tempos em que preto, se não cagava na entrada, cagava na saída... Preto apanhava primeiro, porque preto só queria roubar seu dinheiro, e bandido bom era bandido morto, e direitos humanos defende criminoso e mulher feia não merece ser estuprada, e torturador da ditadura merecia busto em praça e nome de rua.

A mulher presidenta tinha que cair e não foi difícil encontrar uma desculpa para tirá-la do cargo, a tal da pedalada cinicamente serviu para o propósito.

As denúncias de corrupção funcionaram como uma conveniente desculpa para um grupo de pessoas que odiava pobre, poder se voltar contra eles. A classe média que vivia cercada pelos muros do condomínio, comendo picanha e tomando cerveja de grife não podia ser simplesmente invadida por aquela gente. 

Ela caiu em meio a um show de horrores em seu lugar o decrépito vice-presidente assumiu o cargo.

Na época, o discurso era cheio de pompa, um padrão empolado que irritava e cansava especialmente a classe média. Foi então que surgiu um sujeito que tinha uma fala desbocada, parecida com a de nossos tios quando discutiam futebol ou jogavam truco, um jeito suburbano e grosseiro de expressar, ao estilo churrasco de sábado com cerveja além da conta, vocabulário de briga de trânsito, de discussão em portaria de clube, de barraca de feira, o clássico barraco baixaria que fazia parte do dia a dia de muitos brasileiros. No discurso do impeachment, homenageou um legítimo torturador, justamente aquele que havia sido responsável pelas torturas que durante o regime militar foram impostas inclusive à própria presidenta. As pessoas ouviram aquelas palavras e ficaram imersas em um letárgico, dolorido e assustador silêncio. Nascia ali um vírus, uma doença que levaria um bom tempo para ser curada 

E os cidadãos de bem, detentores do estandarte da família tradicional brasileira, adoraram. Finalmente alguém que não tinha frescura, não tinha o tal mimimi, que falava de porrada, que criticava a viadagem, que mandava mulher calar a boca, capaz de dizer na cara de uma deputada, que ela não servia nem para ser estuprada. E aquelas palavras foram normalizadas e isso causou arrepios em muita gente.

Assistimos atônitos o despertar de sentimentos represados e reprimidos e desesperados acompanhamos o resultado final das eleições, aquele homem grosseiro, que fugira de todos os debates e entrevistas, simulou uma facada que despertou uma simpatia inédita em uma parte indecisa da população, justamente aquelas pessoas que mergulhadas em uma história de paternalismo, sentiam falta de um ícone, de um ídolo para chamar de seu. Deu certo, junto com a desmoralização do partido dos trabalhadores, aquelas pessoas acreditaram que o método porrada era a solução. Entre eles, muitos se sentiram identificados com aquele comportamento preconceituoso, machista, homofóbico, xenófobo, misógino, com sua arrogância lasciva. Eram pessoas que tinham sido forçadas a se calar durante os anos anteriores, pelo avanço do politicamente correto. Agora, finalmente aparecia alguém para lhes dar o aval que elas desejavam, e era justamente o presidente da república. 

Nada do que veio a seguir nos impressionou mais do que envergonhou. O novo presidente revelava a cada palavra, a cada decisão, um pouco do que vinha: colocar em prática sua política fascista até as últimas consequências. Suas gafes em todas as áreas eram constantes, sua falta de habilidade política ultrapassava o grotesco enquanto isso, um estranho silêncio emanava da imprensa. 

É claro que muito foi dito contra ele, mas considerando a situação, esperava-se muito mais. Sua retórica continuou fascinando uma pequena multidão que foi gradativamente percebendo a falácia de tudo aquilo, mas um pequeno grupo muito fiel, que se identificava com a essência daquele pensamento, permaneceu agitando suas bandeirinhas verde-amarelas até o final.

Os dias iam virando história, certamente um dia os filhos de nossos filhos abririam o livro de história do Brasil para saber sobre o tempo em que nosso país se transformou em uma nova ditadura fascista sob o comando de um sociopata chamado Jair Messias Bolsonaro.


terça-feira, 29 de março de 2022

A panela de ovos



Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.


E então vem o ponto de ônibus e a banca de jornal e as pessoas que desviam e as que não desviam também, aquelas que vão, aquelas que vêm. E na porta da loja popular, um homem alcança seu olhar. Nas cores desbotadas de suas roupas, nas sandálias de dedo, em seu mover cauteloso, em sua mão, um punhado de moedas de diferentes cores e tamanhos. Dona me ajuda por favor, a completar o que me falta para que eu possa comprar aquela panela. E aponta com o dedo da outra mão enquanto traz para o peito a mão das moedas, fechada em punho protegendo o que é seu. Não falta muito, se eu conseguir, até o final do dia vou poder fritar uns ovos nela. E do outro lado do vidro, a pequena panela com a etiqueta pendurada dizia dezessete reais, a panela da loja popular. E ela não pensou muito e entrou e comprou a pequena panela e a entregou na mão do homem, e ele sem acreditar questionou, mas dona, essa panela é para mim? E ela disse que sim, e que usasse as moedas para comprar os ovos, e ele então agradeceu e tremia a voz, e disse que fazia tempo que ele não via o Papai Noel... e ela brincou, Mamãe Noel, talvez... E ele brincou com as moças do caixa, que pouco lhe deram atenção, mas mesmo assim ele disse: Nessa panela, vou fritar meus ovos e vou fritar minha pele de frango, vocês já provaram que delícia que é a pele de frango com ovos? E a alegria do homem era flagrante e mesmo sem enxergar muito bem, pelo pouco que as lentes de seus óculos lhe permitiam ver, ela sentiu, mais que viu, a alegria do homem que se materializara e então o tempo andou mais devagar por um instante e o ponteiro do relógio tentou não avançar para os próximos segundos.


E ela então ela voltou para a rua e enquanto seu avental voltava a voar na brisa da manhã e as pessoas voltavam a caminhar e a brisa também voltava a soprar seu rosto, ela se lembrou de como se sentia completa em poder fazer algo por alguém, se lembrou de como era fácil encontrar felicidade assim, tão de repente. Ela que poderia ficar feliz com novos azulejos para a cozinha ou o piso do apartamento ou com qualquer coisa que ganhasse de alguém. Mas a felicidade estava lá, não no que ela recebia, mas no que ela era capaz de entregar.



Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.


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Arrogância do bem também faz mal

Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita pri...