Sublime sertão
Estive voando de parapente no sertão do Ceará em 1999. Foi a
última de uma sequência de três anos quase seguidos voando em Quixadá. Naquela
época, as casas não tinham cisternas, os açudes tinham mais água e o mais longo
dos voos dificilmente se aproximava muito dos 200 km. Experimentávamos o sertão
de uma forma muito breve, apenas tangenciando aquele mar de significados. Não havia tempo para imersão, éramos muito jovens, acordávamos tarde,
pousávamos cedo e nos dedicávamos a risadas e cerveja. Era como ver um filme,
ou folhear um álbum de fotografias.
Mas depois de 17 anos, a experiência de voltar a voar no sertão nordestino me surpreendeu
completamente. Constatei o quanto somos pequenos diante da natureza. Veja só,
voar sobre florestas cultivadas, plantações, campos floridos, estradas, ruas e
cidades nos garante uma importante, embora talvez inconsciente conexão com
nossa humanidade. Se o vento arrancar aquelas flores, novas irão nascer ou
serão plantadas, se a chuva estragar a estrada, o departamento de trânsito
poderá consertar cedo ou tarde e se as cidades forem varridas do mapa, novas
cidades serão construídas em seu lugar. Então, diante da segurança de estar tão
pertinho daquilo que nós mesmos somos capazes de construir, podemos nos afastar
da segurança do chão e olhar tudo de lá de cima com um pé ainda fincado em
algum resquício de nossa civilidade, se é que podemos chamar nossa presença na
Terra de verdadeira acepção de civilidade, é claro, mas isso é outro assunto
para outra hora.
Bem, a minha verdade é que essa segurança se desfez no
sertão. Ali, a terra seguiu indiferente a minha presença, implacável em tudo
que ela me impõe. Os dezessete anos que passei longe do sertão não significaram
absolutamente nada para a paisagem que impera perene, sublime e avassaladora
debaixo de mim. As enormes rochas que pontuam um dos mais antigos terrenos da
nossa mãe-Terra não tomam conhecimento de minha presença e não será o vento de
30 ou mais quilômetros por hora que farão alguma diferença para elas. Embora
seres vivos como eu, os intermináveis juremais lá embaixo renovam-se em sua
promessa de eternidade, por mais seca, rígida e impiedosa que a paisagem possa
ser.
Longe da segurança da minha pseudo-civilidade, o sertão lá
embaixo me cobra atenção dedicada, interesse absoluto em minha própria
continuidade. Ele faz isso com total indiferença e sou eu quem tem de lidar com
a assustadoramente surpreendente sensação de solidão que me aterroriza apesar
dos colegas que voam ao meu redor.
Voar no sertão vai muito além daquilo que estamos
acostumados ao fazer nossos simpáticos e divertidos quilômetros sobre estradas
marcadas por pneus. Eu poderia comparar com uma travessia de natação a mar
aberto. Longe das beiradas das piscinas ou das areias das praias civilizadas
com seus salva-vidas com seus apitos e boias.
Adicione a este encontro completamente solitário com você
mesmo, um período indebitamente longo de horas a fio, voando e administrando
suas decisões. Não vejo como terminar uma longa jornada nessa solidão absoluta sem
ter um colega para abraçar ao final. É por isso que encontro no voo do sertão
uma importância inadiável sobre voar em equipe. Aqui, insistindo em dividir as
térmicas com seus amigos, forçando-se a respeitar suas decisões e empreender
pelos seus caminhos, dividimos também uma parcela da enorme responsabilidade
que a solidão dos céus do sertão nos impõe. Ao longo de nove ou dez horas de
voo, posso em alguns momentos relaxar um pouco, pois sei que alguém está
momentaneamente decidindo qual será o próximo passo.
Aprendi várias coisas nestes dias voando em Quixadá e posso
dizer que somos apresentados a nós mesmos de uma maneira tão verdadeira que
chega a ser maldosa. Estamos pendurados no céu, largados, deixados praticamente nus, a milhares de
metros de distância de qualquer superfície ou objeto e a mínima conexão com
algo mais humano que minha selete ou meu variômetro adquire uma preciosidade
inédita. Aprendi a lição dos grandes mestres recordistas do sertão e em
especial Rafael Saladini a quem devo tantos conhecimentos. Aprendi que no sertão
somos literalmente reduzidos a um mero ponto no espaço, incapazes de alterar ou
provocar qualquer influência em tudo que nos rodeia. Somos meros, passageiros,
curtos e pequenos. Nossa pequenice aumenta ironicamente diante da grandiosidade
do sertão, que de tão lindo, e ao mesmo tempo tão assustador, não se importa
conosco nem por uma fração de segundo que seja.
Eu, sozinho com meus pensamentos encontro meu caminho nesse
mar solitário até o almejado encontro com os resultados que tanto desejo.
Aprendi que o voo em equipe é absolutamente essencial, não
apenas pela pura banalidade de voarmos mais longe e batermos nossos recordes,
mas por algo que vai muito, muito além: voamos em equipe para não nos
distanciar de nossa natureza humana, de nossa própria civilidade. Voamos em
equipe porque somos humanos!
A volta para casa é densa e as vezes assustadora. Algumas
coisas perdem o sentido ou parte dele, outras adquirem novos sentidos e diante
da nossa normalidade e banalidade, tento encontrar um lugar para me encaixar. É
uma tarefa difícil, mas essencial, gradual, mas vale a pena.
Pretendo voltar para o sertão, mais consciente do que
encontrarei durante aquelas horas pendurado no céu, menos assustado e mais
preparado para não apenas enfrentar tudo aquilo outra vez...
...mas voltarei ao sertão principalmente... para voltar para
casa.
Sivuca
Nenhum comentário:
Postar um comentário