sábado, 23 de abril de 2022

Acabando com "isso aí..."

Era um país que já vinha calejado, o ranço burguês contra o sucesso do operário que virara presidente, já irritava há tempos, onde já se viu um parvo presidente? Que direito tem ele, vindo do encardido da graxa das máquinas, sentar-se à cadeira máxima do Planalto? Como se atreve a gastar tanta energia com a gentalha do nordeste? O novo presidente era o símbolo de um levante indesejado, o triunfo do proletário, a derrota da burguesia, era campanha Marxista deslavada, desavergonhada. Muita gente não gostou nada daquilo, apesar do avanço do país, o velho inconformismo falava mais alto.

O operário soube orquestrar relações, foi eleito duas vezes e suas conquistas foram derradeiras para garantir que pela primeira vez na história do país uma mulher se tornasse Presidente da República. Porém com ela, as coisas não foram tão fáceis, sua habilidade política coincidia com seu baixo nível de paciência e ela não custava muito para botar senador corrupto pra fora do gabinete. Uma mulher que fora torturada pelo sistema militar, tinha muito pouca paciência para lidar com os filhos desse mesmo sistema, herdeiros da ditadura, netos do império e da escravidão, filhos de tempos em que lugar de preto era na senzala e em nenhum outro lugar, tempos em que lugar de operário era o chão da fábrica, tempos em que a empregada não andava de avião, tempos em que o filho dela, nascido sabe-se lá de qual pai, não fazia faculdade, tempos em que favelada não vendia discos muito menos virava empresária, bons tempos em que lugar de mulher era na cozinha, com a barriga no fogão, e que homem de verdade não tinha isso aí de viadagem, e se tivesse, era doença fácil de curar na porrada, na facada e no tiro. Naquele tempo, não tinha mimimi, homem não se vestia de mulherzinha, eram tempos em que preto, se não cagava na entrada, cagava na saída... Preto apanhava primeiro, porque preto só queria roubar seu dinheiro, e bandido bom era bandido morto, e direitos humanos defende criminoso e mulher feia não merece ser estuprada, e torturador da ditadura merecia busto em praça e nome de rua.

A mulher presidenta tinha que cair e não foi difícil encontrar uma desculpa para tirá-la do cargo, a tal da pedalada cinicamente serviu para o propósito.

As denúncias de corrupção funcionaram como uma conveniente desculpa para um grupo de pessoas que odiava pobre, poder se voltar contra eles. A classe média que vivia cercada pelos muros do condomínio, comendo picanha e tomando cerveja de grife não podia ser simplesmente invadida por aquela gente. 

Ela caiu em meio a um show de horrores em seu lugar o decrépito vice-presidente assumiu o cargo.

Na época, o discurso era cheio de pompa, um padrão empolado que irritava e cansava especialmente a classe média. Foi então que surgiu um sujeito que tinha uma fala desbocada, parecida com a de nossos tios quando discutiam futebol ou jogavam truco, um jeito suburbano e grosseiro de expressar, ao estilo churrasco de sábado com cerveja além da conta, vocabulário de briga de trânsito, de discussão em portaria de clube, de barraca de feira, o clássico barraco baixaria que fazia parte do dia a dia de muitos brasileiros. No discurso do impeachment, homenageou um legítimo torturador, justamente aquele que havia sido responsável pelas torturas que durante o regime militar foram impostas inclusive à própria presidenta. As pessoas ouviram aquelas palavras e ficaram imersas em um letárgico, dolorido e assustador silêncio. Nascia ali um vírus, uma doença que levaria um bom tempo para ser curada 

E os cidadãos de bem, detentores do estandarte da família tradicional brasileira, adoraram. Finalmente alguém que não tinha frescura, não tinha o tal mimimi, que falava de porrada, que criticava a viadagem, que mandava mulher calar a boca, capaz de dizer na cara de uma deputada, que ela não servia nem para ser estuprada. E aquelas palavras foram normalizadas e isso causou arrepios em muita gente.

Assistimos atônitos o despertar de sentimentos represados e reprimidos e desesperados acompanhamos o resultado final das eleições, aquele homem grosseiro, que fugira de todos os debates e entrevistas, simulou uma facada que despertou uma simpatia inédita em uma parte indecisa da população, justamente aquelas pessoas que mergulhadas em uma história de paternalismo, sentiam falta de um ícone, de um ídolo para chamar de seu. Deu certo, junto com a desmoralização do partido dos trabalhadores, aquelas pessoas acreditaram que o método porrada era a solução. Entre eles, muitos se sentiram identificados com aquele comportamento preconceituoso, machista, homofóbico, xenófobo, misógino, com sua arrogância lasciva. Eram pessoas que tinham sido forçadas a se calar durante os anos anteriores, pelo avanço do politicamente correto. Agora, finalmente aparecia alguém para lhes dar o aval que elas desejavam, e era justamente o presidente da república. 

Nada do que veio a seguir nos impressionou mais do que envergonhou. O novo presidente revelava a cada palavra, a cada decisão, um pouco do que vinha: colocar em prática sua política fascista até as últimas consequências. Suas gafes em todas as áreas eram constantes, sua falta de habilidade política ultrapassava o grotesco enquanto isso, um estranho silêncio emanava da imprensa. 

É claro que muito foi dito contra ele, mas considerando a situação, esperava-se muito mais. Sua retórica continuou fascinando uma pequena multidão que foi gradativamente percebendo a falácia de tudo aquilo, mas um pequeno grupo muito fiel, que se identificava com a essência daquele pensamento, permaneceu agitando suas bandeirinhas verde-amarelas até o final.

Os dias iam virando história, certamente um dia os filhos de nossos filhos abririam o livro de história do Brasil para saber sobre o tempo em que nosso país se transformou em uma nova ditadura fascista sob o comando de um sociopata chamado Jair Messias Bolsonaro.


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