sexta-feira, 24 de abril de 2020

A perda do pai
























Ou "Como me descobri ateu e segui vivendo feliz"

As vezes me perguntam como é que que pude "me tornar ateu"... bem, eu não fiz uma escolha, não me tornei ateu, mas me descobri ateu. E não foi nada divertido, ao contrário.. dolorido. Então, para ilustrar essa ideia, segue uma odisseia:

A perda do Pai 

Naquele dia chuvoso, o menino todo molhado, depois de tomar o ônibus errado e voltar para casa muito atrasado, entrou pela sala de sua casa e procurou o aconchego do pai.
Encontrou a casa vazia. Chamou, repetiu, não era o que ele queria. Procurou, mas não encontrou. O pai sumido havia...
Passou um dia, passaram-se dois, três, uma semana, um mês, um ano se passou... o pai nunca mais retornou.
Na solidão de sua responsabilidade, durante aqueles dias que foram se arrastando, ele foi devagar entendendo, que na comida que preparava, nos pratos que lavava, no chão que varria, na cama que arrumava, no cachorro que latia, na roupa que pendurava, em tudo aquilo que ele fazia, nas coisas que amava, e também nas que não queria, foi devagar entendendo que a partir daquele dia, tomar conta de si, era o que ele faria.
Aos poucos ficou claro que não adiantava mais pedir ajuda, pedir conselhos, pedir desculpas, pedir alívio, agradecer pelos acertos. O pai que fazia todas essas coisas, não estava mais ali.
Viu que as coisas do pai se cobriam de poeira, as roupas paradas na gaveta não se moviam, as folhas largadas sobre a mesa, só acordavam na janela aberta de vento.
 
Na solidão de seu dia, descobriu que era o único responsável pelo seu sucesso, descobriu que sozinho poderia muito facilmente, fazer acontecer o pior de seus fracassos.
Entendeu que se mantivesse o foco e se esforçasse muito, o sucesso poderia acontecer, viu também que se não ficasse atento e alerta, o fracasso viria correndo interceder.
Descobriu que lhe dava prazer e alegria sentir o alivio que trazia até alguém que precisava de ajuda, mas a não ser por esse prazer e essa alegria, seu pai não viria para lhe sorrir. Ele não se importou, porque o sorrir de quem sofria era o prazer e a alegria que ele sentia, a coisa mais importante de seu dia.

Viu que vergonha e culpa aconteceria, ao trazer dor e sofrimento, mas no fundo ele sabia que punido, não seria a não ser pelo espelho que seu olhar culpado trazia.

O menino ficou feliz, pois entendeu que poderia ser feliz, ou infeliz, mas não seria por ser ser negro, por ser crente, poder ser ateu ou ser doente, por ser rico ou branco, por gostar homens, de tolos ou de santos, por ser gari, doutor ou presidente. 

O menino entendeu e aceitou que não tinha controle sobre o mundo, sobre os outros, e entendeu que quem controlava o mundo era o acaso, o puro acaso sim, era o verdadeiro motor do mundo.

Então ficou claro que a desgraça não escolhe a cor das pessoas, não escolhe a fé e muito menos a falta dela. Que vem o desavento e ele não escolhe, nem se importa, pois o desavento é como o vento, apenas sopra, apenas é. 

O menino viu que podia escolher entre o medo e o desespero; e a serenidade e desejo de reconstruir  qualquer coisa que lhe fosse arrancado. Poderia virar a página e uma folha em branco o esperava para receber em suas linhas, suas palavras, suas frases, suas rimas.

O menino não havia golpe de sorte, porque não havia, sorte, apenas morte. Viu que era o puro acaso que atropela com o bonde a primeira alma que passa, assim como o vento leva as folhas, sabe-se lá qual delas, sabe-se lá para onde.

Viu que não havia destino, que não havia nada escrito, mas havia um caminho, mesmo restrito, traçado no chão como linha do destino, esperando para ser percorrido e depois, poder olhar para trás no tempo que passou e chamar de destino, aquele mesmo caminho por onde ele andou.

Entendeu que o que estava escrito, era obra que alguém que buscou uma pena, a dedicou ao papel, imaginando cada cena, cada problema, cada poema. Mas que no fundo fora só mais um que escrito tinha, só porque tinha decidido, ou tinha ouvido, algo que alguém havia dito, só isso, cada palavra, cada frase, cada linha. 

Logo, o menino cresceu, e assim tão logo, entendeu que do pai que sumira, ficara só uma ideia, como num sonho distante, um devaneio, uma odisseia. 
Sentiu o calor do fim do dia e dos primeiros raios de sol. O arrepio da água fria, o brilho das estrelas no céu, o acariciar da brisa. E a lembrança do pai, nuvem passageira, quase irrelevante, passava distante e num ponto pequeno logo adiante, desse mundo tão mundo gigante acelerando ao seu redor. Mundo esse que corre solto, que nasce, vive e morre sem se dar conta de si, sem perceber sua grandeza, entrega a vida, assim, de bandeja.

O menino até voltou para a igreja, admirou a cultura, a arte e a beleza, aprendeu a meditar, viu que era o mesmo que rezar e que naquele tempo para si, podia escutar seu coração e que isso era muito bom.

Não precisava pedir, o universo se encarregaria de a seu favor conspirar. Bastava agir, sem muito esperar.

O menino ficou tranquilo pois viu que quando ele morresse, não iria para outra vida, mas poderia continuar vivo dentro das mentes e corações das pessoas, especialmente aquelas para quem ele tivesse algum significado. Então sentiu a necessidade de criar esse significado, viu que fazer valer sua vida era o que existia de mais urgente.

Entendeu que o pecado vive dentro da cabeça dos homens e que aquilo que um dia foi reprovado, pode se tornar virtude depois de ter sido pecado. O menino viu que pecado mesmo é fazer sofrer, é provocar dor, é se apoderar do outro, desumanizar, desprezar, odiar do outro, sua cor, seu sexo, sua casa, seu desejo, seu amor.

O menino viu que viver era ver seu mundo, mundo se tornar. Era construir, realizar, alcançar e melhorar, perdoar, acariciar, mas principalmente, amar.

O menino então, viu seu desejo. E pela primeira vez, viu que era seu. Pela primeira vez o menino não foi o desejo do outro materializado nele mesmo, mas sim o seu próprio. O menino não iria desaparecer para dar espaço ao desejo do outro porque descobriu que ele também tinha um lugar no mundo, que ele também tinha um nome, que ele também podia amar a si mesmo. 

Por isso ele correu, correu o mais que pode correr, era preciso correr porque o tempo era curto e era preciso fazer uma diferença, era preciso deixar uma marca, um sorriso, uma lágrima, uma lembrança.. e então ele viu que corria e continuava correndo, mas dessa vez corria não porque era preciso, mas porque ele simplesmente desejava. 

Corre menino!! 

texto: Silvio Ambrosini
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3 comentários:

Unknown disse...

Muito lindo como sempre, inteligente e verdadeiro. Voce é muito bom no que escreve. Parabens

Unknown disse...

Muito bom Sivuca, como sempre.

Joe Ferreira disse...

Muito bom.

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