Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e virei a direita para encontrar com meu pai.
Lá estava ele, deitado, imóvel, a boca ligeiramente aberta, a cabeça um pouco inclinada para trás. Tentei, com algum esforço, enxergar alguma beleza por trás dos tubos e daquela expressão vazia.
Era meu velho pai, um homem cuja vida se aproximava do fim. Me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta — não sei se por causa dos remédios, ou porque, secretamente eu preferia assim, diante do que já parecia inevitável. Observei seu rosto. As rugas da testa estavam relaxadas. Isso, de alguma forma me tranquilizou.
Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa. Era capaz de arrumar briga no trânsito, de rolar pela calçada agarrado ao sujeito que o fechasse no carro, enquanto a família assistia apavorada pela janela, torcendo para que saíssemos inteiros daquela cena grotesca e absurda. Mas minutos depois, ele voltava ao normal, como se um estranho êxtase o tivesse invadido — e a gente, aliviado, tinha nosso pai de volta, ao menos por um tempo.
Dentro da família, seu afeto e dedicação eram indiscutíveis — mas seguiam regras claras. Ele mandava. Do lado de fora desse perímetro imaginário que ele criou para proteger os seus, o mundo era um lugar ingrato, sempre pronto a conspirar contra ele e contra nós.
A velha cartilha masculina, a hierarquia clássica, regia nossa casa. Mesmo quando já não participava ativamente do trabalho, ele ainda encenava o papel do homem cansado, que chega em casa e só quer o jornal, o café e a televisão.
Ele me olhou nos olhos e disse, pela primeira vez em toda a minha vida:
— Tenho medo de cair.
Foi a primeira vez que meu pai, o homem inabalável, admitiu um medo diante de mim. Para mim, isso foi uma conquista. Quebrava o mito da invencibilidade que ele tanto cultivou.
Dentro do carro, ajeitei o cinto nele, abri os vidros naquela tarde de calor e liguei o som: Sapore di sale. Segurei sua mão pela primeira vez em muito tempo. Viajamos juntos, curtindo a música, o vento e o sol no rosto.
Na UTI, já no fim, segurei sua mão e disse:
— Pai, um ônibus vem te buscar. Quando ele chegar, você pode ir. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, beira-mar… Lá no final, o Fernandinho, a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina vão estar te esperando. Acho que o vô Nin também. Vá tranquilo. Eu fico por aqui com a mamãe. Depois a gente se fala. Boa viagem. E obrigado por ter sido meu pai.
Olhei para as curvas de seu rosto e pela primeira vez, encontrei ali uma forma de beleza — aquela simplicidade fundamental, um retorno a um estado fundamental, tão simples, algo rústico, porém surpreendentemente belo.A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória. Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eles ficam tão bons, eu respondo sorrindo:
— Eu aprendi no tempo que eu trabalhava no navio.