segunda-feira, 5 de maio de 2025

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e virei a direita para encontrar com meu pai.

Lá estava ele, deitado, imóvel, a boca ligeiramente aberta, a cabeça um pouco inclinada para trás. Tentei, com algum esforço, enxergar alguma beleza por trás dos tubos e daquela expressão vazia. 

Era meu velho pai, um homem cuja vida se aproximava do fim. Me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta  não sei se por causa dos remédios, ou porque, secretamente eu preferia assim, diante do que já parecia inevitável. Observei seu rosto. As rugas da testa estavam relaxadas. Isso, de alguma forma me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa. Era capaz de arrumar briga no trânsito, de rolar pela calçada agarrado ao sujeito que o fechasse no carro, enquanto a família assistia apavorada pela janela, torcendo para que saíssemos inteiros daquela cena grotesca e absurda. Mas minutos depois, ele voltava ao normal, como se um estranho êxtase o tivesse invadido — e a gente, aliviado, tinha nosso pai de volta, ao menos por um tempo. 

Dentro da família, seu afeto e dedicação eram indiscutíveis — mas seguiam regras claras. Ele mandava. Do lado de fora desse perímetro imaginário que ele criou para proteger os seus, o mundo era um lugar ingrato, sempre pronto a conspirar contra ele e contra nós.

A velha cartilha masculina, a hierarquia clássica, regia nossa casa. Mesmo quando já não participava ativamente do trabalho, ele ainda encenava o papel do homem cansado, que chega em casa e só quer o jornal, o café e a televisão.

Mas havia momentos em que ele baixava a guarda e ia para a cozinha. Às vezes preparava um bauru, noutras, montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente cortava a massa, recheava com pedacinhos de queijo fresco, um toque de orégano. E, quando alguém elogiava, ele sorria orgulhoso e dizia:

Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio...

E assim, deixava nossa imaginação solta. Eu me perguntava como teria sido a vida daquele cozinheiro de cargueiro, perdido pelos sete mares, navegando de porto em porto. Como alguém trocaria o mar, o sal no cabelo e o sol impiedoso pela monotonia de uma vida paulistana, cuidando de uma empresa de sucata de torneiras e sifões?

Se ele realmente trabalhou no navio ou se essas histórias eram apenas tentativas de realização de um desejo secreto, pouco importava. No “tempo do navio” estavam contidas as verdades que ele nunca soube ou pôde viver — e que, sem perceber, escancarava nas entrelinhas.

Dias antes de ir parar na UTI, empurrei meu pai de cadeira de rodas até o carro. No caminho, disse a ele que o amava. Apertei um pouco mais meu coração e criei coragem para dizer que também o perdoava — sem entrar em detalhes, porque ele sabia os motivos. Meu coração precisava se aliviar, e assim fiz. Aos cinquenta e poucos anos, finalmente deixei o peso para trás, ali mesmo, entre a calçada e o meio-fio. Talvez as águas da próxima chuva tenham levado embora essa dor, dissolvida nas águas do oceano.

Ele me olhou nos olhos com sua voz enrolada disse, pela primeira vez e única vez que eu iria escutar aquilo: 

— Tenho medo de cair.

Então aquele homem inabalável, admitiu um medo diante de seu filho, aquele mesmo filho para quem ele só podia mostrar força. Senti que isso tinha sido uma grande conquista. Quebrava-se ali, no calor do sol do fim de tarde, o mito da invencibilidade que ele tanto se dedicou a cultivar.

Dentro do carro, ajeitei o cinto nele, abri os vidros naquela tarde de calor e liguei o som: Sapore di sale. Segurei sua mão pela primeira vez em muito tempo. Viajamos juntos, curtindo a música, o vento e o sol no rosto.

Na UTI, já no fim, segurei sua mão e disse:

— Pai, presta atenção: Um ônibus vem te buscar. Quando ele chegar, você pode ir. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, beira-mar… Lá no final, o Fernandinho, a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina vão estar te esperando. Acho que o vô Nin também. Vá tranquilo. Eu fico por aqui com a mamãe. Depois a gente se fala. Boa viagem. 

Olhei para as curvas e rugas de seu rosto e pela primeira vez, encontrei ali uma forma de beleza — uma simplicidade verdadeira, fundamental, tão simples, algo rústico, porém surpreendentemente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eles ficam tão bons, eu respondo sorrindo: 

— Eu aprendi no tempo que eu trabalhava no navio. 


 Chora, menino  (Pode chorar sim) Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabé...