sexta-feira, 14 de junho de 2024

Arrogância do bem também faz mal


Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita principalmente de alunos, vários colegas de empresa que ocupavam cargos inferiores ao meu, além de amigos e parentes com quem muitas vezes terminei adotando um posicionamento paternal em algum grau de intensidade. 

Em todas essas ocasiões, o arsenal teórico e prático de conhecimento que eu detinha sobre os assuntos pertinentes às circunstâncias nas quais eu estava me relacionando com aquelas pessoas, funcionou como uma referência, um elemento validador de minha dita autoridade perante elas. Aquilo que eu sabia, que minha experiência ou estudo tinha me ensinado, ratificava e dava suporte à minha retórica e isso consequente e invariavelmente funcionava como um gerador de segurança e confiança onde eu me apoiava para agir diante daquelas pessoas. 

As intenções eram as melhores: ajudar, orientar, treinar, corrigir, preparar, enfim criar um caminho para que o aprendizado, ou melhor dizendo, a funcionalidade daquelas pessoas pudesse ser atingida com menos percalços e maiores garantias de sucesso. 

Essa trajetória se mostrou eficaz, em minhas outras atividades como professor, empresário, instrutor, orientador ou simples conselheiro, obtive reconhecimento, respeito e gratidão.

Quando minha vida é brindada com o projeto da psicanálise, adianto-me a tentar construir um arsenal de conhecimento semelhante, seja pela carga teórica proporcionada nos estudos, nas orientações técnicas obtidas nos grupos de estudo e de supervisão e é claro, pela experiência obtida no atendimento supervisionado.

Então algo acontece: diante do analisante, percebi que aquele elemento validador de autoridade que me proporciona aquela confortável segurança dos tempos outros pode se tornar um sério problema, que não só pode prejudicar o exercício do papel do analista, como arruiná-lo completamente.

Estou aprendendo que na metáfora de despir-se de si mesmo à porta do consultório, revela-se condição essencial para garantir que meus desejos e memórias fiquem do lado de fora da sessão. Há um texto de Lou Andreas-Salomé que diz "Ao conduzir uma análise, é preciso lançar um facho de intensa escuridão de forma que algo que até então estivesse obscurecido pelo brilho da iluminação possa cintilar ainda mais na escuridão". Esse fragmento sintetiza uma ideia da importância de criar um espaço receptivo, uma "continente" capaz de receber o "conteúdo" das fragilidades do inconsciente do analisante.

O recorte trazido por uma professora de ioga, de alguma forma ilustra a ideia. Ela escuta a campainha e pelo interfone vem uma voz distorcida dizendo algo sobre “ver a luz”. “Pronto, tenho um novo aluno”, pensa ela… “não dona, eu sou da Enel”...

É, é bem difícil não carregar nossa história para dentro do consultório, seguimos tentando.



Silvio Ambrosini

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Protestar é viver - Posfácio não publicado do livro Ventomania

Naquele dia fui até a janela do quarto com minha filha Sol, munido de um par de panelas e colheres de pau. Foi dia de panelaço. Juntos, batemos aquelas panelas, gritamos e rimos muito, por um bom tempo enquanto revezávamos o samba com os vizinhos que se manifestavam em peso. Depois, levei-a para a cama e contei uma história. Então ela me perguntou por que afinal tínhamos batido as panelas. Eu expliquei que fazer barulho daquele jeito é uma maneira de lembrar às pessoas que nós também existimos, que não somos apenas sombras numa janela, que somos gente como qualquer outra gente, que somos uma família, que se ama e tem o direito de ser feliz.

Elis Regina disse que "há perigo na esquina", então é preciso estar atento e quando percebermos que nossos direitos estão sendo atacados, devemos abrir a boca, bater panelas e protestar contra os perigos enquanto podemos.

É porque protestar é viver, é mostrar a cara, é contar para as pessoas que eu e você também existimos, é lembrar a nós mesmos, que estamos vivos, que não somos menos do que ninguém.

Ela sorri, diz que ama, diz boa noite, dou-lhe um longo beijo e a cubro com os lençóis. 

A cumplicidade dela é peculiar, a relação com minha filha vai além de pai e filha. Não sou nada autoritário, o que às vezes termina me fazendo parecer que temos a mesma idade. Então juntos, nos divertimos e aprontamos travessuras. Ela parece ter um pedacinho de meu irmão morto, agora vivo, aqui perto de mim, um pouco como reencarnação, se eu acreditasse nisso, apesar de achar a ideia eletrizante.

Uma vez li um texto interessante (e viajante) que, por trás de nossa aparência física, existe uma espécie de corpo inorgânico. Essa deliciosa teoria conta que esse ser inorgânico é algo como um “casulo luminoso”. O casulo é a essência daquilo que somos feitos, algumas pessoas podem chamar isso de “alma”. Esse tal casulo é, ou ao menos deveria ser, perfeito. Mas então, quando nos tornamos pais, involuntariamente cedemos um pedaço do casulo para ajudar na construção de nossos filhos. No lugar de onde saiu o pedaço, fica um buraco, e por esse buraco, passa um fluxo infinito de amor incondicional. Esse fluxo nos conecta, como que por fios, com nossos filhos. Parte desses fios poderão um dia se romper, mas o buraco permanece e apesar de poder ser disfarçado ou chegar perto de ser reparado, nunca mais desaparecerá. Essa conexão permanece ali para sempre, porque somos pais e para sempre, amaremos nossos filhos, independentemente de que caminhos eles sigam.

Escrevi esse texto para que fosse o posfácio de meu livro Ventomania, uma vida voando de parapente, mas era tarde demais, o prelo já rodava e a gráfica acelerava. O posfácio ficou, mas aqui está ele para a próxima edição, quem sabe talvez até lá, não será preciso protestar...

O livro "Ventomania, uma vida voando de parapente" pode ser adquirido aqui.


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Vida de gente, vida de cão

 

Chorei hoje igual bebê,
como há muito não fazia.
Jogado no sofá,
abraçado na almofada,
abri um berreiro daqueles raros,
verdadeira agonia

Não era isso que eu queria,
preferia de outro jeito,
um jeito que tivesse jeito.
Mas como jeito não havia,
a gente logo dá um jeito,
porque não tem nada mais mal feito
que bicho em agonia.

Bicho é feito de alegria,
veio aqui pra passar bem,
E se bicho sofre, meu amigo,
arruma logo um jeito certo,
de provar para teu bicho,
que você é o cara certo
feito de amor, cuidado e respeito
que ele pode confiar
porque você é do bicho,
seu melhor amigo.

Ser humano é uma coisa doida né?
Vem pra Terra pra aprender a ser gente,
levar porrada, perder uns dentes
ralar muito e quem sabe um dia,
chegar ao fim da vida,
olhar pra trás e pensar sobre a vida,
poder falar que valeu a pena,
vida que não foi pequena,
vida que foi bem vivida.
Não foi vida vivida para o outro, 
mas, interessante e plena vida, 
dessas que dá gosto de viver
de poder dizer, essa foi minha vida,
e saber que viveu bem,
cada dia dessa vida
até o dia de morrer.


Vejo a gotinha tão branquinha
que passava pelo tubo
como bilhete só de ida
pra quem já viu de tudo.
A lágrima da doutora
atrapalha pra achar a veia,
como quem não quer fazer
o que a profissão permeia.

E dormiu um sono pesado,
e com as mãos senti seu corpo
passeei por seus densos pelos,
e vi o medo acelerar seu coração
um pouco de pavor talvez
tentando resistir
batendo pela última vez.

E falamos da vida,
das coisas boas,
dessas que fazem a gente
sentir gosto pela vida,
dessas que fazem a gente
querer se apegar mais,
ao que nos resta dessa vida.

É porque vida é sempre o que te resta,
o que ainda falta pra viver,
porque vida passada só serve pra uma coisa
te ajudar a melhor viver melhor,
essa vida por viver.

E tremeu a orelha dele um pouco,
Doutora! Ele tá vivo!
Não, meu amigo, você não tá louco,
é só uma contração, um último adeus,
pra lembrar que nessa vida de cachorro
é bom você saber,
é preciso ter um dono,
alguém que te respeite
e que cuide de você
até na hora mais difícil,
até na hora de morrer.


Hoje meu bichinho, meu cachorrão, meu lindo, meu Ozzy fechou os olhos tranquilos depois de um monte de carinho. 
O Ozzy era um pastor alemão, viveu quase 12 anos. Foi adestrado quando pequeno aprendeu a tomar conta da casa. Quase todos os dias trazia presentes que encontrava pelo jardim. Tomava conta da casa como ninguém. Minha filha Sol passou a vida com ele, deixou muita saudade.

Muito obrigado a dra Bia da Clínica Veterinária e Pet Shop Dra Bia, aqui na Vila Mascote pelo carinho e pelo profissionalismo. +55 11 94202-5804

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI uma última vez. Percorri o corredor antisséptico iluminado com um branco intenso e virei a direita para encontrar com meu pai. Lá estava ele, deitado, imóvel, com a boca ligeiramente aberta e a cabeça um pouco inclinada para trás. Em sua flagrante impermanência, fiz um esforço para tentar enxergar alguma beleza por trás daqueles tubos e daquela expressão vazia. 


Era meu velho pai, um homem cuja vida chegara ao fim. Então me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta, não sei se porque eu preferia assim, diante da gravidade de seu quadro, ou porque ele já estava imerso em uma letargia guiada por remédios contra as dores que sentia. Ele ofegava ligeiro, numa dificultosa respiração. Olhei para seu rosto e reparei que as rugas da testa estavam relaxadas. Isso me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa, daqueles capazes de arrumar briga no trânsito de rolar pela calçada agarrado com quem fosse que o houvesse fechado, enquanto pelos vidros do carro, a família assistia apavorada a grotesca briga gratuita e completamente aleatória. Ora, mas afinal alguém o havia fechado e esse era o pretexto que ele normalmente apresentava como justificativa para um estranho tipo de busca por violência, dessas que se manifestam tão rapidamente quanto são capazes de desaparecer. E de fato, poucos minutos depois, desaparecia como se algum tipo de êxtase tivesse sido alcançado enquanto suspirávamos de alívio por poder ter nosso pai de volta, inteiro, ao menos aparentemente.

Afeto, dedicação e generosidade eram os principais ingredientes que meu pai utilizava para tratar aqueles que pertenciam ao lado de dentro do perímetro imaginário que constituía uma espécie de condomínio, feito para proteger as pessoas que ele amava. Mas as regras eram claras, era ele quem mandava e os eventuais desmandos recebiam a devida punição. Do lado de fora daquelas paredes imaginárias, ele alegava um mundo ingrato, que aparecia para conspirar contra ele e contra os seus.

A hierarquia clássica da sociedade neoliberal machista regia a estrutura familiar, o que significava que mesmo se ele tivesse chegado à questionável conclusão de que o mundo profissional não era mais digno de sua participação ativa, continuava demandando como se ele fosse o modelo de homem atormentado pelo trabalho braçal, que chega em casa cansado na noitinha e não quer nada mais que seus chinelos, o jornal, um café recém coado e a seu programa favorito na TV.


Mas meu pai às vezes ia para a cozinha e cuidava de preparar algo. Às vezes um “bauru”, em outras produzia montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente preparava a massa recortando-a e recheando-a com pedacinhos de queijo fresco que regava com um pouquinho de orégano. Se alguma visita havia sido convidada e se espantava com os deliciosos pastéis que ele fazia, ele dava um sorriso orgulhoso e respondia: Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio... E com esses chistes, deixava a imaginação da gente à solta, viajando na ideia de como seria a vida de um cozinheiro num grande cargueiro que navegava os oceanos com todo aquele monte de gente... e você responsável por uma cozinha tão imensa que quase não dá para ver a parede do outro lado. 

Eu imaginava como teria sido que alguém solto no mundo, perdido pelos 7 mares, cada vez passando por um porto diferente que nunca havia visitado antes, teria repentinamente largado a vida de homem do mar, da maresia, do sal grudado nos cabelos, do sol impiedoso que queima a pele da nuca, para a monotonia de um lar de classe média paulista, administrando um negócio de recuperação de resíduos de fábricas de torneiras e sifões.

Se ele de fato havia um dia trabalhado no navio, ou apenas contava essas estórias para inconscientemente, manifestar onde ele de fato gostaria de estar e o que gostaria de fazer, não vinha ao caso. O interessante é que naquelas estórias do “tempo do navio”, estavam contadas verdades que só viviam em seu mais profundo ser. Histórias de um tempo fictício, de um desejo distante que ele nunca deixava de revelar, e sem notar, escancarava uma vida vivida de maneira tão disfarçada quanto explícita.

Alguns dias antes de ele piorar e terminar naquela enfermaria de UTI, eu o conduzi de cadeira de rodas até meu carro. Enquanto empurrava a cadeira pela calçada, disse para ele que o amava. Aproveitei para dizer que também que o perdoava, e completei que não iria explicar os motivos de eu o estava perdoando, porque ele sabia muito bem. Talvez ele tentasse se justificar de alguma maneira. Talvez ele tivesse até a razão mas meu coração precisava perdoá-lo e foi isso que eu fiz. Para mim foi um alívio muito grande, eu já havia passado dos 50 anos e havia carregado dentro do meu coração, um peso que naquela hora, o larguei em algum ponto entre a sarjeta e a calçada. Provavelmente a próxima chuva o arrastou peso para dentro do bueiro e de lá para as águas do oceano onde dissolveu-se para sempre. Ele então me olhou nos olhos e falou como há muito não fazia: 

— Tenho medo de cair.

Fiquei surpreso e orgulhoso pois era a primeira vez em toda a minha vida que meu pai manifestava na minha presença, sentir medo de alguma coisa. Para mim isso era uma conquista porque quebrava o paradigma da imagem indestrutível, que tanto ele havia se esforçado para manter inabalável ao longo de sua vida.

Dentro do carro ajudei-o a colocar o cinto de segurança, peguei a avenida principal, abri todos os vidros naquela tarde de calor e liguei o som com a música “Sapore di sale”. Agarrei a mão de meu pai pela primeira vez depois de muito tempo e fomos curtindo a música, a brisa da tarde e o calor do sol em nossos rostos.

Finalmente, e pela última vez, segurando sua mão naquela cama de UTI, eu disse a ele:

— Pai, um ônibus vai vir te buscar. Quando ele chegar você pode descer da cama e entrar, ele vai te levar embora desse hospital. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, na beira do mar e lá no final da linha, vai estar o Fernandinho te esperando junto com a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina. Acho que seu pai, o vô Nin também vai estar lá. Vá com eles, vai tranquilo, que eu fico com a mamãe por aqui. Vamos ficar bem... Aí depois a gente se fala. Faça uma boa viagem e obrigado por ter sido meu pai.


Olhei para aquele rosto com suas imperfeições e senti que ao menos por um momento, eu havia conseguido encontrar uma forma de beleza traduzida na transitoriedade daquela vida que se transformava em uma simplicidade inigualável, um retorno ao inanimado, um estado fundamental, tão simples, algo rústico, porém magnificamente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eu consegui fazer pastéis tão gostosos eu respondo: Eu aprendi a fazer há muito tempo atrás, quando eu trabalhava no navio. 


segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre carneiros e lobos

Vivia em uma floresta uma matilha de lobos já há várias gerações. Viviam tranquilos, cuidavam da prole e passavam horas de ócio nos finais das tardes de verão ou dentro de cavernas no inverno. 

Quando batia a fome, um ou dois saíam em busca de comida que caçavam e traziam para dividir entre toda a matilha. Parecia uma boa vida aquela dos lobos.

Do outro lado do vale, numa fazenda que plantava algodão, vivia um grupo de carneiros. O dono da fazenda produzia fios de algodão e de lã para a fábrica de roupas que ficava na periferia da cidade grande. Da plantação retirava o algodão e dos carneiros, retirava a lã.


Naquele tempo ainda não existiam máquinas colhedeiras, então a colheita era feita pelas pessoas que trabalhavam na fazenda que retiravam os nacos de algodão da planta usando as mãos, que invariavelmente estavam sempre machucadas. O problema é que a cápsula onde o algodão fica preso é áspera e é preciso puxar com as pontas do dedos, o que provoca ferimentos regulares ao redor das unhas. Além disso, o esforço repetitivo ao se colher algodão por horas a fio também provoca dores nos dedos e mãos, e naquela fazendo isso era especialmente comum, já uma vez que as pessoas eram pagas por produtividade, quanto mais eram capazes de juntar algodão, melhor o pagamento, que por sinal era bem pouco. Para dizer a verdade, se porventura alguém não conseguisse fazer a jornada diária de 12 horas, dificilmente conseguia o suficiente para alimentar a família no jantar. Eram vidas sofridas as daquelas pessoas.


Entre aquelas pessoas havia um homem chamado Heinz. 
Heinz, que em alemão vem de Heinrich e que significa "rei" ou no mínimo "o dono do castelo", de rei não tinha nada, mas tinha quatro filhos e sua esposa Helga, que de sua descendência nórdica tinha puxado a força e a garra das mulheres que muitas vezes tornavam-se guerreiras tão ou mais poderosas que muitos homens. Helga cuidava da casa, dos filhos, da pequena plantação e ainda costurava para fora e apesar da ajuda de Heinz com seu trabalho na colheita de algodão, passavam grandes necessidades. 
Fato é que Heinz, que já estava se aproximando de seus 40 anos, não contava mais com a disposição dos mais jovens, o que na Europa do século XV significava o início do fim da vida.

Logo de manhã cedo, quando o sol estava apenas nascendo, Heinz passava em frente ao grande celeiro que ficava ao lado do pasto onde ficavam os carneiros que naquela hora, estavam sendo organizados para a tosquia. Os carneiros eram organizados em fila e então, cada um passava pelo mesmo ritual onde sua lã era cuidadosamente raspada para que pudesse ser enviada para a mesma fábrica de roupas que também comprava o algodão. Heinz via que os carneiros eram bem tratados e alimentados, mas tinham de lidar com aquele período de cerca de seis meses até que a lã voltasse a crescer. Durante o restante do tempo, os carneiros apenas pastavam e confraternizavam.  A chateação de ficar um tempo “pelado”, na realidade nem era tão ruim assim, pois normalmente isso acontecia no final da primavera, o que significava que durante o verão que entrava, os carneiros ficavam mais confortáveis por conta do calor.


Mas durante o restante do tempo, os carneiros brincavam, conversavam com os amigos, apoiavam os que choravam, incentivavam os artistas, reprimiam os arrogantes e condenavam os fascistas. Os carneiros mais novos, cresciam felizes, frequentavam a escola, recebiam aulas de matemática, história e carneirês (a língua dos carneiros daquela região). Também estudavam ciências, investigavam causa e efeito, a força da gravidade a força centrífuga... até filosofia, discutiam o ontem, o hoje e o amanhã, voltavam a discutir causa e consequência, mas dessa vez sob o viés filosófico.  

Mas uma coisa incomodava os carneiros... vez por outra um lobo invadia a fazenda, sequestrava e matava um deles para alimentar sua família na floresta, então os carneiros, apesar da aparente vida tranquila viviam num constante estado de tensão, pois sabiam que a qualquer momento, um deles poderia ser o próximo a virar comida de lobo.

Naquela tarde, Heinz estava tão cansado que antes do final do dia decidiu encerrar seu trabalho e entregar a pequena quantidade de algodão que havia conseguido juntar. Recebeu seu soldo, contou as poucas moedas, colocou-as no bolso das calças surradas e cabisbaixo, tomou o rumo de casa. Ao passar ao lado do pasto dos carneiros, reparou que entre berros e certa agitação, eles haviam se aglomerado em um canto do pasto. Olhou na direção oposta e viu um lobo se aproximando. O lobo agiu de maneira rápida e decidida, correu na direção do bando, que dispersou, mas um deles ficou para trás. O lobo então, saltou sobre seu pescoço e em segundos havia matado o animal que tratou de arrastar em meio aos gritos dos demais.


Quando chegou em casa, mostrou o dinheiro que havia recebido à sua esposa Helga, que não gostou nada, pois o pouco que recebera, mal dava para pagar o jantar das crianças, então nesse momento, tomada de fúria, amaldiçoou seu marido Heinz e o expulsou de casa. Heinz, envergonhado saiu da casa e sentou-se sobre uma pedra no quintal. 

Então Heinz ergueu os olhos para o céu e clamou por uma ajuda de Deus. Nesse momento uma luz intensa brotou de dentro das nuvens que já estavam escurecendo com o final do dia e uma voz profunda ecoou na montanha perguntando a Heinz:

— Se é tão ruim sua vida, tão cheia de revezes e injustiças, meu filho Heinz vejo que não é a vida que você desejou, Sendo assim, posso  então transformar você em um animal para que experimente nova vida. Mas... Só existem duas possibilidades. Em qual delas você prefere te transformar? Um lobo ou um carneiro?

Heinz não pensou duas vezes, fez logo sua escolha e imediatamente o Deus todo poderoso lhe concedeu seu pedido. Então naquela noite, sob a luz do luar, na companhia de seus iguais, com os dentes vermelhos de sangue, Hanz celebrou sua nova forma com seu inocente, porém apetitoso; trágico, mas belo; rápido, porém inesquecível, repugnante, mas delicioso jantar. 






sexta-feira, 24 de março de 2023

Água batida na pedra


Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha muito simples, um senhor chamado Seu Beraldo. 

Com seus dedos calejados, seu Beraldo verte água de um jarro de barro em uma surrada caneca de alumínio e me oferece para beber enquanto diz:

— Essa água não é água de torneira não viu? Essa é água da cachoeira, ela vem “batida na pedra!

Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.

Curioso, inclino a caneca contra meus lábios enquanto observo os pequenos olhos de seu Beraldo por cima do alumínio enquanto bebo da frescura que o gélido líquido me oferece.

— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?

Ele ri e explica que é diferente sim, porque se a água da torneira escorre pacífica para dentro do caneco quando você torce a registro, a água da cachoeira, de pacífica não tem nada. Ela é muito mais escolada, vivida. Água de cachoeira é água experiente, sofrida, é água “batida na pedra”.

— Isso deixa ela muito especial, sabe, tá vendo que o gosto é diferente?

Eu bebo mais um gole e penso: talvez... está geladinha. É uma água gostosa.

— Mas como é isso seu Beraldo? Como é esse negócio de “batida na pedra”.

— É assim, rapaz, eu vou te explicar pra ocê entendê. Pra mó di essa água chegar aqui pra dendessa caneca que ocê tá bebeno, a água num chegô assim tão fácil quinem a água da tornera... Ela sofreu todo tipo de ataque! Ela veio batendo nas pedra do riacho, desde lá de cima, passou por um monte de redemoinho, percorreu muitos quilômetro e terminou se atirando de vários metro até bater com toda força no chão cheio de pedra do rio... é uma água transformada e por isso, ela é especial, precisa sentir o gosto dela que é de água batida na pedra.

— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.

— Aproveita rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa água não, lá é só água de torneira ou de supermercado. Eu vou te dar um galão e você leva um pouco pra sua casa pra tomar.

Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...

Anos depois, a empresa onde trabalho contratou pessoas trans para o quadro de funcionários, foi então que ao conhece-las um pouco melhor, algo da vida delas me fez lembrar do seu Beraldo e da água “batida na pedra”. 

Percebi que as pessoas trans são de alguma maneira, como água de cachoeira, que passou por todo tipo de porrada na vida, muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas pela família (dá no mesmo), tiveram várias portas batidas em suas caras, foram agredidas, discriminadas e inclusive covardemente assassinadas. A gente sabe que o psiquismo humano tem muita dificuldade em aceitar as diferenças. A ideia de que alguém possa ser ao mesmo tempo feliz e diferente é o motor da maior parte do preconceito e infelizmente funciona como gatilho para a violência. A gente sabe também que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Só essa informação já é suficiente para que qualquer pessoa trans automaticamente sinta-se ameaçada pelo simples fato de viver em nosso país.


E água é fluido, adapta-se de imediato onde quer que esteja. Água toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Água evapora, pode fugir da força da gravidade, água congela, tornar-se sólida como rocha. Água passa pelos menores buraquinhos, pode ser centrifugada, movimentada, torcida, pode ser batida na pedra com a força que você quiser. É fácil a vida da água...

Mas pessoas de carne e osso não são tão fluidas assim. Pessoas “batidas na pedra” não saem ilesas no final da cachoeira. Essas porradas deixam marcas, cicatrizes, deixam dores e traumas que requerem muito, muita fluidez aquática, muito jogo de cintura e muita vontade de viver para serem superadas. Isso faz com que a pessoa trans alimente uma dificuldade maior em confiar na sociedade, afinal, depois de tanta porrada, convenhamos, não deve ser nada fácil acreditar que aquele novo grupo da qual ela passou a fazer parte realmente não tem intenção de se tornar mais uma pedra em sua vida.

É por isso que os empresários e colaboradores que lidam com pessoas trans devem se conscientizar dessa peculiaridade e agir no sentido de conscientizar o grupo a receber a pessoa trans com uma dose de sensibilidade a mais. 

Essa confiança que sentimos ao lidar com o grupo e nos permitir a fazer brincadeiras, muitas vezes, preconceituosas, mesmo que sem intenção, é algo que precisa ser revisado e repensado para o bem de todos e principalmente de nosso desejo em garantir que nossa sociedade de fato acolhe todas as pessoas como iguais de fato.

A pessoa trans não está em busca de diferença, é justamente o contrário. Ela só deseja ser aceita como qualquer outra pessoa.

Porque assim como água continua sendo água mesmo depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans quer chegar do lado de lá, reconhecida e respeitada como a pessoa que ela é.




sábado, 24 de dezembro de 2022

Meu primeiro cadáver

Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta, então meu avô resolveu fazer um atalho e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos, achou que aquilo valia a pena. 


Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Regis Bittencourt que na época era uma estrada de pista simples e mão dupla, onde acidentes graves aconteciam o tempo todo. Então, logo após a cidade, entramos à esquerda na Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe. No caminho há uma pequena serra que se percorre em velocidade relativamente baixa para dar conta das sucessivas curvas mal projetadas. Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada mudança de direção, quando de repente meu avô reduziu a velocidade tomando seu lugar numa enorme fila e o trânsito foi se movendo lentamente. Após alguma espera, um pouco mais à frente, descobrimos o que havia acontecido. 

Foi numa daquelas curvas que um acidente espetacular se transformou na notícia da viagem. Um carro, que também era um Fusca, cujo motorista foi provavelmente incapaz de cumprir o raio da curva, avançou para a contramão, colidindo de frente com outro veículo que vinha no sentido inverso, numa colisão frontal que tirou as vidas de seus ocupantes. 

Passamos lentamente observando o caos à direita da estrada e então o avô Chico parou no acostamento uns 30 metros para frente. Parar para olhar o acidente é prática comum até hoje entre os brasileiros e demais povos que possuem esse mórbido interesse em observar a desgraça alheia de perto. Talvez seja pelo simples desejo de acumular assunto para uma conversa informal com parentes e amigos, ou para de fato, se certificar de que aquilo não aconteceu consigo mesmo. 

Meu avô saiu do carro e eu me ajoelhei no banco traseiro para observá-lo se afastando em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça, onde deteve-se por um tempo, observando mais atentamente enquanto curioso, inclinava o corpo para dentro do carro fumegante. 

Um minuto depois, meu avô retornou lentamente até com os dedos, tamborilar o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse: 

— Vem cá, Sivuquinha o vovô vai te mostrar uma coisa.

Em minha obediência à autoridade do avô, saí do carro assim que minha avó levantou o encosto do banco. Saltei para a aspereza do asfalto e o acompanhei até o local do acidente. Havia fumaça na frente de um dos carros, as pessoas e policiais aglomeravam-se ao redor do evento enquanto o teto amassado do Fusca me chamava a atenção, parecia que estava tentando saltar por cima do restante do carro. 

Aproximei-me um pouco mais e aquela cena inesquecível foi se materializando à minha frente. Eram incontáveis os cacos de vidro espalhados pelo chão, a lata azul deformada, uma roda torcida com violência para a direita, lembrava um braço quebrado, que se dobra tragicamente para o lado impossível. No chão, um quepe daqueles que usam os carteiros e um tamanco, daqueles de madeira, que estavam na moda da época, em plenos anos 70, mas não havia ninguém por perto. Provavelmente uma vítima que havia sido levada para o hospital pela ambulância dos vigilantes rodoviários.

Foi então, que no calor da tarde, diante de meus olhos de menino, surgiu imóvel entre as latas retorcidas do Fusca, o que certamente se parecia com uma pessoa dormindo. Mas aquilo não era sono, lá estava meu primeiro cadáver de verdade. Era com certeza o motorista. Um pouco oculto atrás da porta semiaberta, descansava um senhor de poucos cabelos brancos, uns bigodes enrolados bem grandes que cobriam o lábio superior e um bocado de sua boca escancarada, seus olhos arregalados, num olhar estático e perdido, mirando o horizonte por cima de meu ombro, sem sinal de vida. Era um olhar triste, como que suplicando por alguma coisa. Estava sentado ao volante, que apertava seu peito e pintava de sangue espirrado, tudo ao redor. Seu braço esquerdo, pendurado para o lado, inerte e vestido com uma blusa cinza, de lã fina, descansava. As pernas enigmáticas, mergulhavam na escuridão debaixo do painel. 

Fiquei ali observando a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.

Os olhos esbugalhados do homem morto se fecharam numa surpreendente piscada, apertando as pálpebras contra si mesmas e então aquele par de olhos perdidos no horizonte, voltou-se para meu rosto, focando diretamente em meus olhos. Era um olhar fixo e reto, colado em meu olhar. Foi quando a boca se fechou por um instante...

— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?

Recuei um passo para trás, mas o fascínio de me terem feito uma pergunta direta, me atraiu para a posição anterior.

— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...

— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?

— Silvio...

— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a merda que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma cagada dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.

— Mas o caminhão...

— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, caralho! Eu estava correndo muito e essa merda de Fusca não fez a curva, eu passei reto, não deu nem tempo.

— Não teve como desviar?

— Quando eu vi já era...

— Não tem mais jeito?

— E mesmo que tivesse? Olha o que deu, minha mulher morreu, eu amava ela, e ela nem viu nada, estava dormindo, a essa altura ela já tá em algum lugar no céu ou seilá onde, tentando entender como ela foi parar lá, tentando entender o que aconteceu. Levaram ela no rabecão e foi culpa minha.

— Mas você está aqui falando comigo...

— Isso não me serve de nada, daqui a pouco vão me levar também, olha aquele carro preto lá do outro lado da estrada, vão me levar pro necrotério e eu vou cagar a vida da minha família inteira, vai ser a maior choradeira. Minha mulher era avó, igual a sua, nossos netos vão chorar, meus filhos vão chorar, meus amigos do futebol de botão vão chorar, vai ser uma bosta.

— Nossa, que ruim isso...

— Isso é uma merda e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que pensa que sim, pensa que é indestrutível, pensa que é o mais esperto do mundo e que os outros são tudo uns trouxas, mas tá redondamente enganado, não é nada disso, se errar por um segundo a mais, tá fodido. Então se liga Silvio, sua família te chama de Sivuca, né?

— É sim...

— Então Sivuca, não vai você fazer uma cagada dessas. Aprende a dirigir o carro direito e presta atenção na curva, diminui a velocidade antes de ela chegar. E quando inventarem um tal telefone que dá pra levar para todo lado, não vai ficar brincando com aquela bosta enquanto dirige, você vai fazer isso, Sivuquinha?

— Tá bom...

— Tá bom o que, moleque? Você vai fazer o que eu te falei? Vai prestar atenção pra não fazer essa merda? Me responde, moleque!!

— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!

Nesse instante, uma mão me tocou no ombro e soltei um grito. Olhei para trás, era meu avô que me puxava pelo braço de volta para o carro para seguirmos viagem. 

— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando no carro.

Foi com meu avô, mas virei o corpo para dar uma última olhada no meu homem morto. Ele continuava lá, dentro do carro destruído e seu olhar continuava como antes, perdido no horizonte, desligado deste mundo. Talvez um olhar um pouco menos desesperado, um pouco menos triste, como quem parece que pelo menos uma vez na vida, fez algo de útil.


Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.

Silvio Ambrosini


domingo, 9 de outubro de 2022

Pedalando até Santos pra filar boia na mamãe

 


Saí cedo de casa pra filar boia na mamãe, peguei a bicicleta e me joguei na estrada, ai que medo, abre o olho, cuidado com os assaltantes, cuidado com os automóveis, mas também toma cuidado com a vida que passa e precisa ser vivida, porque é vida que passa rápido igual bonde que só se pega andando e tem que pular quando chegar a estação, porque o bonde, assim como a vida, não para, ela vai passando.

Olhei para baixo e vi meus pés pedalando, pedalando quase sem parar. O asfalto passa rápido, a ponte e os matos, os pássaros que fogem e gritam nos raios do sol que entram de lado ainda porque é tão cedo de manhãzinha.
Tenho vontade de terminar a subida para alcançar a descida, e descendo, olho a próxima subida que vai crescendo.

Os carros passam zunindo na estrada, todos com pressa ou sem ela, mas riscando a estrada de branco, prata e preto, as vezes um vermelho, um azul, uma moto barulhenta, um triciclo com uma caveira, um caminhão perdido na paisagem, as famílias com as crianças coladas no vidro, as moças com os pés sobre o painel, os homens com o cigarro do lado de fora da janela.

Em minha bicicleta vejo o mundo andando rápido e meus pés que rodam nos pedais. E chega a polícia rodoviária e lá estão os guardas rodoviários e olho para o outro lado fingindo que não vi. Bicicleta é proibido, mas eles não ligam, porque ciclista é tudo de bom.

Na primeira curva está o sujeito, chego perto, tudo bem? Vai para a praia? Como tu te chama? Marcos? Eu sou Sivuca. É um prazer! Vamos juntos, a gente se ajuda! E seguimos alinhados, brincando de pequenas ultrapassagens, testando a pressa que nenhum dos dois tem.

Juntos, passamos por baixo da estrada, olha a mata, os pássaros, os carros que às vezes aparecem entre as árvores e os outros ciclistas que acenam sorrindo. Rápido nas ladeiras, devagar nas pirambas. Parada na cachoeira, cuecas, a água gelada, fotos, seguimos em frente, demos dicas para os rapazes na dúvida, pedimos dicas aos rapazes com certeza.

Erramos uma curva, acertamos a outra, voltamos, carregamos as bikes nas costas, encontramos a rodovia e aceleramos o passo, cruzamos as faixas brincando de automóvel. Essa é aquela parte da viagem que a gente não conta pra ninguém... Olha aqueles dois malucos entre os carros... E no fim deu tudo certo, quantos quilômetros? Setenta e cinco! Amanhã tem mais! Obrigado Marcos, pela companhia!

Pedal é assim, é companhia de amigo que aparece porque todos querem a mesma coisa, pedalar e sentir a vida que está passando.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

O homem invisível


O homem invisível troca a fralda do filho, imóvel na cama, ele apenas observa com os olhos tão vivos que parecem ter ido buscar a vida em todas as outras partes do corpo. É um par de olhos em busca de vida, num esforço sem fim para concentrar neles, toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida. 


O filho observa, sente, pensa, opina, envia suas mensagens, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar, sentir, ouvir, receber suas mensagens e a tecnologia ajuda. A mãe corre, aninha, mima, protege, alimenta, escuta, ama. O filho sorri com os olhos, seus olhos cheios de vida, esbanjando vida e a mãe sabe, a mãe sente, a mãe ouve.

O filho se preocupa, tem medo de ficar sem respirar, pisca o olho. O homem invisível verifica a saturação, está baixa, olha para o filho, seus olhos se encontram e através do olhar, ele, de algum jeito que não entendi ainda, entende que o filho tem dificuldade para respirar. O homem invisível faz o procedimento, limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira, e então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já está melhor. O oxímetro confirma, o homem invisível relaxa um pouco, a mãe descansa os ombros, o filho sorri com os olhos.

O filho não tem medo de monstros, não tem medo dos lobisomens que uivam no quintal, não tem medo da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim, não tem medo do monstro que mora embaixo da cama. O medo do filho é ficar sozinho e parar de respirar, e não ter ninguém para aspirar e aspirar e aspirar, o medo do filho é não ter olhos para olhar, não ter olhares para trocar, não sentir a pele lhe tocar. Em seus sonhos, flutua sobre a cama, está voando, sai pela janela e flutua sozinho pelas ruas do bairro, entra no bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem, finge que tem o medo de que ele não tem, olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem que ele tem. Então vê a mula sem cabeça e ela solta as labaredas pelo que lhe resta de corpo sem cabeça, e escuta seu grito que não sei por onde sai, mas ela que grita e relincha e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E voa sozinho pela rua sem medo, porque sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu e quando chega perto das nuvens, sente uma pequena solidão, mas fica feliz em poder escolher para onde vai, flutua, sai do bosque, volta para o bairro e vê sua casa no fim da rua,  entra pela janela do quarto, e olha para o lençóis, e os aparelhos com suas luzes e seus foles que inflam e desinflam, ocupados com seu trabalho, e os fios todos ligados e a cama com o monstro que mora lá, ele mora debaixo da cama, e ele finge ter medo também porque criança tem que ter medo de monstro, mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.


E a mãe escuta um som, foi a janela que se fechou? Foram os aparelhos que biparam? Foi o filho que se engasgou? A mãe se preocupa, sai da cama, e vai até o final do corredor e procura o olhar e encontra aqueles olhos e os olhos lhe dizem para se tranquilizar. Mãe, foi só um passeio, saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens para sentir só um pouco de uma pequena solidão, não precisa se preocupar. E a mãe começa a chorar, é só um pouquinho, precisa deixar escapar. Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar e as lágrimas escorrem e o homem invisível alcança com o lado da mão, a bochecha molhada das lágrimas e as seca. E naquela hora, a mãe fecha os olhos mergulhados no abraço do homem invisível, e o filho vê, mas finge não olhar. E o homem invisível abraça a mãe com seu abraço forte e por cima do ombro da mãe, vê no olho do filho, aquele inconfundível olhar, os olhos que não têm medo de monstros, os olhos que não escondem o olhar. E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.   

E o homem invisível conta histórias, e confere os aparelhos, e o fole infla e desinfla, se move sem parar e levanta os olhos para encontrar naquele olhar, um pedaço de vida, tão difícil de encontrar e naqueles olhos tão cheios de vida, vê o esforço para olhar e naquele olhar conta histórias sem parar. Quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem, mas não teve medo e viu as labaredas da mula sem cabeça, e escutou o grito dela também, mas também não teve medo e voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.


E o homem invisível que não pode chorar, pensa naqueles onze anos olhando para aqueles olhos e tenta sem lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar, tempos em quando aquele olhar estava em outro lugar. E lembra da avó que o levava visitar as crianças e as velhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, muitas ficavam deitadas não podiam se levantar. E tinha um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que ainda era tão pequeno, mas já conseguia perceber que dentro daquele olhar, não havia medo de monstros, não havia medo de olhar. E corria com o menino e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse, porque se ele caísse, como iria se apoiar? E corria devagar, mas o menino ia rápido e sem os braços, corria até cansar e o homem invisível ia atrás dele, não porque queria correr, mas porque queria encontrar, um pouco daquele olhar.

E a avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar e era uma ladeira e a avó levava aquelas pessoas ladeira acima para passear. E quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.

E antes daqueles onze anos, o homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, suas escolhas, seus erros e acertos, suas idas e vindas, e dia após dia, ano após ano, construiu sua história, decolou das montanhas e sentiu o vento bater em seu rosto, e sentiu a pequena solidão e se aproximou das nuvens e ficou feliz em poder escolher para onde ir. E estendeu a mão para os amigos e foi visitar quem estava sozinho, e foi se encontrar com quem queria um abraço e também se emocionou num filme bobo e deixou uma lágrima escapar. Então um dia o homem invisível parou frente a frente com um par de olhos e naquele par de olhos, trocaram um olhar e sentiram que podiam continuar assim até que não fossem mais capazes de se olhar, não por não querer, mas por não mais enxergar. E juntos foram morar e se amaram e nunca pararam de se amar. E quando veio o filho, o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo. Não havia medo de monstro, não havia medo de lobisomem, não havia medo de mula sem cabeça, só um medo havia naquele olhar, era o medo de ficar sozinho e de parar de respirar e de não ter ninguém para ajudar.

E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam naquele olhar, porque sabiam que dentro daquele olhar só existia uma coisa, era o saber amar.


sábado, 23 de abril de 2022

Acabando com "isso aí..."

Era um país que já vinha calejado, o ranço burguês contra o sucesso do operário que virara presidente, já irritava há tempos, onde já se viu um parvo presidente? Que direito tem ele, vindo do encardido da graxa das máquinas, sentar-se à cadeira máxima do Planalto? Como se atreve a gastar tanta energia com a gentalha do nordeste? O novo presidente era o símbolo de um levante indesejado, o triunfo do proletário, a derrota da burguesia, era campanha Marxista deslavada, desavergonhada. Muita gente não gostou nada daquilo, apesar do avanço do país, o velho inconformismo falava mais alto.

O operário soube orquestrar relações, foi eleito duas vezes e suas conquistas foram derradeiras para garantir que pela primeira vez na história do país uma mulher se tornasse Presidente da República. Porém com ela, as coisas não foram tão fáceis, sua habilidade política coincidia com seu baixo nível de paciência e ela não custava muito para botar senador corrupto pra fora do gabinete. Uma mulher que fora torturada pelo sistema militar, tinha muito pouca paciência para lidar com os filhos desse mesmo sistema, herdeiros da ditadura, netos do império e da escravidão, filhos de tempos em que lugar de preto era na senzala e em nenhum outro lugar, tempos em que lugar de operário era o chão da fábrica, tempos em que a empregada não andava de avião, tempos em que o filho dela, nascido sabe-se lá de qual pai, não fazia faculdade, tempos em que favelada não vendia discos muito menos virava empresária, bons tempos em que lugar de mulher era na cozinha, com a barriga no fogão, e que homem de verdade não tinha isso aí de viadagem, e se tivesse, era doença fácil de curar na porrada, na facada e no tiro. Naquele tempo, não tinha mimimi, homem não se vestia de mulherzinha, eram tempos em que preto, se não cagava na entrada, cagava na saída... Preto apanhava primeiro, porque preto só queria roubar seu dinheiro, e bandido bom era bandido morto, e direitos humanos defende criminoso e mulher feia não merece ser estuprada, e torturador da ditadura merecia busto em praça e nome de rua.

A mulher presidenta tinha que cair e não foi difícil encontrar uma desculpa para tirá-la do cargo, a tal da pedalada cinicamente serviu para o propósito.

As denúncias de corrupção funcionaram como uma conveniente desculpa para um grupo de pessoas que odiava pobre, poder se voltar contra eles. A classe média que vivia cercada pelos muros do condomínio, comendo picanha e tomando cerveja de grife não podia ser simplesmente invadida por aquela gente. 

Ela caiu em meio a um show de horrores em seu lugar o decrépito vice-presidente assumiu o cargo.

Na época, o discurso era cheio de pompa, um padrão empolado que irritava e cansava especialmente a classe média. Foi então que surgiu um sujeito que tinha uma fala desbocada, parecida com a de nossos tios quando discutiam futebol ou jogavam truco, um jeito suburbano e grosseiro de expressar, ao estilo churrasco de sábado com cerveja além da conta, vocabulário de briga de trânsito, de discussão em portaria de clube, de barraca de feira, o clássico barraco baixaria que fazia parte do dia a dia de muitos brasileiros. No discurso do impeachment, homenageou um legítimo torturador, justamente aquele que havia sido responsável pelas torturas que durante o regime militar foram impostas inclusive à própria presidenta. As pessoas ouviram aquelas palavras e ficaram imersas em um letárgico, dolorido e assustador silêncio. Nascia ali um vírus, uma doença que levaria um bom tempo para ser curada 

E os cidadãos de bem, detentores do estandarte da família tradicional brasileira, adoraram. Finalmente alguém que não tinha frescura, não tinha o tal mimimi, que falava de porrada, que criticava a viadagem, que mandava mulher calar a boca, capaz de dizer na cara de uma deputada, que ela não servia nem para ser estuprada. E aquelas palavras foram normalizadas e isso causou arrepios em muita gente.

Assistimos atônitos o despertar de sentimentos represados e reprimidos e desesperados acompanhamos o resultado final das eleições, aquele homem grosseiro, que fugira de todos os debates e entrevistas, simulou uma facada que despertou uma simpatia inédita em uma parte indecisa da população, justamente aquelas pessoas que mergulhadas em uma história de paternalismo, sentiam falta de um ícone, de um ídolo para chamar de seu. Deu certo, junto com a desmoralização do partido dos trabalhadores, aquelas pessoas acreditaram que o método porrada era a solução. Entre eles, muitos se sentiram identificados com aquele comportamento preconceituoso, machista, homofóbico, xenófobo, misógino, com sua arrogância lasciva. Eram pessoas que tinham sido forçadas a se calar durante os anos anteriores, pelo avanço do politicamente correto. Agora, finalmente aparecia alguém para lhes dar o aval que elas desejavam, e era justamente o presidente da república. 

Nada do que veio a seguir nos impressionou mais do que envergonhou. O novo presidente revelava a cada palavra, a cada decisão, um pouco do que vinha: colocar em prática sua política fascista até as últimas consequências. Suas gafes em todas as áreas eram constantes, sua falta de habilidade política ultrapassava o grotesco enquanto isso, um estranho silêncio emanava da imprensa. 

É claro que muito foi dito contra ele, mas considerando a situação, esperava-se muito mais. Sua retórica continuou fascinando uma pequena multidão que foi gradativamente percebendo a falácia de tudo aquilo, mas um pequeno grupo muito fiel, que se identificava com a essência daquele pensamento, permaneceu agitando suas bandeirinhas verde-amarelas até o final.

Os dias iam virando história, certamente um dia os filhos de nossos filhos abririam o livro de história do Brasil para saber sobre o tempo em que nosso país se transformou em uma nova ditadura fascista sob o comando de um sociopata chamado Jair Messias Bolsonaro.


terça-feira, 29 de março de 2022

A panela de ovos



Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.


E então vem o ponto de ônibus e a banca de jornal e as pessoas que desviam e as que não desviam também, aquelas que vão, aquelas que vêm. E na porta da loja popular, um homem alcança seu olhar. Nas cores desbotadas de suas roupas, nas sandálias de dedo, em seu mover cauteloso, em sua mão, um punhado de moedas de diferentes cores e tamanhos. Dona me ajuda por favor, a completar o que me falta para que eu possa comprar aquela panela. E aponta com o dedo da outra mão enquanto traz para o peito a mão das moedas, fechada em punho protegendo o que é seu. Não falta muito, se eu conseguir, até o final do dia vou poder fritar uns ovos nela. E do outro lado do vidro, a pequena panela com a etiqueta pendurada dizia dezessete reais, a panela da loja popular. E ela não pensou muito e entrou e comprou a pequena panela e a entregou na mão do homem, e ele sem acreditar questionou, mas dona, essa panela é para mim? E ela disse que sim, e que usasse as moedas para comprar os ovos, e ele então agradeceu e tremia a voz, e disse que fazia tempo que ele não via o Papai Noel... e ela brincou, Mamãe Noel, talvez... E ele brincou com as moças do caixa, que pouco lhe deram atenção, mas mesmo assim ele disse: Nessa panela, vou fritar meus ovos e vou fritar minha pele de frango, vocês já provaram que delícia que é a pele de frango com ovos? E a alegria do homem era flagrante e mesmo sem enxergar muito bem, pelo pouco que as lentes de seus óculos lhe permitiam ver, ela sentiu, mais que viu, a alegria do homem que se materializara e então o tempo andou mais devagar por um instante e o ponteiro do relógio tentou não avançar para os próximos segundos.


E ela então ela voltou para a rua e enquanto seu avental voltava a voar na brisa da manhã e as pessoas voltavam a caminhar e a brisa também voltava a soprar seu rosto, ela se lembrou de como se sentia completa em poder fazer algo por alguém, se lembrou de como era fácil encontrar felicidade assim, tão de repente. Ela que poderia ficar feliz com novos azulejos para a cozinha ou o piso do apartamento ou com qualquer coisa que ganhasse de alguém. Mas a felicidade estava lá, não no que ela recebia, mas no que ela era capaz de entregar.



Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.


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Arrogância do bem também faz mal

Ao longo de minha vida como não-analista, relacionei-me com um infindável número de pessoas. Uma importante parte desse número foi feita pri...