sexta-feira, 24 de março de 2023

Água batida na pedra


Água batida na pedra 

(ou uma visão realista das dificuldades atravessadas pelas pessoas trans na contemporaneidade)


Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha simples um senhor chamado Seu Beraldo.

Com os dedos calejados, Seu Beraldo verte água de um jarro de barro numa surrada caneca de alumínio e me oferece:

— Essa água não é de torneira, não, viu? Essa é água da cachoeira… ela vem batida na pedra!

Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.

Curioso, inclino a caneca contra os lábios e, enquanto bebo, observo os pequenos olhos de Seu Beraldo por cima do alumínio. A água é gelada, gostosa.

— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?

Ele ri e explica: é diferente, sim. A água da torneira escorre pacífica quando você abre o registro. Já a da cachoeira… pacífica, ela não tem nada. É uma água vivida, sofrida, “batida na pedra”.

— Isso deixa ela especial, sabe? Tá vendo que o gosto é diferente?

Dou outro gole e penso: talvez… está geladinha. É boa.

— Mas como é isso, Seu Beraldo? O que significa “batida na pedra”?

— É assim, rapaz. Pra essa água chegar aqui, dentro dessa caneca que ocê tá bebendo, ela não veio fácil, não. Sofreu todo tipo de ataque. Veio descendo o riacho, batendo nas pedras, enfrentou redemoinho, andou muitos quilômetros, se atirou de vários metros lá de cima, bateu com força no chão cheio de pedra do rio… É água transformada. Por isso, é especial. Precisa sentir o gosto dela… é água batida na pedra.

— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.

— Aproveita, rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa, não. Lá é só água de torneira ou de supermercado. Vou te dar um galão, leva um pouco pra sua casa.

Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...

Eu rio por dentro e, claro, aceito o galão da “água batida na pedra”. Mesmo sabendo que água é tudo água. Ou pelo menos, achava que era.


Anos depois, contratei pessoas trans para o quadro de colaboradores da empresa onde trabalho. E, ao conhecê-las um pouco melhor, lembrei de Seu Beraldo e da água batida na pedra.

Eu já tinha um amigo trans-masculino que trabalha em assistência pessoal e antes de fazer a contratação, perguntei a ele sua opinião. Para minha surpresa, ele me desaconselhou a seguir com o processo seletivo, me explicando que o risco de que tudo aquilo se transformasse em mais sofrimento era grande demais. Mas eu insisti e ele me disse: "aprenda mais sobre as transsexualidades, o mais que você puder. Se nada daquilo te assusta, então siga com teu projeto, mas seja especialmente cuidadoso". 

Eu segui em frente, me informe o máximo que pude e conversei especificamente sobre estes temas com aqueles candidatos. Resolvemos tentar.

Percebi que, de certo modo, pessoas trans são como água de cachoeira. Passaram por todo tipo de porrada na vida: muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas (o que dá no mesmo). Tiveram portas batidas na cara, enfrentaram agressões, discriminação e, não raro, a morte. Sabemos como o psiquismo humano resiste às diferenças. A simples ideia de que alguém possa ser, ao mesmo tempo, feliz e diferente é o motor de muito preconceito. E, infelizmente, isso alimenta a violência.


Não por acaso, o Brasil lidera o triste ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Essa informação já basta para que qualquer pessoa trans se sinta ameaçada apenas por existir.


Água é fluida, adapta-se onde estiver. Toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Evapora, foge da gravidade. Congela, vira pedra. Escapa pelos menores buracos, pode ser torcida, batida na pedra com a força que for.

Mas gente de carne e osso não é tão fluida assim. Pessoas batidas na pedra não saem ilesas do outro lado da cachoeira. As porradas deixam marcas, cicatrizes, traumas. Exigem um tanto de jogo de cintura, de coragem, de vontade de seguir vivendo.

É por isso que empresários e colegas de trabalho precisam compreender essa realidade. Precisam criar ambientes que recebam pessoas trans com sensibilidade — sabendo que a confiança, nesses casos, é construída devagar. Depois de tanta porrada, convenhamos, não é simples acreditar que o novo grupo não será apenas mais uma pedra no caminho.

A confiança que sentimos para fazer brincadeiras — às vezes preconceituosas, mesmo sem querer — precisa ser repensada. Por respeito, por humanidade, por desejo real de construir um lugar onde todos sejam, de fato, acolhidos como iguais.

A pessoa trans não está em busca de ser diferente. Muito pelo contrário. Ela só quer ser aceita como qualquer outra pessoa.

Porque, assim como a água continua sendo água depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans só quer chegar do outro lado reconhecida e respeitada, simplesmente, como a pessoa que é.

Um dos colegas saiu da empresa, mas o outro segue conosco até hoje.




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