Empurrei devagar a cadeira de rodas, presente de uma amiga querida, vencendo as irregularidades da calçada de Itararé até pararmos em frente à praia. Uma brisa suave soprava do mar, trazendo humidade e calor. Estacionei a cadeira e me sentei no banco olhando-o de frente. Falei sobre o tio Alfredo, sobre a Tia Madalena e ele apenas aquiesceu com um leve sorriso. Então ele agarrou os aros da cadeira e iniciou algumas pequenas manobras, se esforçando para movimentar a engenhoca. Fiquei observando espantado, pois andava acostumado com sua flagrante passividade, finalmente ele agia. Perguntei então, se ele tinha gostado da cadeira. Ele fez que sim com a cabeça, num gesto previsível dentro de seu universo de poucas palavras, mas então me surpreendeu outra vez comentando que era boa, porque ele andava com medo de cair.
Concordei formalmente, mas dentro de mim uma surpresa imensa se materializou. Pela primeira vez na vida eu o via confessar um medo. Ele, que sempre havia sido tão orgulhoso a ponto de perder a credibilidade, fazendo sempre questão de deixar uma impressão de invencibilidade inabalável, constantemente acompanhada do eterno bom humor com toques de ironia e arrogância, finalmente me confessava um medo, seu medo. Poderia ter feito isso antes, Seu Fernando... para que demorar tanto até admitir que você é apenas humano?E como humano, ele tentou ser o melhor pai que pode conseguir, mostrou seu amor das maneiras mais estranhas, pois se por um lado, sua generosidade era flagrante, um estranho véu de violência pairava constantemente sobre muito do que ele fazia. Era seu método, ele estava se esforçando e acreditava nele. É claro que da minha parte, muito do seu método era reprovável, levei muito tempo para me desvencilhar da dor dos tapas, fingir esquecer do medo dos gritos e da tensão de seus passos ressoando pelo corredor de casa, mas acho que consegui chegar lá. Senti que se eu não conseguisse perdoá-lo, entendendo sua maneira de ser, uma mágoa iria me corroer para sempre, então vi que era preciso recuar e olhar para as “boas coisas”.
Ele me ensinou a apertar parafusos, martelar pregos, torcer arames, cortar e soldar fios. Me apresentou ao mundo dos carros de corrida, das marcas de automóveis, do futebol (que eu nunca consegui gostar), das antenas e transceptores do radioamador e se não fosse por isso, eu talvez nunca teria me tornado tão fluente em inglês. Ele me ensinou a dirigir e com 15 anos, eu conduzia seu caminhão carregado com 4 toneladas de tambores de latão e dois trabalhadores grandões de meu lado. Ele me ensinou a não ter medo de altura, a não ter medo de desafios, a não ter medo do amanhã. Com ele, aprendi a gostar de mim mesmo, aprendi que eu poderia ser quem e o que eu quisesse ser.
Entre tapas na orelha, brigas de trânsito e o claro desprezo pelos mais fracos, ele me valorizou, me respeitou e confiou em mim. Com o tempo, me tornei adulto e o “pai” gradualmente virou o “Seu Fernando”. E o filho se tornou um confidente, um companheiro de profissão e de vida.
Aprendi que meu estúpido pai também era meu maravilhoso pai.
Então, dentro do carro para um raro passeio pela avenida, mandei que ele apertasse o cinto e segui em frente. Parado na luz vermelha, olhei sua mão esquerda encolhida sobre a perna e a tomei em minhas mãos suavemente. Abri seus dedos e acariciei sua palma enquanto aprendia curioso as débeis linhas. Virei aquela mão, e acariciei a fina pele sobre os ossos dos dedos, então a luz verde apareceu e eu acelerei segurando o volante. Alcancei o celular e coloquei “Sapore di Sale” no Spotify, abri as janelas e deslizando a 25km/h, tomei a orla do oceano Atlântico que soprava sua brisa suave pela janela. Trocamos um olhar incógnito, mas que para mim significava só uma coisa: Eu já te perdoei pai, então é hora de dizer que te amo.
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