Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha muito simples, um senhor chamado Seu Beraldo.
Com seus dedos calejados, seu Beraldo verte água de um jarro de barro em uma surrada caneca de alumínio e me oferece para beber enquanto diz:
— Essa água não é água de torneira não viu? Essa é água da cachoeira, ela vem “batida na pedra!
Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.
Curioso, inclino a caneca contra meus lábios enquanto observo os pequenos olhos de seu Beraldo por cima do alumínio enquanto bebo da frescura que o gélido líquido me oferece.
— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?
Ele ri e explica que é diferente sim, porque se a água da torneira escorre pacífica para dentro do caneco quando você torce a registro, a água da cachoeira, de pacífica não tem nada. Ela é muito mais escolada, vivida. Água de cachoeira é água experiente, sofrida, é água “batida na pedra”.
— Isso deixa ela muito especial, sabe, tá vendo que o gosto é diferente?
Eu bebo mais um gole e penso: talvez... está geladinha. É uma água gostosa.
— Mas como é isso seu Beraldo? Como é esse negócio de “batida na pedra”.
— É assim, rapaz, eu vou te explicar pra ocê entendê. Pra mó di essa água chegar aqui pra dendessa caneca que ocê tá bebeno, a água num chegô assim tão fácil quinem a água da tornera... Ela sofreu todo tipo de ataque! Ela veio batendo nas pedra do riacho, desde lá de cima, passou por um monte de redemoinho, percorreu muitos quilômetro e terminou se atirando de vários metro até bater com toda força no chão cheio de pedra do rio... é uma água transformada e por isso, ela é especial, precisa sentir o gosto dela que é de água batida na pedra.
— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.
— Aproveita rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa água não, lá é só água de torneira ou de supermercado. Eu vou te dar um galão e você leva um pouco pra sua casa pra tomar.
Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...
Anos depois, a empresa onde trabalho contratou pessoas trans para o quadro de funcionários, foi então que ao conhece-las um pouco melhor, algo da vida delas me fez lembrar do seu Beraldo e da água “batida na pedra”.
Percebi que as pessoas trans são de alguma maneira, como água de cachoeira, que passou por todo tipo de porrada na vida, muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas pela família (dá no mesmo), tiveram várias portas batidas em suas caras, foram agredidas, discriminadas e inclusive covardemente assassinadas. A gente sabe que o psiquismo humano tem muita dificuldade em aceitar as diferenças. A ideia de que alguém possa ser ao mesmo tempo feliz e diferente é o motor da maior parte do preconceito e infelizmente funciona como gatilho para a violência. A gente sabe também que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Só essa informação já é suficiente para que qualquer pessoa trans automaticamente sinta-se ameaçada pelo simples fato de viver em nosso país.
E água é fluido, adapta-se de imediato onde quer que esteja. Água toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Água evapora, pode fugir da força da gravidade, água congela, tornar-se sólida como rocha. Água passa pelos menores buraquinhos, pode ser centrifugada, movimentada, torcida, pode ser batida na pedra com a força que você quiser. É fácil a vida da água...
Mas pessoas de carne e osso não são tão fluidas assim. Pessoas “batidas na pedra” não saem ilesas no final da cachoeira. Essas porradas deixam marcas, cicatrizes, deixam dores e traumas que requerem muito, muita fluidez aquática, muito jogo de cintura e muita vontade de viver para serem superadas. Isso faz com que a pessoa trans alimente uma dificuldade maior em confiar na sociedade, afinal, depois de tanta porrada, convenhamos, não deve ser nada fácil acreditar que aquele novo grupo da qual ela passou a fazer parte realmente não tem intenção de se tornar mais uma pedra em sua vida.
É por isso que os empresários e colaboradores que lidam com pessoas trans devem se conscientizar dessa peculiaridade e agir no sentido de conscientizar o grupo a receber a pessoa trans com uma dose de sensibilidade a mais.
Essa confiança que sentimos ao lidar com o grupo e nos permitir a fazer brincadeiras, muitas vezes, preconceituosas, mesmo que sem intenção, é algo que precisa ser revisado e repensado para o bem de todos e principalmente de nosso desejo em garantir que nossa sociedade de fato acolhe todas as pessoas como iguais de fato.
A pessoa trans não está em busca de diferença, é justamente o contrário. Ela só deseja ser aceita como qualquer outra pessoa.
Porque assim como água continua sendo água mesmo depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans quer chegar do lado de lá, reconhecida e respeitada como a pessoa que ela é.
Nenhum comentário:
Postar um comentário