sexta-feira, 29 de junho de 2018

Chamaram-me de arrogante, e agora?


Chamaram-me de arrogante, e agora?

Análise e síntese de um mal que atrapalha a vida de alguns professores, instrutores, coaches e afins.

Metido a besta, filha da puta, imbecil... e outros adjetivos podem também ter sido utilizados, ou simplesmente um “depois falamos sobre isso”... mas tudo significa a mesma coisa. Se de alguma forma isto teve alguma importância para você, então já pode ficar tranquilo, você ainda pode ser salvo! Não por Shiva, Buda ou Jesus, mas por suas próprias ações e atenções.

Análise


A arrogância é um mal que assola uma parcela bastante expressiva de pessoas, especialmente aquelas que de alguma forma aprenderam ou estão em processo de aprendizado de alguma faculdade física ou mental. Estas últimas são as maiores vítimas, pois aquelas que realmente já se tornaram verdadeiros mestres, normalmente já passaram pelo estágio de ajustes dos níveis de arrogância pessoal, embora isso não seja uma regra, afinal é possível se encaixar no ditado que meu velho pai nunca deixava de mencionar entre seus ensinamentos “Quanto mais cresce, mais burro fica...”
Percebo que o ápice dos sintomas acontece durante a fase básica ou intermediária, quando o arrogante clássico já conseguiu sua carteirinha nível 1 ou “aprendiz-de-coach” ou algo parecido. Não se espante com eventuais pontuações de ironia, isso faz parte do “processo educacional”.
Nessa fase, o Joãozinho (vamos dar um nome pra ele, né? Fica mais fácil assim) já sabe um monte, já ganhou seus trofeuzinhos, já tem sua carteirinha e já pode tomar conta de um grupinho de alunos. Nessa hora Joãozinho olha em volta e identifica os alunos que se encaixam no seu perfil. Estes são o solo mais fértil para seu progresso, afinal toda a sua dedicação lhe rendeu benefícios justamente por ele ter vivido uma vida assim: dedicado, esforçado, apaixonado e por que não dizer, fanático de carteirinha pela sua atividade. Então os alunos escolhidos são a chance mais visível de deixar claro o quanto Joãozinho domina seus conhecimentos e é a eles que Joãozinho dedica-se com amor e com todos os ingredientes que fizeram dele, o que ele é hoje. Os mesmos ingredientes que trouxeram Joãozinho, até o pedestal que hoje ele ocupa.

Mas... existem os outros... e agora olhando com “olhos de Joãozinho”, os displicentes, os pegadores de bonde-andando, os curiosos, os desinteressados. Todos aqueles outros alunos que “claramente” não demonstram o mesmo amor pela atividade. Alguns desses inclusive, parece que estão na verdade, invejosos das conquistas de Joãozinho e preparados para fazer o que for possível, para derrubá-los de sua merecida e arduamente conquistada posição.

Esta análise é bastante peculiar porque ela pode parecer uma visão muito equivocada da realidade, não é mesmo? Mas é justamente por isto que ela existe. Cada indivíduo tem uma visão diferente da realidade. Cada pessoa tem suas prioridades e constrói sua forma de ver e vivenciar cada experiência. É claro que existe um mínimo, não se pode contar com um aluno de voo livre, por exemplo, que compareça às aulas uma vez por mês, ou com um iniciante de Crossfit que acredite que em duas semanas conseguirá levantar um peso maior que o dele. A verdade é que Joãozinho, tem bastante experiência na atividade. Conhece os meandros técnicos e teóricos como poucos, além de contar com uma habilidade muito diferenciada, fruto evidente de toda sua suada dedicação.
 Na mente de Joãozinho, aqueles alunos “ruins” representam um perigo, um risco de colocar todo um longo processo a perder, pior que isso, um questionamento da possível fragilidade de algo que foi construído no mais sólido dos alicerces. Afinal quem estes alunicos acham que são?
 
Mas, o que é difícil para o Joãozinho enxergar e aceitar, é que sua pouca experiência com seres humanos ainda é flagrante se comparada à de um “mestre de mil almas”, aquele mestre capaz de desentortar galhos, polir pedaços de carvão até que brilhem, fazer concreto nadar borboleta, lançar arames retorcidos para o voo. Joãozinho está então diante de um momento complicado, pois chegou no momento exato em que aparentemente ele poderia relaxar um pouco mais diante do término de um longo processo; e de um momento para outro ele se vê em um terreno inóspito onde tudo aquilo que ele aprendeu, tem pouca ou nenhuma relevância... Sim, acabei de dizer pouca ou nenhuma relevância, porque esta é a dura realidade. A atividade em si não é a chave da compreensão dos meandros das motivações humanas, mas pode sim tornar-se um elemento essencialíssimo no sentido de que é através da atividade, que Joãozinho torna-se capaz de agregar os indivíduos que serão ingredientes inadiáveis para que seu processo interno de estudo e compreensão destas motivações possa ser gerenciado com sucesso.
Síntese

Diante da irrevogabilidade do convívio com estes “seres”, Joãozinho precisa então urgentemente, assumir uma forma de intermediador de universos. De um lado, o universo da atividade, com todas suas complexidades, segredos, manhas, tempos e métodos. De outro, o universo do aluno aprendiz com sua sede, sua pressa, sua volubilidade, seu interesse discutível, sua desconfiança e até mesmo, sua arrogância inerente. Joãozinho está a um passo de se tornar um verdadeiro instrutor, um verdadeiro coach, um mestre de verdade. Joãozinho conseguirá isto quando incorporar a função de veículo facilitador, capaz de interpretar a complexidade da atividade, traduzindo-a no idioma do leigo e sendo capaz de através de um processo coerente de aprendizado de tarefas intermediárias, conduzir seu aprendiz até as profundidades do core da atividade.

A linguagem é a chave, a empatia é essencial. Aproximar-se da língua do aluno significa que é preciso eliminar qualquer possibilidade que paire no horizonte e signifique que o aluno precisa subir em algum degrau para conseguir fechar um canal de comunicação com o instrutor, ou seja, o instrutor deve literalmente descer das tamancas... vestir a sandaliazinha da humildade do Vesgo e traduzir em as complexidades do vernáculo da atividade em língua de aluno. Isto começa com o bom dia, o aperto de mãos, o sorriso, o carinho, a impressão (mesmo que seja só isso) que Joãozinho demonstra algum tipo de interesse pela vida de seu aluno. Pode parecer impressionante, mas Joãozinho as vezes não consegue esconder sua falta de interesse nas vidinhas terrenas de seus alunos e isto é um problema grave, pois esse desinteresse flagrante se transforma em um muro eventualmente intransponível entre o aluno e o instrutor.

Joãozinho perde o aluno, este posta críticas ácidas nas redes sociais e as vezes dá até briga no estacionamento. Que feio, não é mesmo?

É duro pensar que cabe ao instrutor a tarefa de garantir esta aproximação e que Joãozinho é na maior parte das vezes, o único responsável pela dissidência de alunos em sua academia, sua escola, seu meio social. É claro que haverá seres irremediáveis nos meandros do processo, afinal nada na vida é 100%, mas todos devemos estar preparados para frustrações e principalmente, para utiliza-las como degraus de aprendizado para evitar repetições no futuro.


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