sexta-feira, 17 de outubro de 2025

 Chora, menino 

(Pode chorar sim)


Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabéns menino! Vejo que sabes gritar… Ah, é um direito meu, sabe? Conquistado recentemente — é verdade. Precisei de um irmão morto para conseguir chorar esse choro pela primeira vez… agora não foi tanto assim, bastou um fora do namorado. Não que seja pouca coisa, é um pedaço de mim que se foi, ficou aberto um buraco, bem aqui ó… encostado no coração. E entreguei pra ele minha aflição, preocupado eu, que sou bobo. 

Ele saiu para o retiro de meditação, já passou uma semana, mandei mensagem… “se quiser eu vou te buscar, viu?” nem tchuns… quando será que ele volta? Devem ser mais dias né? Fui olhar… volta domingo, ainda faltam três dias. Será que ele está deprimido? Ah, eu acho que eu ia ficar, sabe? Deprimido por ficar em silêncio tanto tempo naquele retiro. O lugar é lindo, em Santana do Parnaíba, no meio do mato… muitas árvores, deve ter até uns macaquinhos. 

Mas eu acho que não estou em momento de silêncio.. ao contrário, estou pra falar! Preciso falar muito, contar por aí as coisas que eu tenho direito, como chorar por exemplo. Parece pouco, mas não é. Chorar, que deveria ser um direito de todos, não era um direito muito meuo. Tanto é que naquele primeiro choro, precisou morrer meu irmão… ah, minto… tiveram os choros de bebê, que eram muitos, conta minha mãe... e depois, de moleque, nos meus primeiros choros, levava bronca dela: “FALA QUENEM HOMEM!”, afinal onde ja se viu homem falar assim chorando? 

“Esse menino tem a pomba gira”, disse pra ela um dia, uma mulher das macumbas… então me mandou para o Karatê. Assim quem sabe não para com essas choramingas? 

Segui valente, faixa branca, azul, amarela, verde, marrom.. primeiro grau, segundo grau, terceiro grau!! Só faltava mais uma pra me tornar um faixa preta de Karatê! Mas era tanto chute na orelha, soco na barriga… Até que eu estava indo bem, era um Karateca! E tinha minha faixa marrom com as três listrinhas, era coisa de respeito para um cara de 13 anos em 1978.

Tinha aprendido uns golpes, daqueles que encerram a luta ali mesmo. Os caras ficam te manjando, os faixa azul te veneram, os amarelos respeitam, os verdes invejam, os outros marrons admiram e os brancos.. bem, eles não entenderam bem o que aconteceu. E eu voltava pra casa destilando triunfo com ódio.

Então chegou um fim de semana que fomos para a praia e uns moleques resolveram mexer com minhas primas e minha irmã: Ficaram falando umas besteiras, fazendo uns gestos obscenos, apertando o saco. Eu fui lá tirar satisfação, me aproximei do mais invocado e mandei um giro lateral só pra mostrar quem eu era, mas o giro passou longe e eu nem tinha terminado de baixar a perna, quando ele chutou meu saco. Desabei pro chão na hora e fiquei ali me contorcendo. É difícil, descrever a dor. Parece que o mundo inteiro foi pro saco. 

Não me lembro nem como cheguei em casa, de repente eu estava dentro do chuveiro quente chorando com as lágrimas misturando com a água do chuveiro que escorria e ia embora pelo ralo. Minha avó me abraçou com a toalha… Então contei que tinha arrumado briga com os moleques da rua e um deles tinha me chutado. Chorei dolorido nos braços de minha avó e acho que porque ela não fez mais nenhuma pergunta e ficou lá em silêncio só me segurando até eu me acalmar, eu me senti melhor depois disso, bem melhor.

Quando morreu meu irmão, foi horrível. Eu passei 24 horas ou mais cuidando de tudo, necrotério, doação de órgãos, caixão, flores, autópsia, crematório, música, discurso… ficou tudo pra mim. A família entorpecida num canto, lambendo a ferida aberta e eu não podia chorar, tava muito ocupado. Só depois que tudo terminou e eu voltei pra casa, pude deitar na minha cama e pensar em tudo aquilo. Então chorei, berrei muito, num choro longo, soluçante, desorganizado e muito dolorido.

Houveram outros choros pequenos, as mortes dos cães, alguns amigos… Só voltei a chorar mais quando terminou meu casamento, mas dei um jeito de chorar enquanto pedalava minha bicicleta. Fiz até uma playlist pra organizar minha fossa. Acho sim, que eu estava ainda, inserido nos tempos dos choros proibidos.

Mas ontem foi diferente, percebi que chorava não só por ter ficado sem namorado, pelo sonho de que um dia o namoro retome, aflito por ele poder estar triste enfiado lá naquele retiro onde é proibido falar. Acho que foi isso que me motivou mais, fiquei me imaginando proibido de falar e também proibido de chorar e aí o choro veio. Proibido de chorar é o escambau, olha como eu choro o quanto eu quiser. Acho que foi assim. Abraçado no travesseiro, chorei tanto que fiquei com o nariz entupido, quase não conseguia respirar. Levantei da cama e fui ao banheiro. Então abri o chuveiro e fiquei lá um tempão olhando as lágrimas misturando com a água que escorria e ia embora pelo ralo... Aquilo foi bom. 

Voltei pra cama mais organizado e dormi profundamente. 

Hoje acordei leve e me lembrei de como foi libertador poder chorar. O choro sem vergonha é um som bonito que um homem pode fazer. 

E eu chorei, como há tempos não chorava.


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e virei a direita para encontrar com meu pai.

Lá estava ele, deitado, imóvel, a boca ligeiramente aberta, a cabeça um pouco inclinada para trás. Tentei, com algum esforço, enxergar alguma beleza por trás dos tubos e daquela expressão vazia. 

Era meu velho pai, um homem cuja vida se aproximava do fim. Me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta  não sei se por causa dos remédios, ou porque, secretamente eu preferia assim, diante do que já parecia inevitável. Observei seu rosto. As rugas da testa estavam relaxadas. Isso, de alguma forma me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa. Era capaz de arrumar briga no trânsito, de rolar pela calçada agarrado ao sujeito que o fechasse no carro, enquanto a família assistia apavorada pela janela, torcendo para que saíssemos inteiros daquela cena grotesca e absurda. Mas minutos depois, ele voltava ao normal, como se um estranho êxtase o tivesse invadido — e a gente, aliviado, tinha nosso pai de volta, ao menos por um tempo. 

Dentro da família, seu afeto e dedicação eram indiscutíveis — mas seguiam regras claras. Ele mandava. Do lado de fora desse perímetro imaginário que ele criou para proteger os seus, o mundo era um lugar ingrato, sempre pronto a conspirar contra ele e contra nós.

A velha cartilha masculina, a hierarquia clássica, regia nossa casa. Mesmo quando já não participava ativamente do trabalho, ele ainda encenava o papel do homem cansado, que chega em casa e só quer o jornal, o café e a televisão.

Mas havia momentos em que ele baixava a guarda e ia para a cozinha. Às vezes preparava um bauru, noutras, montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente cortava a massa, recheava com pedacinhos de queijo fresco, um toque de orégano. E, quando alguém elogiava, ele sorria orgulhoso e dizia:

Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio...

E assim, deixava nossa imaginação solta. Eu me perguntava como teria sido a vida daquele cozinheiro de cargueiro, perdido pelos sete mares, navegando de porto em porto. Como alguém trocaria o mar, o sal no cabelo e o sol impiedoso pela monotonia de uma vida paulistana, cuidando de uma empresa de sucata de torneiras e sifões?

Se ele realmente trabalhou no navio ou se essas histórias eram apenas tentativas de realização de um desejo secreto, pouco importava. No “tempo do navio” estavam contidas as verdades que ele nunca soube ou pôde viver — e que, sem perceber, escancarava nas entrelinhas.

Dias antes de ir parar na UTI, empurrei meu pai de cadeira de rodas até o carro. No caminho, disse a ele que o amava. Apertei um pouco mais meu coração e criei coragem para dizer que também o perdoava — sem entrar em detalhes, porque ele sabia os motivos. Meu coração precisava se aliviar, e assim fiz. Aos cinquenta e poucos anos, finalmente deixei o peso para trás, ali mesmo, entre a calçada e o meio-fio. Talvez as águas da próxima chuva tenham levado embora essa dor, dissolvida nas águas do oceano.

Ele me olhou nos olhos com sua voz enrolada disse, pela primeira vez e única vez que eu iria escutar aquilo: 

— Tenho medo de cair.

Então aquele homem inabalável, admitiu um medo diante de seu filho, aquele mesmo filho para quem ele só podia mostrar força. Senti que isso tinha sido uma grande conquista. Quebrava-se ali, no calor do sol do fim de tarde, o mito da invencibilidade que ele tanto se dedicou a cultivar.

Dentro do carro, ajeitei o cinto nele, abri os vidros naquela tarde de calor e liguei o som: Sapore di sale. Segurei sua mão pela primeira vez em muito tempo. Viajamos juntos, curtindo a música, o vento e o sol no rosto.

Na UTI, já no fim, segurei sua mão e disse:

— Pai, presta atenção: Um ônibus vem te buscar. Quando ele chegar, você pode ir. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, beira-mar… Lá no final, o Fernandinho, a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina vão estar te esperando. Acho que o vô Nin também. Vá tranquilo. Eu fico por aqui com a mamãe. Depois a gente se fala. Boa viagem. 

Olhei para as curvas e rugas de seu rosto e pela primeira vez, encontrei ali uma forma de beleza — uma simplicidade verdadeira, fundamental, tão simples, algo rústico, porém surpreendentemente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eles ficam tão bons, eu respondo sorrindo: 

— Eu aprendi no tempo que eu trabalhava no navio. 


 Chora, menino  (Pode chorar sim) Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabé...