Poliana assistia, impassível, aos seus dias sendo arruinados, toda vez que se deitava para enfrentar o intervalo entre dormir e acordar. Tentava dormir girando sob as cobertas, enquanto as horas se arrastavam. Até que, de manhã, a luz do dia entrava pela janela. Colocava os pés para fora da cama e, antes mesmo de tocar o chão frio, sentia medo. Recolhia os pés num átimo, como se tivesse pisado em brasa. Mas era o frio que também queimava.
Seu amigo e colega de trabalho, Daniel, havia morrido meses antes. Ingênua vítima da pandemia, não durou dez dias — talvez tenham sido nove. Deixou a família em prantos, os amigos incrédulos, os colegas assustados. Seus planos desmoronaram enquanto sua vida se tornava estatística.
Entrar no ônibus era um desafio. Em meio àquela loucura — amigos morrendo, máscara, distanciamento — notícias horríveis escorriam da tela do celular. Sentada no canto do ônibus, calculava como chegaria ao trabalho ilesa. Levantava-se para apertar o botão do próximo ponto e planejava cuidadosamente como sair sem tocar nos canos, sem encostar naquelas superfícies impregnadas de suspeita e terror.
Na mesa do trabalho, diante do computador, organizava tudo meticulosamente. Revisava cada item, buscando a perfeição possível — embora duvidosa — que passava pela tela do PC. Ao redor, uma imperfeição irresponsável e incorrigível controlava o mundo e estendia seus dedos frios em sua direção. Sentia medo. Sentia-se oprimida.
Em fevereiro, alguém a empurrou no ponto de ônibus e arrancou a bolsa de suas mãos. Atônita, acompanhou com os olhos o rapaz correr pela rua movimentada, arriscando a vida entre os carros. Ela, que salvava moscas perdidas nas vidraças da janela, torceu, em silêncio, para que um carro o atingisse. Imaginou seu corpo voando, o tempo se arrastando, até ele desaparecer na esquina.
Então, seu companheiro também adoeceu. Isolou-se no quarto, enquanto ela, pela fresta da porta, empurrava o prato de macarrão. Depois, sentavam-se, cada um de um lado da madeira fria. Perdiam-se em tentativas de palavras, interrompidas por longos e sóbrios silêncios. Seus olhos corriam pelo corredor. Observava as sombras na parede da cozinha, como se tentassem invadir o apartamento. Encolhia os tornozelos debaixo de si e, no frio do piso, deixava as lágrimas molharem os joelhos. Enxugava o rosto com o dorso da mão, soltava um boa-noite, tocava a fórmica e cambaleava até a cama.
No dia seguinte, tudo recomeçava. Era hora de fazer algo.
Na primeira manhã fria de outono, decidiu abandonar o trabalho. Comunicou irredutível aos patrões, enquanto escutava as monótonas sugestões alternativas: férias, descanso, afastamento… Nada disso servia. Só a demissão traria o caráter definitivo que ela precisava impor a alguma parte de sua vida tão incerta.
Ao longo dos vinte dias seguintes, as horas se arrastaram enquanto organizava o trabalho e as tarefas que deixaria para os colegas. Criou tabelas, procedimentos — tudo com a costumeira perfeição que a resgatava das dúvidas do dia seguinte. Ao longo daqueles dias, consultou especialistas, aviou receitas, lidou com melhoras e recaídas. Recebeu o consolo dos amigos e familiares, mas seu olhar traduzia o desespero onde sua alma habitava.
Chegou o dia da despedida. Imaginei que seria bom fazer uma pequena homenagem. Com flores, talvez.
Procurei uma floricultura, sem sucesso, até me lembrar que, ali perto do cemitério, certamente haveria alguma. E, no fim das contas, flores de perto do cemitério são flores como quaisquer outras, que florescem e alegram o coração de qualquer cidadão.
Entrei. Uma moça silenciosa me atendeu.
— Bom dia. Gostaria de flores para uma pessoa viva.
— Claro — respondeu, apontando alguns arranjos na extremidade da loja.
Escolhi um bonito buquê. Enquanto ela o preparava, encontrei um grande cartão colorido.
Deixei o buquê no carro e fui ao escritório. Conversei em separado com cada colega, contei que aquele seria o último dia de Poliana e pedi que escrevessem algumas palavras de carinho no cartão.
Horas depois, o cartão voltou às minhas mãos. Abri-o e vi o papel coberto de palavras espremidas, tentando caber. Fui lendo. As primeiras lágrimas brotaram dos meus olhos. O amor contido naquelas palavras me comoveu. Pessoas que nunca imaginei que escreveriam algo, colocaram ali emoções sinceras, carinho, compreensão. Havia de fato amor no coração daqueles colegas.
Comovido, combinei com Benício: eu mesmo entregaria o presente em particular.
Entrei na sala de Poliana. Ela virou o olhar. Coloquei o buquê sobre a mesa. Tentei falar, mas os soluços vieram. Atirei-me em seus braços, em prantos. Não por perder uma secretária. Mas por ver minha amiga partir, em meio a tanta dor, sem que eu tivesse conseguido ajudá-la.
Sem saber direito o que fazer, ela me abraçou. E de repente, eu era consolado pela pessoa mais triste que eu conhecia. Era possível ser superado na tristeza? Existia uma tristeza definitiva? Quem seria, afinal, a pessoa mais triste do mundo? Como se mede a tristeza?
Essas perguntas não foram ditas, mas Poliana parecia percebê-las.
Foi então que eu disse:
— Me dá uma dessas pílulas que o psiquiatra te deu, vai?
Ela riu. Riu pela primeira vez em tanto tempo. E eu senti que ela poderia sair dali e, um dia, voltar refeita.
Entre soluços, insisti:
— Tá vendo como você ainda consegue rir? Você vai ficar bem, Poliana. Você consegue, menina!
Pela primeira vez, ela pareceu acreditar. E no final daquela tarde, com um discreto pedacinho de sorriso no canto do rosto — lindo e dolorido — partiu confiante de que teria, sim, uma chance.
Você pode escutar esse texto em meu podcast no Spotify clicando aqui.
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