O homem invisível troca a fralda do filho, imóvel na cama, ele apenas observa com os olhos tão vivos que parecem ter ido buscar a vida em todas as outras partes do corpo. É um par de olhos em busca de vida, num esforço sem fim para concentrar neles, toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida.
O filho observa, sente, pensa, opina, envia suas mensagens, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar, sentir, ouvir, receber suas mensagens e a tecnologia ajuda. A mãe corre, aninha, mima, protege, alimenta, escuta, ama. O filho sorri com os olhos, seus olhos cheios de vida, esbanjando vida e a mãe sabe, a mãe sente, a mãe ouve.
O filho se preocupa, tem medo de ficar sem respirar, pisca o olho. O homem invisível verifica a saturação, está baixa, olha para o filho, seus olhos se encontram e através do olhar, ele, de algum jeito que não entendi ainda, entende que o filho tem dificuldade para respirar. O homem invisível faz o procedimento, limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira, e então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já está melhor. O oxímetro confirma, o homem invisível relaxa um pouco, a mãe descansa os ombros, o filho sorri com os olhos.
O filho não tem medo de monstros, não tem medo dos lobisomens que uivam no quintal, não tem medo da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim, não tem medo do monstro que mora embaixo da cama. O medo do filho é ficar sozinho e parar de respirar, e não ter ninguém para aspirar e aspirar e aspirar, o medo do filho é não ter olhos para olhar, não ter olhares para trocar, não sentir a pele lhe tocar. Em seus sonhos, flutua sobre a cama, está voando, sai pela janela e flutua sozinho pelas ruas do bairro, entra no bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem, finge que tem o medo de que ele não tem, olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem que ele tem. Então vê a mula sem cabeça e ela solta as labaredas pelo que lhe resta de corpo sem cabeça, e escuta seu grito que não sei por onde sai, mas ela que grita e relincha e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E voa sozinho pela rua sem medo, porque sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu e quando chega perto das nuvens, sente uma pequena solidão, mas fica feliz em poder escolher para onde vai, flutua, sai do bosque, volta para o bairro e vê sua casa no fim da rua, entra pela janela do quarto, e olha para o lençóis, e os aparelhos com suas luzes e seus foles que inflam e desinflam, ocupados com seu trabalho, e os fios todos ligados e a cama com o monstro que mora lá, ele mora debaixo da cama, e ele finge ter medo também porque criança tem que ter medo de monstro, mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.
E a mãe escuta um som, foi a janela que se fechou? Foram os aparelhos que biparam? Foi o filho que se engasgou? A mãe se preocupa, sai da cama, e vai até o final do corredor e procura o olhar e encontra aqueles olhos e os olhos lhe dizem para se tranquilizar. Mãe, foi só um passeio, saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens para sentir só um pouco de uma pequena solidão, não precisa se preocupar. E a mãe começa a chorar, é só um pouquinho, precisa deixar escapar. Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar e as lágrimas escorrem e o homem invisível alcança com o lado da mão, a bochecha molhada das lágrimas e as seca. E naquela hora, a mãe fecha os olhos mergulhados no abraço do homem invisível, e o filho vê, mas finge não olhar. E o homem invisível abraça a mãe com seu abraço forte e por cima do ombro da mãe, vê no olho do filho, aquele inconfundível olhar, os olhos que não têm medo de monstros, os olhos que não escondem o olhar. E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.
E o homem invisível conta histórias, e confere os aparelhos, e o fole infla e desinfla, se move sem parar e levanta os olhos para encontrar naquele olhar, um pedaço de vida, tão difícil de encontrar e naqueles olhos tão cheios de vida, vê o esforço para olhar e naquele olhar conta histórias sem parar. Quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem, mas não teve medo e viu as labaredas da mula sem cabeça, e escutou o grito dela também, mas também não teve medo e voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.
E o homem invisível que não pode chorar, pensa naqueles onze anos olhando para aqueles olhos e tenta sem lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar, tempos em quando aquele olhar estava em outro lugar. E lembra da avó que o levava visitar as crianças e as velhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, muitas ficavam deitadas não podiam se levantar. E tinha um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que ainda era tão pequeno, mas já conseguia perceber que dentro daquele olhar, não havia medo de monstros, não havia medo de olhar. E corria com o menino e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse, porque se ele caísse, como iria se apoiar? E corria devagar, mas o menino ia rápido e sem os braços, corria até cansar e o homem invisível ia atrás dele, não porque queria correr, mas porque queria encontrar, um pouco daquele olhar.
E a avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar e era uma ladeira e a avó levava aquelas pessoas ladeira acima para passear. E quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.
E antes daqueles onze anos, o homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, suas escolhas, seus erros e acertos, suas idas e vindas, e dia após dia, ano após ano, construiu sua história, decolou das montanhas e sentiu o vento bater em seu rosto, e sentiu a pequena solidão e se aproximou das nuvens e ficou feliz em poder escolher para onde ir. E estendeu a mão para os amigos e foi visitar quem estava sozinho, e foi se encontrar com quem queria um abraço e também se emocionou num filme bobo e deixou uma lágrima escapar. Então um dia o homem invisível parou frente a frente com um par de olhos e naquele par de olhos, trocaram um olhar e sentiram que podiam continuar assim até que não fossem mais capazes de se olhar, não por não querer, mas por não mais enxergar. E juntos foram morar e se amaram e nunca pararam de se amar. E quando veio o filho, o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo. Não havia medo de monstro, não havia medo de lobisomem, não havia medo de mula sem cabeça, só um medo havia naquele olhar, era o medo de ficar sozinho e de parar de respirar e de não ter ninguém para ajudar.
E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam naquele olhar, porque sabiam que dentro daquele olhar só existia uma coisa, era o saber amar.
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