Uma torneirinha de escape para o maravilhoso e o aterrorizante do dia a dia de um cidadão do mundo, pai, voador, empresário, psicanalista, que gosta demais de escrever. Silvio Ambrosini é conhecido pelos amigos como Sivuca, é autor dos livros publicados "Ventomania - Uma Vida Voando" e "Voando de Parapente" A venda em https://ventomania.com.br. Aproveite para visitar meu instagram em @sivukus
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Ativista de mim mesmo
Ativista de mim mesmo
Numa sexta feira em 2018, a juíza Mirtes Blum, de Porto Alegre, junto com um promotor público, julgou procedente meu pedido de adoção de minha filha Sol. Na prática, o nome da genitora foi substituído pelo meu na certidão de nascimento e na carteira de identidade e a Sol passou a contar com dois pais "de papel passado".
Desde o dia que nasceu, a Sol brilhou em nossos dias e guiou todos os passos e decisões de nossas vidas. De repente, dois marmanjos ursos se viram rodeados de fraldas e mamadeiras, noites sem dormir, choros, pediatras, musiquinhas, chocalhos e tudo o que faz parte da vida de uma criança que acaba de nascer. Mas o ingrediente principal esteve presente desde a hora zero. O amor entre estes dois caras, por quem os vizinhos do prédio não iam muito além de um bom dia, foi e é o combustível para uma aventura dessa dimensão. De repente, os caras do 403 viraram papais e começaram a ganhar sorrisos e cumprimentos no elevador, ganharam também toalhinhas bordadas com o nome da princesinha que eles carregavam para cima e para baixo, as senhoras perguntavam e davam dicas. Todos se interessaram pelo que aqueles dois improváveis tinham acabado de fazer.
Nos restaurantes, éramos conduzidos a melhor mesa, nas filas, nos colocavam primeiro. Era evidente que nosso status social crescera da noite para o dia. É natural, as pessoas veem um bebê gracinha na cadeirinha, com seus olhos negros e seus cabelinhos enrolados antes de olhar para cima e ver dois carecas carregando um necessaire improvável com a camiseta do Pink Floyd e tênis All Star.
Quase nunca, em todos esses anos, posso dizer que me senti vítima de preconceito, digo quase nunca porque justamente aqui em Porto Alegre, um sujeito em um restaurante não gostou que o copo de cerveja tombasse na mesa perto dele... essa foi a desculpa para que ele se levantasse num ímpeto e carregasse toda a família para outra mesma mais afastada "dos viados". Mas foi precisamente nesse momento que nos olhares que troquei com o Alejandro, senti que estávamos armados e prontos para enfrentar sem vacilo, a próxima evidência de discriminação... o sujeito, aparentemente percebeu de canto de olho que os dois carecas crossfitters com a criancinha de 6 anos não pareciam estar muito dispostos a deixar quieta alguma provocação mais evidente, e tratou de se colocar o rabo entre as pernas.
Há quem diga que não foi bem assim, mas nem vem muito ao caso. A gente se garante diante de uma eventual demonstração de preconceito, acho eu, mas como ficam os muitos outros caras e minas, carecas ou cabeludas, ursos ou barbies, sapatas ou softs, bibinhas ou nerds? Existe por aí um número bem grandinho de gays presos em seus armários. Presos porque não conseguem sair, presos porque não conseguem encontrar um caminho de saída para si mesmos, presos porque temem perder aquilo que duramente conquistaram. De fato, não é nada fácil fazer uma aposta desse tamanho, que a partir de amanhã o gay que acaba de sair do armário continuará levando a mesma vida que ele gostava de levar, com direito e cerveja com os amigos, pedal e churrasco no fim de semana e futebol as sextas feiras.
Realmente uma saída do armário precisa de um ingrediente essencial: autoconfiança. E por autoconfiança, entende-se a capacidade de acreditar que é possível reconstruir aquilo que desmoronou quando você menos esperava. Não é tarefa das mais fáceis e não há como discriminar e muito menos hostilizar quem não dispõe de tanta autoconfiança na manga do paletó.
O fato é que a construção dessa autoconfiança depende em primeiro lugar de desconstruir o preconceito contra si mesmo. Para aliviar, eu posso dizer que isso pode ser um processo gradual, ao menos comigo foi assim, pois eu já era gay assumido, mas ainda criticava gays afeminados, na tentativa de ser aceito dentro de um mundo onde bastava cumprir com alguns pre-requisitos de heteronormatividade e "tirar o olho da minha bunda". Hoje tenho vergonha de admitir um comportamento homofóbico enquanto gay, mas seria arrogante de minha parte alegar que saltei para o topo da evolução social da noite para o dia, especialmente considerando que ainda estou raspando nas faldas dessa montanha.
Mas... o que é fácil para uns, pode ser muito difícil para outros.
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