quarta-feira, 18 de julho de 2018

A entrega do voo em equipe


A entrega do voo em equipe

Os recordistas mundiais de voo em parapente, Fleury, Cecéu, Frank Brown, Samuca, Saladini, Bigode... têm uma receita que eles construíram e que invariavelmente dá certo para se conseguir conquistar um voo incrível:
A receita é voar em equipe.

Ah tá... lá vem o Sivuca outra vez com essa conversa... eu já faço isso, diz o Joãozinho. Será?
Nos últimos anos tenho nas raras oportunidades que arrumo para voar, experimentado me esforçar ao máximo para conseguir voar junto com outro(s) piloto(s), juntos de verdade. Mas tenho encontrado uma impressionante dificuldade em fazer isso acontecer. Eu tive a honra de ter sido convidado pelos cariocas da equipe Guaratiba Fly para voar com eles e temos feito algumas experiências formidáveis juntos.

Mesmo assim, depois de algum tempo, olho ao redor e posso concluir que são poucas as pessoas que realmente praticam o voo em equipe de forma completa, sendo que uma parte sequer sabe como funciona e uma outra simplesmente não consegue aderir às pequenas e simples regras que são essenciais para que o voo em equipe aconteça.

Contando para vocês o que aprendi com Rafael Saladini, mesmo que, lamentavelmente sem nunca ter tido o privilégio de voar junto com ele, gostaria de chamar a atenção dos pilotos para algumas vantagens que fazem do voo em equipe, na minha forma de ver, muito mais que uma evolução de nosso esporte, mas uma necessidade essencial para quem quer voar mais tempo e mais longe.
Vou contar o que acontece comigo e suponho que seja o que possivelmente terminará acontecendo com muitos de vocês.

Eu voo de parapente há 28 anos, já tenho 52 anos de idade, voo com equipamento CCC até hoje porque é onde me sinto mais confortável, ao menos por enquanto. Quando vou voar, sinto uma necessidade muito grande de me concentrar no exclusivamente no voo, fazendo um esforço especial para dirigir todas as energias para um voo seguro e de alto rendimento. A verdade é que nosso esporte é muito perigoso e o nível de risco é muito alto, por isso considero que temos de tomar muito cuidado para que o ato de voar nunca se transforme numa coisa banal, onde você vai lá apenas por ir, porque não tem outra coisa para fazer ou porque não está a fim de ficar lavando o carro no sábado. Para reduzir o nível de risco, transformo minhas excursões de voo num ritual, voltado inteiramente para o ato de voar. É por isso que hoje em dia você quase nunca me encontra em uma rampa para apenas “um voozinho”.

Levando isso em conta, percebo que a energia gasta em um voo é bastante alta, onde um voo de cinco, seis, ou mais horas, pode ser tão cansativo quanto insustentável. Provavelmente você não verá mais o Sivuca fazendo grandes voos sozinho simplesmente porque eu acho muito chato e cansativo ficar sozinho com toda aquela imensidão ao meu redor e ter de tomar todas aquelas decisões por tanto tempo sem descanso. Quando eu consigo dividir isso tudo com outra pessoa, passo para outro estado, encontro novas motivações e me sinto preparado para enfrentar voos enormes, como os que fiz em Quixadá com cerca de 10 horas de duração. O que acontece é que durante um voo em equipe, as várias tarefas que você tem de dar conta quando está voando sozinho se dividem entre os membros do grupo.

Então, posso listar algumas tarefas que somos obrigados a assumir na íntegra, durante o voo inteiro, quando fazemos voos longos e que podemos ao menos durante vários momentos, dividir entre os membros do grupo:

1.       Fazer contato com o resgate pelo rádio.
2.       Manter-se atualizado sobre dados de planeio, distâncias, rotas, velocidades e direção do vento, estradas e locais de pouso. (sempre tem um nerd que adora isso)
3.       Escolha de mini-rotas (vou pra baixo daquela nuvem ou pra cima daquela cordilheira?).
4.       Lembrar dos horários de hidratação, alimentação e necessidades (xixi).
5.       Triangular a próxima térmica.
6.       Encontrar um núcleo mais favorável na térmica atual.

Ninguém vai fazer xixi por você, mas muita gente se esquece de beber água, se alimentar e fazer xixi. Ter alguém para te lembrar disso durante o voo, assim como poder deixar a decisão da mini-rota daquele momento para outro piloto ou ficar falando com o resgate no rádio, é uma forma de relaxar um pouco a tensão. Isso tem um efeito muito importante, especialmente se levarmos em conta que várias vezes eu estava muito cansado e pronto para me preparar para o pouso quando um colega do grupo localizou uma nova ascendente e lá fomos nós para a base outra vez. Enquanto no dia anterior fizemos juntos um voo fantástico com um quase triângulo FAI de 150km, o meu penúltimo voo foi feito sozinho. Meu companheiro de voo, o André Abrantes fez uma saída ruim e terminou na frente da rampa e eu, sozinho. Tentei sinalizar e “arrastar” alguns colegas que cruzei pelo caminho, mas ninguém atendeu meus apelos, então resolvi pegar pesado e acelerar o voo para relembrar os tempos de competição. Duas horas e meia depois eu estava pousado cansadíssimo, com 110km voados. Poderia ter voado muito mais, ainda havia no mínimo três horas de voo, o que significa que naquele dia eu poderia ter voado mais de 200km... mas onde estava a disposição para fazer isto sozinho? (Pausa para rir do Sivuca dizendo que quase fez um voo de 200km quando fez só 110..).

No voo que fiz na companhia do Grandão e do Fabrício em Quixadá a dois anos, fizemos 300km. No quilômetro 200 eu não aguentava mais, não estava mais com saco de procurar térmica, queria pousar... Grandão achou uma termal e lá fomos nós para a base novamente. Esse cenário se repete com frequência, não é fácil ficar horas e horas pendurado no parapente e ainda tendo que decidir e administrar um monte de coisas simultaneamente. Quando podemos relaxar um pouco e deixar alguém decidir para qual nuvem iremos, ajuda bastante.

É nessa hora que o Joãozinho me pergunta: É, mas e se o cara decidir a nuvem errada? E eu respondo: Joãozinho, você nunca decidiu ir para nuvem errada? Quem disse que suas decisões são sempre certas? Esta é a questão que provavelmente impede algumas pessoas de aceitar o voo em equipe, temos uma opinião muito alta a respeito de nós mesmos, custa-nos a crer que outra pessoa poderia ser capaz de tomar decisões tão acertadas quanto as nossas e daí somos levados a não confiar nos outros pilotos e terminamos voando sozinhos. Triste não é? Até que ponto isso é uma verdade para muitos de nós?

Veja só, existe uma regra essencial para o funcionamento do voo em equipe que é: Quando se aproxima o momento de sair de uma térmica (porque está ficando fraca, ou porque o grupo tem pressa), quem sai primeiro é quem está mais baixo. E Joãozinho desesperado levanta a mão: Mais baixo tio? Então estou me fodendo pra subir, todos estão 100m mais alto que eu e eu é quem tem que sair procurando térmica? Isso mesmo, Joãozinho, você sai e todos saem atrás (e mais alto) que você para te ajudar. Se não for assim, ou seja, se todos esperam quem está mais alto sair, o grupo se fragmenta. Imagine o grupo como um ser alado, uma Quimera voadora onde cada parapente é um membro do corpo da Quimera. Se a Quimera perde um braço, pode morrer... a Quimera precisa manter sua forma para poder voar. Inteira, ela é muito mais eficiente simplesmente porque ela é muito maior e muito mais capaz de encontrar o melhor núcleo da termal, além de ter uma capacidade maior de encontrar a próxima termal, simplesmente devido ao seu tamanho. 

Se voarmos pensando que não podemos nos distanciar do colega, conseguiremos manter a forma da Quimera e ela conseguirá voar mais longe, durante mais tempo. A Quimera abre suas asas ao máximo para fazer a tirada e isso significa que os pilotos voam lado a lado, sempre evitando alinhar em fila com o companheiro da frente. É preciso abrir as asas para cobrir mais espaço, isso facilita muito encontrar a próxima térmica. Ora, se um parapente tem 11m de envergadura, dois parapentes conseguem cobrir no mínimo 30 metros facilmente... o que três parapentes podem fazer, chega a ser covardia.

Enquanto você não pode estar em dois ou três lugares ao mesmo tempo, dois ou três parapentes na mesma térmica conseguem triangular o melhor núcleo com uma eficiência muito superior. Noutro dia, um colega que tentamos trazer para a equipe e não conseguiu passar da primeira térmica alegou que voamos muito baixo. Achei aquilo muito divertido de escutar e até brinquei com ele comparando com o adolescente que fez uma campanha enorme para que seus pais permitissem que ele fosse a uma festa com os colegas à noite e na última hora ele desistiu porque sua calça preferida estava lavando.
Então o voo em equipe é uma verdadeira entrega, em muitos momentos você deixa de fazer aquilo que acreditava para fazer aquilo que o outro acreditou. Isso é uma coisa muito dura para muita gente e volto a afirmar, especialmente aquelas que não são capazes de acreditar que existe alguém na face da terra capaz de tomar decisões tão acertadas quanto elas mesmas. O André Wolf me disse que se para nós parapentelhos, voar em equipe é uma coisa difícil de fazer, para os voadores de asa é ainda mais complicado, pois eles são muito mais antigos no voo e consequentemente carregam uma carga cultural de voo individual muito mais poderosa que nós... vamos então aproveitar nossa posição de vantagem e fazer algo mais bacana, galera?

Voo em equipe não requer parapentes de altíssimo desempenho, nem instrumentos tecnológicos de ponta, a única coisa é que o grupo tenha mais ou menos o mesmo nível técnico e voe parapentes mais ou menos parecidos. Então é perfeitamente possível você ter um ano e meio de voo e juntar-se com dois ou três de seus amigos voando parapente B e conseguirem fazer um voo espetacularmente melhor do que você seria capaz de fazer sozinho.

Ah, Sivuca, você está sendo irônico, pois basicamente você afirma que o voo em equipe não acontece porque as pessoas são arrogantes, não é bem assim.

É mesmo, Joãozinho? Então me explique por que o voo em equipe não acontece.

E Joãozinho me olhou em silêncio...


Sivuca

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