Água batida na pedra
(ou uma visão realista das dificuldades atravessadas pelas pessoas trans na contemporaneidade)
— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?
Ele ri e explica: é diferente, sim. A água da torneira escorre pacífica quando você abre o registro. Já a da cachoeira… pacífica, ela não tem nada. É uma água vivida, sofrida, “batida na pedra”.
— Isso deixa ela especial, sabe? Tá vendo que o gosto é diferente?
Dou outro gole e penso: talvez… está geladinha. É boa.
— Mas como é isso, Seu Beraldo? O que significa “batida na pedra”?
— É assim, rapaz. Pra essa água chegar aqui, dentro dessa caneca que ocê tá bebendo, ela não veio fácil, não. Sofreu todo tipo de ataque. Veio descendo o riacho, batendo nas pedras, enfrentou redemoinho, andou muitos quilômetros, se atirou de vários metros lá de cima, bateu com força no chão cheio de pedra do rio… É água transformada. Por isso, é especial. Precisa sentir o gosto dela… é água batida na pedra.
— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.
— Aproveita, rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa, não. Lá é só água de torneira ou de supermercado. Vou te dar um galão, leva um pouco pra sua casa.
Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...
Eu rio por dentro e, claro, aceito o galão da “água batida na pedra”. Mesmo sabendo que água é tudo água. Ou pelo menos, achava que era.
Anos depois, contratei pessoas trans para o quadro de colaboradores da empresa onde trabalho. E, ao conhecê-las um pouco melhor, lembrei de Seu Beraldo e da água batida na pedra.
Eu já tinha um amigo trans-masculino que trabalha em assistência pessoal e antes de fazer a contratação, perguntei a ele sua opinião. Para minha surpresa, ele me desaconselhou a seguir com o processo seletivo, me explicando que o risco de que tudo aquilo se transformasse em mais sofrimento era grande demais. Mas eu insisti e ele me disse: "aprenda mais sobre as transsexualidades, o mais que você puder. Se nada daquilo te assusta, então siga com teu projeto, mas seja especialmente cuidadoso".
Eu segui em frente, me informe o máximo que pude e conversei especificamente sobre estes temas com aqueles candidatos. Resolvemos tentar.
Percebi que, de certo modo, pessoas trans são como água de cachoeira. Passaram por todo tipo de porrada na vida: muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas (o que dá no mesmo). Tiveram portas batidas na cara, enfrentaram agressões, discriminação e, não raro, a morte. Sabemos como o psiquismo humano resiste às diferenças. A simples ideia de que alguém possa ser, ao mesmo tempo, feliz e diferente é o motor de muito preconceito. E, infelizmente, isso alimenta a violência.
Não por acaso, o Brasil lidera o triste ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Essa informação já basta para que qualquer pessoa trans se sinta ameaçada apenas por existir.
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