segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre carneiros e lobos

Vivia em uma floresta uma matilha de lobos já há várias gerações. Viviam tranquilos, cuidavam da prole e passavam horas de ócio nos finais das tardes de verão ou dentro de cavernas no inverno. 

Quando batia a fome, um ou dois saíam em busca de comida que caçavam e traziam para dividir entre toda a matilha. Parecia uma boa vida aquela dos lobos.

Do outro lado do vale, numa fazenda que plantava algodão, vivia um grupo de carneiros. O dono da fazenda produzia fios de algodão e de lã para a fábrica de roupas que ficava na periferia da cidade grande. Da plantação retirava o algodão e dos carneiros, retirava a lã.


Naquele tempo ainda não existiam máquinas colhedeiras, então a colheita era feita pelas pessoas que trabalhavam na fazenda que retiravam os nacos de algodão da planta usando as mãos, que invariavelmente estavam sempre machucadas. O problema é que a cápsula onde o algodão fica preso é áspera e é preciso puxar com as pontas do dedos, o que provoca ferimentos regulares ao redor das unhas. Além disso, o esforço repetitivo ao se colher algodão por horas a fio também provoca dores nos dedos e mãos, e naquela fazendo isso era especialmente comum, já uma vez que as pessoas eram pagas por produtividade, quanto mais eram capazes de juntar algodão, melhor o pagamento, que por sinal era bem pouco. Para dizer a verdade, se porventura alguém não conseguisse fazer a jornada diária de 12 horas, dificilmente conseguia o suficiente para alimentar a família no jantar. Eram vidas sofridas as daquelas pessoas.


Entre aquelas pessoas havia um homem chamado Heinz. 
Heinz, que em alemão vem de Heinrich e que significa "rei" ou no mínimo "o dono do castelo", de rei não tinha nada, mas tinha quatro filhos e sua esposa Helga, que de sua descendência nórdica tinha puxado a força e a garra das mulheres que muitas vezes tornavam-se guerreiras tão ou mais poderosas que muitos homens. Helga cuidava da casa, dos filhos, da pequena plantação e ainda costurava para fora e apesar da ajuda de Heinz com seu trabalho na colheita de algodão, passavam grandes necessidades. 
Fato é que Heinz, que já estava se aproximando de seus 40 anos, não contava mais com a disposição dos mais jovens, o que na Europa do século XV significava o início do fim da vida.

Logo de manhã cedo, quando o sol estava apenas nascendo, Heinz passava em frente ao grande celeiro que ficava ao lado do pasto onde ficavam os carneiros que naquela hora, estavam sendo organizados para a tosquia. Os carneiros eram organizados em fila e então, cada um passava pelo mesmo ritual onde sua lã era cuidadosamente raspada para que pudesse ser enviada para a mesma fábrica de roupas que também comprava o algodão. Heinz via que os carneiros eram bem tratados e alimentados, mas tinham de lidar com aquele período de cerca de seis meses até que a lã voltasse a crescer. Durante o restante do tempo, os carneiros apenas pastavam e confraternizavam.  A chateação de ficar um tempo “pelado”, na realidade nem era tão ruim assim, pois normalmente isso acontecia no final da primavera, o que significava que durante o verão que entrava, os carneiros ficavam mais confortáveis por conta do calor.


Mas durante o restante do tempo, os carneiros brincavam, conversavam com os amigos, apoiavam os que choravam, incentivavam os artistas, reprimiam os arrogantes e condenavam os fascistas. Os carneiros mais novos, cresciam felizes, frequentavam a escola, recebiam aulas de matemática, história e carneirês (a língua dos carneiros daquela região). Também estudavam ciências, investigavam causa e efeito, a força da gravidade a força centrífuga... até filosofia, discutiam o ontem, o hoje e o amanhã, voltavam a discutir causa e consequência, mas dessa vez sob o viés filosófico.  

Mas uma coisa incomodava os carneiros... vez por outra um lobo invadia a fazenda, sequestrava e matava um deles para alimentar sua família na floresta, então os carneiros, apesar da aparente vida tranquila viviam num constante estado de tensão, pois sabiam que a qualquer momento, um deles poderia ser o próximo a virar comida de lobo.

Naquela tarde, Heinz estava tão cansado que antes do final do dia decidiu encerrar seu trabalho e entregar a pequena quantidade de algodão que havia conseguido juntar. Recebeu seu soldo, contou as poucas moedas, colocou-as no bolso das calças surradas e cabisbaixo, tomou o rumo de casa. Ao passar ao lado do pasto dos carneiros, reparou que entre berros e certa agitação, eles haviam se aglomerado em um canto do pasto. Olhou na direção oposta e viu um lobo se aproximando. O lobo agiu de maneira rápida e decidida, correu na direção do bando, que dispersou, mas um deles ficou para trás. O lobo então, saltou sobre seu pescoço e em segundos havia matado o animal que tratou de arrastar em meio aos gritos dos demais.


Quando chegou em casa, mostrou o dinheiro que havia recebido à sua esposa Helga, que não gostou nada, pois o pouco que recebera, mal dava para pagar o jantar das crianças, então nesse momento, tomada de fúria, amaldiçoou seu marido Heinz e o expulsou de casa. Heinz, envergonhado saiu da casa e sentou-se sobre uma pedra no quintal. 

Então Heinz ergueu os olhos para o céu e clamou por uma ajuda de Deus. Nesse momento uma luz intensa brotou de dentro das nuvens que já estavam escurecendo com o final do dia e uma voz profunda ecoou na montanha perguntando a Heinz:

— Se é tão ruim sua vida, tão cheia de revezes e injustiças, meu filho Heinz vejo que não é a vida que você desejou, Sendo assim, posso  então transformar você em um animal para que experimente nova vida. Mas... Só existem duas possibilidades. Em qual delas você prefere te transformar? Um lobo ou um carneiro?

Heinz não pensou duas vezes, fez logo sua escolha e imediatamente o Deus todo poderoso lhe concedeu seu pedido. Então naquela noite, sob a luz do luar, na companhia de seus iguais, com os dentes vermelhos de sangue, Hanz celebrou sua nova forma com seu inocente, porém apetitoso; trágico, mas belo; rápido, porém inesquecível, repugnante, mas delicioso jantar. 






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