A Perda do Pai
Ou "Como me descobri ateu e segui vivendo... em paz"
A perda do Pai
Naquele dia chuvoso, o menino, todo molhado, depois de tomar o ônibus errado e voltar para casa muito atrasado, entrou pela sala procurando o aconchego do pai.
Encontrou a casa vazia. Chamou. Repetiu...
Nada. Procurou, mas não encontrou.
O pai não estava.
Passaram-se dias, semanas, meses.
O pai não voltou.
No silêncio da casa e nos dias arrastados, o menino começou a entender.
Nas tarefas que preenchiam o tempo — preparar comida, lavar pratos, varrer o chão, arrumar a cama, cuidar do cachorro, pendurar roupas — cuidar de si era o que restava.
Pedir ajuda já não fazia sentido. Aquele que costumava orientar, aliviar, acolher, simplesmente não estava mais ali.
As coisas do pai pareciam também ter parado. As roupas na gaveta, imóveis. Papéis na mesa, intactos. Tudo esperava por alguém que não voltaria.
O menino percebeu que estava só com suas possibilidades. E que, a depender dos seus passos, poderia tanto acertar quanto se perder.
Viu que ajudar alguém lhe dava certa paz. E que isso, por si só, bastava.
Notou que a vergonha e a culpa vinham quando causava sofrimento. E que ninguém o puniria — apenas ele saberia o que havia feito.
O menino se alegrou ao entender que felicidade e infelicidade não dependiam da cor da pele, da fé, da ausência dela, nem de quem se ama, nem do que se faz, mas da maneira como se vive. Aceitou que não tinha controle sobre o mundo. E que muitas coisas simplesmente aconteciam, sem propósito nem justiça.
A ausência não fazia escolhas. Não era contra ninguém — apenas era.
Diante disso, o menino entendeu que podia recuar ou seguir. E que, talvez, pudesse reconstruir algo com o que lhe restasse.
Um dia, percebeu que não havia sorte à espreita. Aquilo que chamavam de sorte era só o acaso — o mesmo que cruza o caminho de qualquer um, sem aviso nem critério.
Viu que não havia plano. Mas havia chão. E, a cada passo, um rastro. Depois, talvez chamasse esse rastro de destino.
Percebeu que tudo o que se escreve nasce de alguém que quis escrever. Que imaginou, inventou, ouviu. E decidiu contar. Só isso.
O tempo passou.
O menino cresceu.
Do pai que se fora, restou uma lembrança tênue — vaga como sonho.
Ele sentiu o calor do fim da tarde, a água fria da manhã, o tempo passando em seu corpo. E a lembrança do pai — já distante — era só isso: um vestígio entre tantos.
O mundo ao redor seguia, alheio. Vivendo, morrendo, sem se dar conta de si.
O menino voltou à igreja. Apreciou a beleza, os ritos, a música. Aprendeu a meditar — e viu nisso um momento de escuta, consigo mesmo. E gostou.
Percebeu que não precisava pedir. As coisas viriam, ou não. Agir era o que cabia.
Sentiu-se tranquilo. Ao pensar na morte, soube que não iria a outro lugar. Mas poderia permanecer na memória de quem o conheceu. E isso lhe pareceu suficiente.
Quis, então, viver de forma a deixar significado. Talvez uma vida que fosse pelo menos... interessante.
Entendeu que pecado não é aquilo que lhe ensinaram. Pecado é ferir, desumanizar, desprezar. Viver, ele entendeu, era mudar o que se pode, tocar quem está perto, amar — da maneira que for possível.
E então, certa vez, percebeu o que de fato desejava. E reconheceu que esse desejo era seu.
Não herdado, não imposto, não esperado. Seu. E que não precisava desaparecer para caber na vontade de ninguém. Havia lugar para ele.
E isso bastava.
Por isso, correu. Correu enquanto pôde. Queria deixar um traço, um gesto, uma lembrança.
Mas logo percebeu: corria não por medo, nem por dever. Corria porque desejava.
Corre, menino.
texto: Silvio Ambrosini
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