Empurrei devagar a cadeira de rodas, presente de uma amiga querida, vencendo as irregularidades da calçada de Itararé até pararmos em frente à praia. Uma brisa suave soprava do mar, trazendo umidade e calor. Estacionei a cadeira e me sentei no banco, de frente para ele. Falei sobre o tio Alfredo, sobre a tia Madalena, e ele apenas aquiesceu com um leve sorriso. Então agarrou os aros da cadeira e iniciou pequenas manobras, se esforçando para movimentar a engenhoca. Fiquei observando, espantado — estava acostumado com sua flagrante passividade. Finalmente, ele agia. Perguntei se tinha gostado da cadeira. Ele fez que sim com a cabeça, num gesto previsível dentro de seu universo de poucas palavras. Mas me surpreendeu outra vez, comentando que era boa… porque andava com medo de cair.
E como humano, tentou ser o melhor pai que conseguiu. Mostrou seu amor das maneiras mais estranhas: se, por um lado, sua generosidade era flagrante, um estranho véu de violência pairava sobre muito do que fazia. Era o seu método. Ele estava se esforçando e acreditava nele.
É claro que, da minha parte, muito desse método era reprovável. Levei tempo para me desvencilhar da lembranças da dor dos tapas, fingir esquecer o medo dos gritos, a tensão dos seus passos ressoando no corredor de casa… mas acho que consegui.
Vi que, se não o perdoasse, entendendo a sua maneira de ser, a mágoa me corroeria para sempre. Então, escolhi recuar. Escolhi olhar para as “boas coisas”.
Ele me ensinou a apertar parafusos, martelar pregos, torcer arames, cortar e soldar fios. Me apresentou ao mundo dos carros de corrida, das marcas de automóveis, do futebol (que nunca consegui gostar), das antenas e transceptores do radioamador — e, se não fosse por isso, talvez eu nunca tivesse me tornado tão fluente em inglês.
Ele me ensinou a dirigir e, com 15 anos, eu conduzia seu caminhão carregado com quatro toneladas de tambores de latão e dois trabalhadores grandalhões ao meu lado.
Ele me ensinou a não ter medo de altura. A não ter medo dos desafios. A não ter medo do amanhã.
Com ele, aprendi a gostar de mim mesmo. Aprendi que eu poderia ser quem e o que eu quisesse ser.
Entre tapas na orelha, brigas de trânsito e o claro desprezo pelos mais fracos, ele também me valorizou, me respeitou, confiou em mim.
Com o tempo, me tornei adulto — e o “pai” gradualmente virou o “Seu Fernando”. E o filho se tornou confidente, companheiro de profissão, de vida.
Aprendi que meu estúpido pai também era meu maravilhoso pai.
Dentro do carro, para um raro passeio pela avenida, mandei que ele apertasse o cinto e segui em frente. Parado no semáforo, olhei para sua mão esquerda encolhida sobre a perna. Tomei-a suavemente entre as minhas.
Abri seus dedos, acariciei sua palma e fui lendo, curioso, as débeis linhas. Virei a mão, passei os dedos pela pele fina que cobria os ossos.
A luz verde apareceu e acelerei, segurando o volante. Alcancei o celular e coloquei “Sapore di Sale” no Spotify. Abri os vidros e, deslizando a 25 km/h, tomei a orla do Atlântico, enquanto a brisa suave invadia o carro.
Trocamos um olhar incógnito, mas que, para mim, só significava uma coisa: eu já te perdoei, pai. Agora é hora de dizer que te amo.
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