Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta, então meu avô resolveu fazer um atalho e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos, achou que aquilo valia a pena.
Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Regis Bittencourt que na época era uma estrada de pista simples e mão dupla, onde acidentes graves aconteciam o tempo todo. Então, logo após a cidade, entramos à esquerda na Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe. No caminho há uma pequena serra que se percorre em velocidade relativamente baixa para dar conta das sucessivas curvas mal projetadas. Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada mudança de direção, quando de repente meu avô reduziu a velocidade tomando seu lugar numa enorme fila e o trânsito foi se movendo lentamente. Após alguma espera, um pouco mais à frente, descobrimos o que havia acontecido.
Foi numa daquelas curvas que um acidente espetacular se transformou na notícia da viagem. Um carro, que também era um Fusca, cujo motorista foi provavelmente incapaz de cumprir o raio da curva, avançou para a contramão, colidindo de frente com outro veículo que vinha no sentido inverso, numa colisão frontal que tirou as vidas de seus ocupantes.
Passamos lentamente observando o caos à direita da estrada e então o avô Chico parou no acostamento uns 30 metros para frente. Parar para olhar o acidente é prática comum até hoje entre os brasileiros e demais povos que possuem esse mórbido interesse em observar a desgraça alheia de perto. Talvez seja pelo simples desejo de acumular assunto para uma conversa informal com parentes e amigos, ou para de fato, se certificar de que aquilo não aconteceu consigo mesmo.
Meu avô saiu do carro e eu me ajoelhei no banco traseiro para observá-lo se afastando em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça, onde deteve-se por um tempo, observando mais atentamente enquanto curioso, inclinava o corpo para dentro do carro fumegante.
Um minuto depois, meu avô retornou lentamente até com os dedos, tamborilar o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse:
— Vem cá, Sivuquinha o vovô vai te mostrar uma coisa.
Em minha obediência à autoridade do avô, saí do carro assim que minha avó levantou o encosto do banco. Saltei para a aspereza do asfalto e o acompanhei até o local do acidente. Havia fumaça na frente de um dos carros, as pessoas e policiais aglomeravam-se ao redor do evento enquanto o teto amassado do Fusca me chamava a atenção, parecia que estava tentando saltar por cima do restante do carro.
Aproximei-me um pouco mais e aquela cena inesquecível foi se materializando à minha frente. Eram incontáveis os cacos de vidro espalhados pelo chão, a lata azul deformada, uma roda torcida com violência para a direita, lembrava um braço quebrado, que se dobra tragicamente para o lado impossível. No chão, um quepe daqueles que usam os carteiros e um tamanco, daqueles de madeira, que estavam na moda da época, em plenos anos 70, mas não havia ninguém por perto. Provavelmente uma vítima que havia sido levada para o hospital pela ambulância dos vigilantes rodoviários.
Foi então, que no calor da tarde, diante de meus olhos de menino, surgiu imóvel entre as latas retorcidas do Fusca, o que certamente se parecia com uma pessoa dormindo. Mas aquilo não era sono, lá estava meu primeiro cadáver de verdade. Era com certeza o motorista. Um pouco oculto atrás da porta semiaberta, descansava um senhor de poucos cabelos brancos, uns bigodes enrolados bem grandes que cobriam o lábio superior e um bocado de sua boca escancarada, seus olhos arregalados, num olhar estático e perdido, mirando o horizonte por cima de meu ombro, sem sinal de vida. Era um olhar triste, como que suplicando por alguma coisa. Estava sentado ao volante, que apertava seu peito e pintava de sangue espirrado, tudo ao redor. Seu braço esquerdo, pendurado para o lado, inerte e vestido com uma blusa cinza, de lã fina, descansava. As pernas enigmáticas, mergulhavam na escuridão debaixo do painel.
Fiquei ali observando a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.
Os olhos esbugalhados do homem morto se fecharam numa surpreendente piscada, apertando as pálpebras contra si mesmas e então aquele par de olhos perdidos no horizonte, voltou-se para meu rosto, focando diretamente em meus olhos. Era um olhar fixo e reto, colado em meu olhar. Foi quando a boca se fechou por um instante...
— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?
Recuei um passo para trás, mas o fascínio de me terem feito uma pergunta direta, me atraiu para a posição anterior.
— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...
— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?
— Silvio...
— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a merda que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma cagada dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.
— Mas o caminhão...
— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, caralho! Eu estava correndo muito e essa merda de Fusca não fez a curva, eu passei reto, não deu nem tempo.
— Não teve como desviar?
— Quando eu vi já era...
— Não tem mais jeito?
— E mesmo que tivesse? Olha o que deu, minha mulher morreu, eu amava ela, e ela nem viu nada, estava dormindo, a essa altura ela já tá em algum lugar no céu ou seilá onde, tentando entender como ela foi parar lá, tentando entender o que aconteceu. Levaram ela no rabecão e foi culpa minha.
— Mas você está aqui falando comigo...
— Isso não me serve de nada, daqui a pouco vão me levar também, olha aquele carro preto lá do outro lado da estrada, vão me levar pro necrotério e eu vou cagar a vida da minha família inteira, vai ser a maior choradeira. Minha mulher era avó, igual a sua, nossos netos vão chorar, meus filhos vão chorar, meus amigos do futebol de botão vão chorar, vai ser uma bosta.
— Nossa, que ruim isso...
— Isso é uma merda e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que pensa que sim, pensa que é indestrutível, pensa que é o mais esperto do mundo e que os outros são tudo uns trouxas, mas tá redondamente enganado, não é nada disso, se errar por um segundo a mais, tá fodido. Então se liga Silvio, sua família te chama de Sivuca, né?
— É sim...
— Então Sivuca, não vai você fazer uma cagada dessas. Aprende a dirigir o carro direito e presta atenção na curva, diminui a velocidade antes de ela chegar. E quando inventarem um tal telefone que dá pra levar para todo lado, não vai ficar brincando com aquela bosta enquanto dirige, você vai fazer isso, Sivuquinha?
— Tá bom...
— Tá bom o que, moleque? Você vai fazer o que eu te falei? Vai prestar atenção pra não fazer essa merda? Me responde, moleque!!
— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!
Nesse instante, uma mão me tocou no ombro e soltei um grito. Olhei para trás, era meu avô que me puxava pelo braço de volta para o carro para seguirmos viagem.
— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando no carro.
Foi com meu avô, mas virei o corpo para dar uma última olhada no meu homem morto. Ele continuava lá, dentro do carro destruído e seu olhar continuava como antes, perdido no horizonte, desligado deste mundo. Talvez um olhar um pouco menos desesperado, um pouco menos triste, como quem parece que pelo menos uma vez na vida, fez algo de útil.
Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.
Silvio Ambrosini