sexta-feira, 17 de outubro de 2025

 Pode chorar sim


Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabéns menino! Vejo que sabes gritar… Ah, é um direito meu, sabe? Conquistado recentemente — é verdade. Precisei de um irmão morto para conseguir chorar esse choro pela primeira vez… agora não foi tanto assim, bastou um fora do namorado. Não que seja pouca coisa, é um pedaço de mim que se foi, ficou aberto um buraco, bem aqui ó… encostado no coração. E entreguei pra ele minha aflição, preocupado eu, que sou bobo. 

Ele saiu para o retiro de meditação, já passou uma semana, mandei mensagem… “se quiser eu vou te buscar, viu?” nem tchuns… quando será que ele volta? Devem ser mais dias né? Fui olhar… volta domingo, ainda faltam três dias. Será que ele está deprimido? Ah, eu acho que eu ia ficar, sabe? Deprimido por ficar em silêncio tanto tempo naquele retiro. O lugar é lindo, em Santana do Parnaíba, no meio do mato… muitas árvores, deve ter até uns macaquinhos. 

Mas eu acho que não estou em momento de silêncio.. ao contrário, estou pra falar! Preciso falar muito, contar por aí as coisas que eu tenho direito, como chorar por exemplo. Parece pouco, mas não é. Chorar, que deveria ser um direito de todos, não era muito meu direito. Tanto é que naquele primeiro choro, precisou morrer meu irmão… ah, minto… naquela ocasião, levei uma bronca de minha mãe: “FALA QUENEM HOMEM!”. 

Porque eu pedia as coisas chorando, meio choramingas então ela ficava bem brava: “Esse menino acho que tem a pomba gira”, disseram para ela… então me mandou para o Karatê. Assim quem sabe não para essas choramingas? 

Segui em frente, faixa branca, azul, amarela, verde, marrom.. primeiro grau, segundo grau, terceiro grau!! Caramba, só faltava mais uma pra me tornar um faixa preta de Karatê! Mas era tanto chute na orelha, soco na barriga… Até que eu estava indo bem, era um Karateca! 

Tinha aprendido uns golpes, daqueles que encerram a luta ali mesmo. Os caras ficam te olhando, os faixa azul te veneram, os amarelos respeitam, os verdes invejam, os outros marrons admiram e os brancos.. bem, eles não entenderam bem o que aconteceu. E você volta triunfante pra casa.

Naquele fim de semana, na praia, uns moleques resolveram mexer com minhas primas e minha irmã: Ficaram falando umas besteiras, fazendo uns gestos obscenos. Eu fui lá tirar satisfação, mandei um giro lateral que passou longe e nem tinha terminado de baixar a perna, ele chutou meu saco. Fui para o chão na hora e fiquei ali me contorcendo. É difícil, descrever a dor. Parece que o mundo inteiro foi pro saco. 

Não me lembro nem como cheguei em casa, mas depois do chute eu estava dentro do chuveiro chorando. Minha avó me abraçou com a toalha… Então contei que tinha arrumado briga com os moleques da rua e um deles tinha me chutado. Chorei dolorido nos braços de minha avó e ela ficou lá em silêncio só me segurando até eu me acalmar. Eu me senti melhor depois disso, bem melhor.

Quando morreu meu irmão, foi horrível. Eu tinha passado as últimas 24 horas ou mais cuidando de tudo, necrotério, doação de órgãos, caixão, flores, autópsia, crematório, música, discurso… cuidei de tudo. A família estava entorpecida num canto, lambendo essa ferida aberta e eu não podia chorar. Só depois que tudo terminou e eu voltei pra casa, deitei na minha cama e chorei, berrei muito, num choro longo, soluçante e dolorido.

Tive outros choros pequenos, as mortes dos cães, alguns amigos… Só voltei a chorar mais quando terminou meu casamento, mas dei um jeito de chorar enquanto pedalava minha bicicleta. Fiz até uma playlist pra organizar minha fossa, mas acho que eu ainda estava inserido nos tempos dos choros proibidos.

Ontem foi diferente, percebi que chorava não só por ter ficado sem namorado, pelo sonho de que um dia o namoro retome, aflito por ele poder estar triste enfiado lá naquele retiro onde é proibido falar. Acho que foi isso que me motivou mais, fiquei me imaginando proibido de falar e também proibido de chorar e aí o choro veio. Proibido de chorar é o escambau, olha como eu choro o quanto eu quiser. Acho que foi assim. Chorei tanto abraçado no travesseiro que fiquei com o nariz entupido, quase não conseguia respirar. Levantei da cama e fui ao banheiro. Então abri o chuveiro e fiquei lá um tempão. Aquilo foi bom. 

Voltei pra cama mais organizado e dormi profundamente. Nem acordei pra mijar, nem meu joelho operado me incomodou. 

Hoje acordei leve e me lembrei de como foi libertador poder chorar. O choro sem vergonha é um som bonito que um homem pode fazer. E eu chorei, como há tempos não chorava.


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e virei a direita para encontrar com meu pai.

Lá estava ele, deitado, imóvel, a boca ligeiramente aberta, a cabeça um pouco inclinada para trás. Tentei, com algum esforço, enxergar alguma beleza por trás dos tubos e daquela expressão vazia. 

Era meu velho pai, um homem cuja vida se aproximava do fim. Me aproximei e alcancei sua mão direita. Não senti nenhum tipo de resposta  não sei se por causa dos remédios, ou porque, secretamente eu preferia assim, diante do que já parecia inevitável. Observei seu rosto. As rugas da testa estavam relaxadas. Isso, de alguma forma me tranquilizou. 

Meu pai havia sido um homem agitado, daqueles que não levam desaforo para casa. Era capaz de arrumar briga no trânsito, de rolar pela calçada agarrado ao sujeito que o fechasse no carro, enquanto a família assistia apavorada pela janela, torcendo para que saíssemos inteiros daquela cena grotesca e absurda. Mas minutos depois, ele voltava ao normal, como se um estranho êxtase o tivesse invadido — e a gente, aliviado, tinha nosso pai de volta, ao menos por um tempo. 

Dentro da família, seu afeto e dedicação eram indiscutíveis — mas seguiam regras claras. Ele mandava. Do lado de fora desse perímetro imaginário que ele criou para proteger os seus, o mundo era um lugar ingrato, sempre pronto a conspirar contra ele e contra nós.

A velha cartilha masculina, a hierarquia clássica, regia nossa casa. Mesmo quando já não participava ativamente do trabalho, ele ainda encenava o papel do homem cansado, que chega em casa e só quer o jornal, o café e a televisão.

Mas havia momentos em que ele baixava a guarda e ia para a cozinha. Às vezes preparava um bauru, noutras, montanhas de pastéis para todos. Cuidadosamente cortava a massa, recheava com pedacinhos de queijo fresco, um toque de orégano. E, quando alguém elogiava, ele sorria orgulhoso e dizia:
Eu aprendi no tempo que trabalhava no navio...

E assim, deixava nossa imaginação solta. Eu me perguntava como teria sido a vida daquele cozinheiro de cargueiro, perdido pelos sete mares, navegando de porto em porto. Como alguém trocaria o mar, o sal no cabelo e o sol impiedoso pela monotonia de uma vida paulistana, cuidando de uma empresa de sucata de torneiras e sifões?

Se ele realmente trabalhou no navio ou se essas histórias eram apenas reflexo de um desejo secreto, pouco importava. No “tempo do navio” estavam contidas as verdades que ele nunca soube ou pôde viver — e que, sem perceber, escancarava nas entrelinhas.

Dias antes de ir parar na UTI, empurrei meu pai de cadeira de rodas até o carro. No caminho, disse a ele que o amava. Apertei um pouco mais meu coração e criei coragem para dizer que também o perdoava — sem entrar em detalhes, porque ele sabia os motivos. Meu coração precisava se aliviar, e assim fiz. Aos cinquenta e poucos anos, finalmente deixei o peso para trás, ali mesmo, entre a calçada e o meio-fio. Talvez a próxima chuva tenha levado embora esse fardo, dissolvido nas águas do oceano.

Ele me olhou nos olhos e disse, pela primeira vez em toda a minha vida: 

— Tenho medo de cair.

Foi a primeira vez que meu pai, o homem inabalável, admitiu um medo diante de mim. Para mim, isso foi uma conquista. Quebrava o mito da invencibilidade que ele tanto cultivou.

Dentro do carro, ajeitei o cinto nele, abri os vidros naquela tarde de calor e liguei o som: Sapore di sale. Segurei sua mão pela primeira vez em muito tempo. Viajamos juntos, curtindo a música, o vento e o sol no rosto.

Na UTI, já no fim, segurei sua mão e disse:

— Pai, um ônibus vem te buscar. Quando ele chegar, você pode ir. Vai ser uma viagem bonita, cheia de árvores, beira-mar… Lá no final, o Fernandinho, a tia Cê, o tio Claudio e a vovó Nina vão estar te esperando. Acho que o vô Nin também. Vá tranquilo. Eu fico por aqui com a mamãe. Depois a gente se fala. Boa viagem. Obrigado por ter sido meu pai.

Olhei para as curvas e rugas de seu rosto e pela primeira vez, encontrei ali uma forma de beleza — uma simplicidade verdadeira, um retorno a um estado fundamental, tão simples, algo rústico, porém surpreendentemente belo. 

A morte levou meu pai, mas hoje consigo de certa forma, celebrar sua memória.  Apropriei-me de seu gosto por aqueles pastéis fritos e quando alguém me pergunta, como é que eles ficam tão bons, eu respondo sorrindo: 

— Eu aprendi no tempo que eu trabalhava no navio. 


quarta-feira, 19 de julho de 2023

Protestar é viver - Posfácio não publicado do livro Ventomania

Naquele dia fui até a janela do quarto com minha filha Sol, munido de um par de panelas e colheres de pau. Foi dia de panelaço. Juntos, batemos aquelas panelas, gritamos e rimos muito, por um bom tempo enquanto revezávamos o samba com os vizinhos que se manifestavam em peso. Depois, levei-a para a cama e contei uma história. Então ela me perguntou por que afinal tínhamos batido as panelas. Eu expliquei que fazer barulho daquele jeito é uma maneira de lembrar às pessoas que nós também existimos, que não somos apenas sombras numa janela, que somos gente como qualquer outra gente, que somos uma família, que se ama e tem o direito de ser feliz.

Elis Regina disse que "há perigo na esquina", então é preciso estar atento e quando percebermos que nossos direitos estão sendo atacados, devemos abrir a boca, bater panelas e protestar contra os perigos enquanto podemos.

É porque protestar é viver, é mostrar a cara, é contar para as pessoas que eu e você também existimos, é lembrar a nós mesmos, que estamos vivos, que não somos menos do que ninguém.

Ela sorri, diz que ama, diz boa noite, dou-lhe um longo beijo e a cubro com os lençóis. 

A cumplicidade dela é peculiar, a relação com minha filha vai além de pai e filha. Não sou nada autoritário, o que às vezes termina me fazendo parecer que temos a mesma idade. Então juntos, nos divertimos e aprontamos travessuras. Ela parece ter um pedacinho de meu irmão morto, agora vivo, aqui perto de mim, um pouco como reencarnação, se eu acreditasse nisso, apesar de achar a ideia eletrizante.

Uma vez li um texto interessante (e viajante) que, por trás de nossa aparência física, existe uma espécie de corpo inorgânico. Essa deliciosa teoria conta que esse ser inorgânico é algo como um “casulo luminoso”. O casulo é a essência daquilo que somos feitos, algumas pessoas podem chamar isso de “alma”. Esse tal casulo é, ou ao menos deveria ser, perfeito. Mas então, quando nos tornamos pais, involuntariamente cedemos um pedaço do casulo para ajudar na construção de nossos filhos. No lugar de onde saiu o pedaço, fica um buraco, e por esse buraco, passa um fluxo infinito de amor incondicional. Esse fluxo nos conecta, como que por fios, com nossos filhos. Parte desses fios poderão um dia se romper, mas o buraco permanece e apesar de poder ser disfarçado ou chegar perto de ser reparado, nunca mais desaparecerá. Essa conexão permanece ali para sempre, porque somos pais e para sempre, amaremos nossos filhos, independentemente de que caminhos eles sigam.

Escrevi esse texto para que fosse o posfácio de meu livro Ventomania, uma vida voando de parapente, mas era tarde demais, o prelo já rodava e a gráfica acelerava. O posfácio ficou, mas aqui está ele para a próxima edição, quem sabe talvez até lá, não será preciso protestar...

O livro "Ventomania, uma vida voando de parapente" pode ser adquirido aqui.


quinta-feira, 1 de junho de 2023

Vida de gente, vida de cão

 

Chorei hoje igual bebê,
como há muito não fazia.
Jogado no sofá,
abraçado na almofada,
abri um berreiro daqueles raros,
verdadeira agonia

Não era isso que eu queria,
preferia de outro jeito,
um jeito que tivesse jeito.
Mas como jeito não havia,
a gente logo dá um jeito,
porque não tem nada mais mal feito
que bicho em agonia.

Bicho é feito de alegria,
veio aqui pra passar bem,
E se bicho sofre, meu amigo,
arruma logo um jeito certo,
de provar para teu bicho,
que você é o cara certo
feito de amor, cuidado e respeito
que ele pode confiar
porque você é do bicho,
seu melhor amigo.

Ser humano é uma coisa doida né?
Vem pra Terra pra aprender a ser gente,
levar porrada, perder uns dentes
ralar muito e quem sabe um dia,
chegar ao fim da vida,
olhar pra trás e pensar sobre a vida,
poder falar que valeu a pena,
vida que não foi pequena,
vida que foi bem vivida.
Não foi vida vivida para o outro, 
mas, interessante e plena vida, 
dessas que dá gosto de viver
de poder dizer, essa foi minha vida,
e saber que viveu bem,
cada dia dessa vida
até o dia de morrer.


Vejo a gotinha tão branquinha
que passava pelo tubo
como bilhete só de ida
pra quem já viu de tudo.
A lágrima da doutora
atrapalha pra achar a veia,
como quem não quer fazer
o que a profissão permeia.

E dormiu um sono pesado,
e com as mãos senti seu corpo
passeei por seus densos pelos,
e vi o medo acelerar seu coração
um pouco de pavor talvez
tentando resistir
batendo pela última vez.

E falamos da vida,
das coisas boas,
dessas que fazem a gente
sentir gosto pela vida,
dessas que fazem a gente
querer se apegar mais,
ao que nos resta dessa vida.

É porque vida é sempre o que te resta,
o que ainda falta pra viver,
porque vida passada só serve pra uma coisa
te ajudar a melhor viver melhor,
essa vida por viver.

E tremeu a orelha dele um pouco,
Doutora! Ele tá vivo!
Não, meu amigo, você não tá louco,
é só uma contração, um último adeus,
pra lembrar que nessa vida de cachorro
é bom você saber,
é preciso ter um dono,
alguém que te respeite
e que cuide de você
até na hora mais difícil,
até na hora de morrer.


Hoje meu bichinho, meu cachorrão, meu lindo, meu Ozzy fechou os olhos tranquilos depois de um monte de carinho. 
O Ozzy era um pastor alemão, viveu quase 12 anos. Foi adestrado quando pequeno aprendeu a tomar conta da casa. Quase todos os dias trazia presentes que encontrava pelo jardim. Tomava conta da casa como ninguém. Minha filha Sol passou a vida com ele, deixou muita saudade.

Muito obrigado a dra Bia da Clínica Veterinária e Pet Shop Dra Bia, aqui na Vila Mascote pelo carinho e pelo profissionalismo. +55 11 94202-5804

segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre carneiros e lobos

Em uma floresta distante, vivia uma matilha de lobos havia muitas gerações. Levavam uma vida tranquila, cuidavam da prole e passavam as tardes de verão preguiçosamente à sombra das árvores ou se recolhiam nas cavernas durante o inverno.


Quando a fome apertava, um ou dois saíam em busca de caça. Dividiam o alimento com todos. A vida dos lobos parecia simples. E, sob certo ponto de vista, boa.


Do outro lado do vale, numa fazenda de algodão, vivia um rebanho de carneiros. O dono da fazenda produzia lã e fios de algodão para a fábrica de roupas na periferia da cidade. O algodão brotava dos campos. A lã, dos carneiros.


Naquele tempo, ainda não existiam máquinas colheitadeiras. As mãos humanas faziam o serviço — mãos calejadas, feridas, dedos cortados pelas cápsulas ásperas que protegiam o algodão. Quanto mais algodão se colhia, mais se ganhava. Mas, ainda assim, o pagamento mal dava para encher o prato no jantar. Eram vidas duras, aquelas.


Entre os trabalhadores estava Heinz. Seu nome, que em alemão deriva de Heinrich — "rei" ou "dono do castelo" —, soava como uma ironia amarga. De rei, ele só tinha o nome. Tinha quatro filhos e sua esposa, Helga. Dela, sim, vinha algo da força das mulheres nórdicas, que cuidavam da casa, dos filhos, costuravam, plantavam e sustentavam a vida em meio às dificuldades.


Aos quase quarenta, Heinz já não tinha o vigor dos jovens — o que, na Europa do século XV, significava o prenúncio da velhice.


Pela manhã, cruzava o celeiro a caminho dos campos, passando ao lado do pasto dos carneiros. Observava-os, sempre organizados para a tosquia. A lã era retirada, enviada à fábrica. Depois, os carneiros pastavam tranquilos, confraternizavam, aprendiam, cuidavam uns dos outros.


Falavam de ciência e filosofia, debatiam o ontem, o hoje e o amanhã. Riam, choravam, condenavam os arrogantes, apoiavam os artistas e — como todo rebanho que se preze — temiam os lobos.


De tempos em tempos, um deles desaparecia, levado pela floresta. E, por mais que tentassem esquecer, o medo estava sempre ali, pastando junto.


Naquela tarde, exausto, Heinz largou o trabalho antes da hora. Entregou o pouco algodão que havia colhido, recebeu as moedas minguadas e voltou cabisbaixo para casa. Passou pelo pasto dos carneiros e, entre berros e agitação, viu o bando se reunir assustado. Do outro lado do campo, um lobo se aproximava. Correu, dispersou o grupo, abateu o mais fraco e arrastou o corpo sob o olhar apavorado dos demais.


Em casa, mostrou o que havia ganho. Helga, tomada pela frustração, amaldiçoou o marido e o expulsou, indignada. Heinz saiu envergonhado e sentou-se numa pedra do quintal. Olhou para o céu e, num sussurro, pediu ajuda a Deus.


As nuvens do entardecer se abriram. Uma luz intensa iluminou a montanha. Uma voz grave ecoou pelo vale:


— Vejo tua vida, Heinz. Vejo tua miséria, tua fadiga. Se a vida que tens não te serve, posso te transformar em outra criatura. Mas só há duas escolhas: um lobo ou um carneiro. Decide.


Heinz não hesitou. Fez sua escolha.


Naquela noite, sob o luar, entre os irmãos de matilha, com o gosto quente do sangue ainda nos dentes, Heinz celebrou sua nova existência:

inocente, porém inevitável; trágica, mas bela; cruel, mas deliciosa.
















sexta-feira, 24 de março de 2023

Água batida na pedra


Água batida na pedra 

(ou uma visão realista das dificuldades atravessadas pelas pessoas trans na contemporaneidade)


Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha simples um senhor chamado Seu Beraldo.

Com os dedos calejados, Seu Beraldo verte água de um jarro de barro numa surrada caneca de alumínio e me oferece:

— Essa água não é de torneira, não, viu? Essa é água da cachoeira… ela vem batida na pedra!

Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.

Curioso, inclino a caneca contra os lábios e, enquanto bebo, observo os pequenos olhos de Seu Beraldo por cima do alumínio. A água é gelada, gostosa.

— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?

Ele ri e explica: é diferente, sim. A água da torneira escorre pacífica quando você abre o registro. Já a da cachoeira… pacífica, ela não tem nada. É uma água vivida, sofrida, “batida na pedra”.

— Isso deixa ela especial, sabe? Tá vendo que o gosto é diferente?

Dou outro gole e penso: talvez… está geladinha. É boa.

— Mas como é isso, Seu Beraldo? O que significa “batida na pedra”?

— É assim, rapaz. Pra essa água chegar aqui, dentro dessa caneca que ocê tá bebendo, ela não veio fácil, não. Sofreu todo tipo de ataque. Veio descendo o riacho, batendo nas pedras, enfrentou redemoinho, andou muitos quilômetros, se atirou de vários metros lá de cima, bateu com força no chão cheio de pedra do rio… É água transformada. Por isso, é especial. Precisa sentir o gosto dela… é água batida na pedra.

— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.

— Aproveita, rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa, não. Lá é só água de torneira ou de supermercado. Vou te dar um galão, leva um pouco pra sua casa.

Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...

Eu rio por dentro e, claro, aceito o galão da “água batida na pedra”. Mesmo sabendo que água é tudo água. Ou pelo menos, achava que era.


Anos depois, contratei pessoas trans para o quadro de colaboradores da empresa onde trabalho. E, ao conhecê-las um pouco melhor, lembrei de Seu Beraldo e da água batida na pedra.

Eu já tinha um amigo trans-masculino que trabalha em assistência pessoal e antes de fazer a contratação, perguntei a ele sua opinião. Para minha surpresa, ele me desaconselhou a seguir com o processo seletivo, me explicando que o risco de que tudo aquilo se transformasse em mais sofrimento era grande demais. Mas eu insisti e ele me disse: "aprenda mais sobre as transsexualidades, o mais que você puder. Se nada daquilo te assusta, então siga com teu projeto, mas seja especialmente cuidadoso". 

Eu segui em frente, me informe o máximo que pude e conversei especificamente sobre estes temas com aqueles candidatos. Resolvemos tentar.

Percebi que, de certo modo, pessoas trans são como água de cachoeira. Passaram por todo tipo de porrada na vida: muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas (o que dá no mesmo). Tiveram portas batidas na cara, enfrentaram agressões, discriminação e, não raro, a morte. Sabemos como o psiquismo humano resiste às diferenças. A simples ideia de que alguém possa ser, ao mesmo tempo, feliz e diferente é o motor de muito preconceito. E, infelizmente, isso alimenta a violência.


Não por acaso, o Brasil lidera o triste ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Essa informação já basta para que qualquer pessoa trans se sinta ameaçada apenas por existir.


Água é fluida, adapta-se onde estiver. Toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Evapora, foge da gravidade. Congela, vira pedra. Escapa pelos menores buracos, pode ser torcida, batida na pedra com a força que for.

Mas gente de carne e osso não é tão fluida assim. Pessoas batidas na pedra não saem ilesas do outro lado da cachoeira. As porradas deixam marcas, cicatrizes, traumas. Exigem um tanto de jogo de cintura, de coragem, de vontade de seguir vivendo.

É por isso que empresários e colegas de trabalho precisam compreender essa realidade. Precisam criar ambientes que recebam pessoas trans com sensibilidade — sabendo que a confiança, nesses casos, é construída devagar. Depois de tanta porrada, convenhamos, não é simples acreditar que o novo grupo não será apenas mais uma pedra no caminho.

A confiança que sentimos para fazer brincadeiras — às vezes preconceituosas, mesmo sem querer — precisa ser repensada. Por respeito, por humanidade, por desejo real de construir um lugar onde todos sejam, de fato, acolhidos como iguais.

A pessoa trans não está em busca de ser diferente. Muito pelo contrário. Ela só quer ser aceita como qualquer outra pessoa.

Porque, assim como a água continua sendo água depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans só quer chegar do outro lado reconhecida e respeitada, simplesmente, como a pessoa que é.

Um dos colegas saiu da empresa, mas o outro segue conosco até hoje.




sábado, 24 de dezembro de 2022

Meu primeiro cadáver

Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta. Meu avô, com seu espírito aventureiro, resolveu fazer um "atalho" e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos e de sua épica teimosia, achou que aquilo valia a pena. 

Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Régis Bittencourt. Na época, era pista simples e mão dupla, onde acidentes graves eram rotina.

Entramos então na rodovia Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe, e seguimos pela pequena serra, percorrendo em velocidade baixa as sucessivas curvas mal projetadas.

Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada nova curva e eu balançava de um lado para outro no banco de trás, ora me apoiando num muro de travesseiros, ora na lateral áspera do fuscão. 

Foi quando meu avô reduziu a velocidade por conta de uma enorme fila de carros. O trânsito se arrastava e, entre protestos, algum tempo depois, descobrimos o motivo.

Numa daquelas curvas, um acidente espetacular se tornara a notícia da viagem. Outro Fusca, cujo motorista provavelmente não conseguiu fazer a curva, invadiu a contramão e colidiu de frente com um caminhão amarelo. A batida foi tão violenta que tirou a vida de todos no carro.

Passamos devagar, observando o caos à beira da estrada, e meu avô Chico parou no acostamento alguns metros adiante. Parar para olhar o acidente é prática comum — talvez pelo desejo mórbido de acumular assunto para a próxima conversa, ou pelo simples alívio de saber que não foi com a gente.

Meu avô saiu do carro. Eu me ajoelhei no banco traseiro, observando ele se afastar em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça. Curioso que era o velho Chico, logo estava inclinado sobre o carro fumegante, bisbilhotando em busca de “pistas”.

Um minuto depois, vejo meu avô retornar. Ele tamborilou o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse: 

— Vem cá, Sivuquinha, o vovô vai te mostrar uma coisa.

Em obediência à autoridade do avô, saí do carro. Minha avó saiu primeiro para levantar o encosto do banco e eu saltei para a aspereza do asfalto. Curioso, segui meu avô até o local do acidente. 

Havia fumaça subindo da frente de um dos carros. As pessoas e os policiais se aglomeravam ao redor da cena, enquanto o teto amassado do Fusca azul calcinha me chamava a atenção. Era como se o teto estivesse tentando saltar por cima do restante do carro, fugindo do próprio desastre.

Aproximei-me um pouco mais e os detalhes daquela cena inesquecível começaram a se materializar diante dos meus olhos. Havia incontáveis cacos de vidro espalhados pelo chão, a lataria deformada e enrugada como papel amassado, uma das rodas torcida violentamente para a direita, lembrando um braço quebrado, dobrado para um lado impossível. No asfalto, repousavam um quepe azul, como os dos carteiros, e o pé solitário de um tamanco de madeira, desses que estavam na moda naquela época, em plenos anos 70. Estranhamente, não havia ninguém por perto. Imaginei que alguma senhora, vítima da tragédia, havia sido levada às pressas para o hospital na ambulância dos vigilantes rodoviários.

Foi então, no calor da tarde, que meus olhos de menino enxergaram, entre a lataria retorcida, algo que parecia um homem dormindo. Mas aquilo não era sono.

Lá estava meu primeiro cadáver de verdade. 

O motorista, provavelmente. Oculto atrás da porta semiaberta, um senhor de poucos cabelos brancos, bigodes enrolados cobrindo o lábio superior e parte da boca, escancarada num enorme susto. Os olhos arregalados, parados, miravam o horizonte por cima do meu ombro. Um olhar triste, suplicante. Sentado ao volante, o peito esmagado pelo volante, respingado de sangue. O braço esquerdo caía inerte, vestido com blusa cinza de lã fina. As pernas, encolhidas, desapareciam sob o painel.

Fiquei ali quase paralizado, Observava a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.

Os olhos do morto se fecharam numa piscada repentina e, num segundo, abriram-se de novo, assustados. Voltaram-se diretamente para o meu rosto. A boca se fechou por um instante.

— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?

Aterrorizado, recuei um passo no cascalho da calçada. Um arrepio percorreu minha espinha. Mas o fascínio de ouvir aquela voz me atraiu de volta.

— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...

— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?

— S... Silvio...

— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a confusão que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma barbaridade dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.

— Mas o caminhão...

— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, moleque! Eu estava correndo muito e o Fusca não faz curva, eu passei reto, não deu nem tempo.

— Não teve como desviar?

— Quando eu vi já era...

— Não tem mais jeito?

— E mesmo que tivesse? Minha mulher morreu. Nem viu nada, tava dormindo. Agora tá em algum lugar no céu, ou sei lá onde, tentando entender como foi parar lá. Levaram ela no rabecão. Culpa minha.

— Mas você está aqui falando comigo...

— Isso não me serve de nada. Daqui a pouco me levam também. Necrotério. Vou estragar a vida da minha família toda. Vai ser choradeira. Minha mulher era avó, igual tua avó. Nossos netos vão chorar. Meus filhos, meus amigos do futebol de botão. Vai ser uma bosta.

— Nossa, que ruim isso...

— É horrível e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que acha que sim, que é indestrutível, o mais esperto do mundo… Engano puro. Um segundo a mais de erro… tá fodido. Então, se liga, Silvio. Te chamam de Sivuca, né?

— É sim...

— Então, Sivuquinha, não faz uma cagada dessas, hein? Aprende a dirigir direito. Presta atenção nas curvas. E quando inventarem um telefone que dá pra levar no bolso, não fica teclando enquanto dirige. Vai prometer isso, moleque?

— Tá bom...

— Tá bom o que? Vai fazer o que eu disse? Presta atenção e me responde, moleque!!

— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!

Nesse instante, uma mão tocou meu ombro. Soltei um grito. Era meu avô, ofuscado pelo brilho do sol, me puxando de volta para o carro.

— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando.

Hesitei, mas fui. Antes de entrar no carro, virei o corpo e olhei uma última vez para o homem morto. Lá estava ele, imóvel, perdido no horizonte. Talvez, só talvez, com um olhar um pouco menos desesperado. Um pouco menos triste. Como quem, pela primeira vez na vida… fez algo de útil.

Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.

Silvio Ambrosini


sexta-feira, 29 de abril de 2022

O homem invisível


O homem invisível troca a fralda do filho. Imóvel na cama, ele apenas observa. Com seus olhos tão vivos, corre por tudo ao redor, parece que tenta buscar vida em todas as outras partes do seu corpo. Este par de olhos em busca de vida, se esforça para concentrar toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida. 

E o filho observa. Sente, pensa, opina, envia suas mensagens. Claro, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar com uma atenção especial, onde é capaz de sentir, ouvir, receber suas mensagens. 

E lá vem a mãe correndo, Ela abraça, mima, protege, alimenta, escuta e fala, descreve tudo ao redor para que seu filho escute suas palavras dando nome a todas as coisas, dando contorno ao seu pequeno mundo. O filho  responde o sorriso com seu olhos cheios de vida. Vida que esbanja e a mãe sabe disso, porque a mãe sente, a mãe ouve, a mãe ama.

Mas o filho está preocupado, tem medo de ficar sem respirar, então ele pisca o olho e o homem invisível verifica a saturação. Está baixa, então olha para o filho e seus olhos se encontram. De um jeito que não entendi ainda, através do olhar ele entende que o filho tem dificuldade para respirar. E o homem invisível faz o procedimento. Limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira. E então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já se sente melhor. A tecnologia ajuda, o oxímetro confirma e o homem invisível relaxa um pouco e a mãe descansa os ombros e o filho olha para ambos sorri com os olhos.

Sabe? O filho tem medo, mas não de monstros, não dos lobisomens que uivam no quintal, nem da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim e nem do monstro que mora embaixo da cama. O medo que o filho sente é de ficar sozinho, de não ter mais olhos para olhar, olhares para trocar, pele para sentir. 

Em seus sonhos, flutua sobre a cama, levanta voo e sai pela janela, flutuando sozinho pelas ruas do bairro. Penetra na escuridão do bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem. Finge que tem o medo que ele não tem. Olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem. Sente um arrepio na espinha que pouco sente, e lá está a mula sem cabeça com suas labaredas e seu grito de relincho e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E continua sua jornada entre árvores até que sai pela rua sem medo. Ele sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu vendo sua casa lá embaixo e quando chega perto das nuvens, sente um tipo de pequena solidão. Mas mesmo assim fica feliz porque pode escolher para onde vai, escolher seu caminho, pode flutuar como quer e voar por onde quiser. Então ele sai do bosque, volta para o bairro e  lá está sua casa no fim da rua. Entra pela janela do quarto e vê os lençóis e os aparelhos com suas luzes  piscando e seus foles ocupados em inflar e desinflar. E os fios ligados e a cama tranquila e acolhedora, nem liga para o monstro que mora debaixo dela. Ele finge que tem medo porque criança sempre tem medo de monstro. Mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.


Então, a mãe acorda assustada. Escutou um som. Foi a janela que se fechou? O alarme disparou? Os aparelhos biparam? Foi o filho que se engasgou? Preocupada, a mãe sai da cama, e corre até o quarto do filho em busca daquele olhar. Encontra aqueles olhos que lhe dizem para se tranquilizar. Foi só um passeio, mãe... eu saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens, estava tentando sentir só um pouco uma  tal pequena solidão, mas não precisa se preocupar. E a mãe solta uma lágrima, é só uma, filho. Eu preciso deixar escapar. 
Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar. Então o homem invisível, com o lado da mão, alcança a bochecha molhada e as seca. E a mãe fecha os olhos e mergulha no abraço do homem invisível. 
E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.   

E o homem invisível volta a contar histórias, a conferir os aparelhos e levanta os olhos para encontrar naquele olhar do filho, toda a vida que esse pedaço de vida tenta sempre encontrar. E naqueles olhos tão cheios de vida, onde vê o esforço para olhar, encontra a força para contar histórias sem parar. E o filho também tem histórias para contar, quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem e viu as labaredas da mula sem cabeça com seu grito horroroso, mas nada disso deu medo. E quando voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.


Era domingo, final do dia, o homem invisível se sentou olhando o horizonte enquanto o sol mergulhava entre os prédios. Sentiu vontade de chorar, mas lembrou que não podia,  pensou nos vários anos que haviam passado enquanto aqueles olhos furtavam seu olhar e tentou se lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar.

Lembrou de sua avó que o levava visitar as crianças e as velhinhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, ficavam deitadas sem conseguir se levantar. Havia um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que mesmo tão novinho, conseguia perceber que dentro do olhar do menino sem braços, não havia medo de monstros, não havia medo naquele olhar. E ele brincava com o menino, corriam pelo pátio, e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse. Se ele cair, como vai se apoiar? Então ele tentava correr mais devagar, mas o menino não ligava, corria o mais rápido que podia até cansar e o homem invisível corria desajeitado atrás dele e quando finalmente parava, ele finalmente podia encontrar um pouco daquele olhar.

A avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar. Junto com sua avó, o homem invisível levava aquelas velhinhas ladeira acima para passear. Quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.

O homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, escolhas, erros e acertos, idas e vindas. Sentiu o vento bater em seu rosto e um dia, perto das nuvens, sentiu uma pequena solidão, mas ficou feliz em poder escolher para onde ir. 

Um dia o homem invisível encontro outro par de olhos. Trocaram olhares e sentiram que podiam continuar assim. Se olharam, foram morar juntos e se amaram. Então veio o filho e eles também o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo de monstro, de lobisomem, de mula sem cabeça. Só o medo de não ter ninguém para amar.  

E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam em seu olhar, porque viam dentro daquele olhar  que ele era o lugar onde existia a mais essencial das coisas: o saber amar.


terça-feira, 29 de março de 2022

A panela de ovos



Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.


E então vem o ponto de ônibus e a banca de jornal e as pessoas que desviam e as que não desviam também, aquelas que vão, aquelas que vêm. E na porta da loja popular, um homem alcança seu olhar. Nas cores desbotadas de suas roupas, nas sandálias de dedo, em seu mover cauteloso, em sua mão, um punhado de moedas de diferentes cores e tamanhos. Dona me ajuda por favor, a completar o que me falta para que eu possa comprar aquela panela. E aponta com o dedo da outra mão enquanto traz para o peito a mão das moedas, fechada em punho protegendo o que é seu. Não falta muito, se eu conseguir, até o final do dia vou poder fritar uns ovos nela. E do outro lado do vidro, a pequena panela com a etiqueta pendurada dizia dezessete reais, a panela da loja popular. E ela não pensou muito e entrou e comprou a pequena panela e a entregou na mão do homem, e ele sem acreditar questionou, mas dona, essa panela é para mim? E ela disse que sim, e que usasse as moedas para comprar os ovos, e ele então agradeceu e tremia a voz, e disse que fazia tempo que ele não via o Papai Noel... e ela brincou, Mamãe Noel, talvez... E ele brincou com as moças do caixa, que pouco lhe deram atenção, mas mesmo assim ele disse: Nessa panela, vou fritar meus ovos e vou fritar minha pele de frango, vocês já provaram que delícia que é a pele de frango com ovos? E a alegria do homem era flagrante e mesmo sem enxergar muito bem, pelo pouco que as lentes de seus óculos lhe permitiam ver, ela sentiu, mais que viu, a alegria do homem que se materializara e então o tempo andou mais devagar por um instante e o ponteiro do relógio tentou não avançar para os próximos segundos.


E ela então ela voltou para a rua e enquanto seu avental voltava a voar na brisa da manhã e as pessoas voltavam a caminhar e a brisa também voltava a soprar seu rosto, ela se lembrou de como se sentia completa em poder fazer algo por alguém, se lembrou de como era fácil encontrar felicidade assim, tão de repente. Ela que poderia ficar feliz com novos azulejos para a cozinha ou o piso do apartamento ou com qualquer coisa que ganhasse de alguém. Mas a felicidade estava lá, não no que ela recebia, mas no que ela era capaz de entregar.



Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.


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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A Van da Discórdia

Foi ainda outro dia, muito recentemente, tão recentemente que ainda molha o dedo de tinta. Deveria haver um aviso de “Tinta Fresca”... mas aí... já ia aparecer um pra questionar, né? Se a tinta é fresca, deveria ser pink, porque é a cor de “frescura”, então meninos de azul, meninas de rosa e coisas frescas de pink. Mas a coisa é que essa tinta é feita de todas as cores porque essas coisas não têm cor, só têm rancor, só têm dor e ainda lhes faltam uma boa dose de amor. 


Mas não foi nada tão grave não, foi só uma conversa, daquelas de van, de gente que não tem para onde ir, está confinado dentro do cubo metálico. Não teve soco na cara, não teve insulto direto, não teve assassinato, e olha que essas coisas acontecem a toda hora, todo dia em todo lugar. Aqui no Brasil, no país que mais mata bicha no mundo, acontece mais fácil que vento leste.

Mas como dessa vez foi só uma conversa, então me conta o amigo que se queixou com o grupo, contando que ele estava chateado, pois ele, que só queria conversar, bater um papo assim, jogar conversa fora, mas no final a conversa terminou em tumulto, virou a “Van da Discórdia” como ele mesmo contou. O caso é que vinham todos juntos, justamente dentro da tal van e voltavam de um lugar, com sérios planos de ir para outro. 

Foi mesmo bom que estivessem voltando, assim o episódio da van da discórdia ficou só para a volta, quando todos já tinham se divertido bastante, esgotado todas as possibilidades de risos e brincadeiras, de festa e diversão. Se tivesse sido na ida, aí teria complicado, pois discórdia na ida costuma atrapalhar o evento. 

Então era uma daquelas horas em que o povo já tinha se divertido além das pencas, e alguém chega à brilhante conclusão que não faz sentido a essa vida possa ser mesmo tão legal assim gratuitamente. Entredentes, o sujeito pensa que para levar uma vida tão boa, ele só pode ter algo de especial. Afinal, privilégios e mordomias não são coisa para se entregar para qualquer um, é preciso ter um diferencial, uma indicação, é preciso não ser apenas mais um na multidão. É nessa hora, quando aparece um sujeito que sente que merece algo mais que a simples multidão, que umas coisas doidas começam a acontecer dentro dele. Dá até para descrever, um tipo de força que aparece dentro do peito, um tipo de poder, como de Superman hétero, uma força de eu posso, você não pode, eu tenho, você não tem, eu mereço esse lugar na van mais que você, Rosa Parks (mulher negra símbolo do movimento segregacionista norte-americano, a que em 1913, se recusou a dar o lugar dela para um branco no ônibus, mesmo sendo o que dizia a lei naquela época).  

É assim que acontece, é assim que termina, com o sujeito fazendo sua descoberta interna onde ele não é só mais uma pessoa no mundo, mas um especial do tipo Dias Paes, ou um Especial Borba Gato, como o da estátua escravagista, ou um Especial Plínio Salgado, da escola fascista brasileira, talvez um Especial Cabral, do cara que descobriu uma terra que já tinha dono ou um especial Messias B., aquele sujeito lá no palácio que o Niemeyer construiu, enfim especial assim Especial com E maiúsculo.

Então, sem mais desvios de assunto e conduta, voltemos à van... a van da discórdia, lembra? E em meio as reflexões filosóficas que costumam tomar espaço no ócio das longas quilometragens que a estrada proporciona, um dos colegas, despretensiosamente faz um comentário a respeito de outro colega que não estava presente: “Ele é muito inteligente, apesar de ser gay”. Pelo menos cinco ou seis pares de olhos se arregalaram nessa hora e o dono de um par deles, que não se aguenta debaixo de suas cabeleiras, movimenta o indicador como ponteiros do relógio que urgem para que o tempo pare e manda um “Alto lá... o senhor por acaso está insinuando que basicamente gays não são inteligentes e esse nosso amigo conseguiu romper alguma espécie de conexão invisível que mantém a população LGBTQI+ dentro dos limites da estupidez?”. Naturalmente, a resposta vem precedida do clássico sufixo  “Veja bem” e completa: “não foi isso que eu quis dizer...”... Não quis, mas disse, bem parecido com o sujeito que atropelou os ciclistas com suas bicicletas na beira da estrada, também disse que não queria fazer aquilo, mas pelo que entendi, apesar do fato consumado do sujeito ser gay – tom de lástima, lamento ou rejeição – ele até que é surpreendentemente inteligente. 

Nesse ponto, os ânimos se enriquecem e uma argumentação inflamada segue viva, apesar da pretensa falta de inteligência apontada na direção da população gay e a van segue incólume por seu caminho pelo asfalto quente. Mas, por onde passa, cabeças se viram em sua direção, possivelmente para tentar esclarecer a curiosidade que o aroma que exala de seu interior, deixa nos acostamentos da estrada. Um aroma que pede para ser compreendido. Não é aroma novo, o cheiro lembra coisa velha, como a parte de baixo da almofada do sofá, ou o pano de chão que largado molhado ao lado da máquina de lavar na semana passada, já secou e ficou meio duro, ou então aquele odor de lista telefônica da Telesp, ou de camiseta de candidato no fundo da gaveta de baixo.

Não que estes cheiros sejam incomuns, mas a gente só costuma sentir quando chega perto de algo que já teve sua chance e em meio a velocidade com que as coisas acontecem hoje em dia, as coisas velhas rapidamente perdem espaço para as coisas novas. 

Dentro da van, seguia a discórdia, não que todos discordassem entre si, mas uma boa parcela a bordo discordava da atribuição mencionada, entretanto alguns refletiam: seria possível isso? Seria de fato possível que existisse uma relação entre a sexualidade de uma pessoa e seu nível de inteligência? Entre as mentes que matutavam esse assunto, uma se recordava dos relatos enviados à corte portuguesa quando da descoberta do Brasil, em que alguns deles falavam sobre as pessoas nuas e ignorantes que aqui habitavam. Naquela época ficava muito claro entre as mentes formadoras de opinião, que de fato os índios seriam menos inteligentes que os portugueses, quando não, bastante pouco dados ao trabalho. Viviam em choupanas improvisadas e mesmo aqueles tidos como detentores de posições de maior destaque hierárquico, sequer se preocupavam em utilizar roupas. De fato, os índios sequer possuíam alma, nem poderiam ser de fato, filhos de Deus, mas sim eram como almas perdidas que só poderiam encontrar a redenção se terminassem se convertendo em cristãos. Era muito claro que aquilo em que os europeus de Portugal acreditavam só poderia ser o certo, enquanto os índios, só poderiam estar errados. 

O mesmo podia ser dito a respeito dos escravos negros que foram trazidos ao Brasil a seguir. Os escravos, como diz o nome, eram uma mercadoria, propriedade de alguém que poderia dispor dele da maneira que desejasse. Esse dono de escravos tinha poder de vida e morte inclusive. Escravos não era diferentes de um boi ou um cavalo, talvez um pouco mais caros, talvez capazes de fazer tarefas mais complexas, mas o português europeu branco não acreditava que um escravo fosse capaz de competir com sua inteligência.

Naquela época, não existia o conhecimento de DNA que temos hoje e certamente aquelas pessoas não tinham como comprovar que tanto um índio quanto um negro eram de fato seres humanos absolutamente idênticos a um branco e era aqui que a van da discórdia ia ficando cada vez mais interessante, afinal, se dois seres humanos de cores diferentes são exatamente o mesmo ser humano, não é possível que a cor vá afetar o nível de inteligência daquelas pessoas. Da mesma maneira foi embaraçoso lembrar que até onde a tecnologia atual de escrutínio da estrutura genética, os homossexuais também possuem exatamente a mesma configuração de DNA dos heterossexuais e que uma pesquisa de 2019 feita com mais de meio milhão de pessoas sustenta que é virtualmente impossível predizer por sua informação genética, se aquela pessoa será homossexual ou heterossexual. Sendo assim, atribuir um nível mais baixo de inteligência aos homossexuais fica parecendo um arriscado passo na direção de um comportamento que objetiva desmerecer as diferenças entre os seres humanos e nesse caso, a orientação sexual.

Mas apesar de sacudir levemente, muito mais pela irregularidade do piso, a van da discórdia seguiu seu caminho até o destino e lá todos se despediram lembrando os agradáveis momentos que tinham passado juntos, fizeram promessas de novos encontros, novas festas, mais cerveja e alegria e cada um seguiu seu caminho. 

Mas no fundo do pensamento de alguns, algo havia mudado.  


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flores para uma pessoa viva

Poliana assistia, impassível, aos seus dias sendo arruinados, toda vez que se deitava para enfrentar o intervalo entre dormir e acordar. Tentava dormir girando sob as cobertas, enquanto as horas se arrastavam. Até que, de manhã, a luz do dia entrava pela janela. Colocava os pés para fora da cama e, antes mesmo de tocar o chão frio, sentia medo. Recolhia os pés num átimo, como se tivesse pisado em brasa. Mas era o frio que também queimava.

Seu amigo e colega de trabalho, Daniel, havia morrido meses antes. Ingênua vítima da pandemia, não durou dez dias — talvez tenham sido nove. Deixou a família em prantos, os amigos incrédulos, os colegas assustados. Seus planos desmoronaram enquanto sua vida se tornava estatística.

Entrar no ônibus era um desafio. Em meio àquela loucura — amigos morrendo, máscara, distanciamento — notícias horríveis escorriam da tela do celular. Sentada no canto do ônibus, calculava como chegaria ao trabalho ilesa. Levantava-se para apertar o botão do próximo ponto e planejava cuidadosamente como sair sem tocar nos canos, sem encostar naquelas superfícies impregnadas de suspeita e terror.

Na mesa do trabalho, diante do computador, organizava tudo meticulosamente. Revisava cada item, buscando a perfeição possível — embora duvidosa — que passava pela tela do PC. Ao redor, uma imperfeição irresponsável e incorrigível controlava o mundo e estendia seus dedos frios em sua direção. Sentia medo. Sentia-se oprimida.

Em fevereiro, alguém a empurrou no ponto de ônibus e arrancou a bolsa de suas mãos. Atônita, acompanhou com os olhos o rapaz correr pela rua movimentada, arriscando a vida entre os carros. Ela, que salvava moscas perdidas nas vidraças da janela, torceu, em silêncio, para que um carro o atingisse. Imaginou seu corpo voando, o tempo se arrastando, até ele desaparecer na esquina.

Então, seu companheiro também adoeceu. Isolou-se no quarto, enquanto ela, pela fresta da porta, empurrava o prato de macarrão. Depois, sentavam-se, cada um de um lado da madeira fria. Perdiam-se em tentativas de palavras, interrompidas por longos e sóbrios silêncios. Seus olhos corriam pelo corredor. Observava as sombras na parede da cozinha, como se tentassem invadir o apartamento. Encolhia os tornozelos debaixo de si e, no frio do piso, deixava as lágrimas molharem os joelhos. Enxugava o rosto com o dorso da mão, soltava um boa-noite, tocava a fórmica e cambaleava até a cama.

No dia seguinte, tudo recomeçava. Era hora de fazer algo.

Na primeira manhã fria de outono, decidiu abandonar o trabalho. Comunicou irredutível aos patrões, enquanto escutava as monótonas sugestões alternativas: férias, descanso, afastamento… Nada disso servia. Só a demissão traria o caráter definitivo que ela precisava impor a alguma parte de sua vida tão incerta.

Ao longo dos vinte dias seguintes, as horas se arrastaram enquanto organizava o trabalho e as tarefas que deixaria para os colegas. Criou tabelas, procedimentos — tudo com a costumeira perfeição que a resgatava das dúvidas do dia seguinte. Ao longo daqueles dias, consultou especialistas, aviou receitas, lidou com melhoras e recaídas. Recebeu o consolo dos amigos e familiares, mas seu olhar traduzia o desespero onde sua alma habitava.

Chegou o dia da despedida. Imaginei que seria bom fazer uma pequena homenagem. Com flores, talvez.

Procurei uma floricultura, sem sucesso, até me lembrar que, ali perto do cemitério, certamente haveria alguma. E, no fim das contas, flores de perto do cemitério são flores como quaisquer outras, que florescem e alegram o coração de qualquer cidadão.

Entrei. Uma moça silenciosa me atendeu.

— Bom dia. Gostaria de flores para uma pessoa viva.

— Claro — respondeu, apontando alguns arranjos na extremidade da loja.

Escolhi um bonito buquê. Enquanto ela o preparava, encontrei um grande cartão colorido.

Deixei o buquê no carro e fui ao escritório. Conversei em separado com cada colega, contei que aquele seria o último dia de Poliana e pedi que escrevessem algumas palavras de carinho no cartão.

Horas depois, o cartão voltou às minhas mãos. Abri-o e vi o papel coberto de palavras espremidas, tentando caber. Fui lendo. As primeiras lágrimas brotaram dos meus olhos. O amor contido naquelas palavras me comoveu. Pessoas que nunca imaginei que escreveriam algo, colocaram ali emoções sinceras, carinho, compreensão. Havia de fato amor no coração daqueles colegas.

Comovido, combinei com Benício: eu mesmo entregaria o presente em particular.

Entrei na sala de Poliana. Ela virou o olhar. Coloquei o buquê sobre a mesa. Tentei falar, mas os soluços vieram. Atirei-me em seus braços, em prantos. Não por perder uma secretária. Mas por ver minha amiga partir, em meio a tanta dor, sem que eu tivesse conseguido ajudá-la.

Sem saber direito o que fazer, ela me abraçou. E de repente, eu era consolado pela pessoa mais triste que eu conhecia. Era possível ser superado na tristeza? Existia uma tristeza definitiva? Quem seria, afinal, a pessoa mais triste do mundo? Como se mede a tristeza?

Essas perguntas não foram ditas, mas Poliana parecia percebê-las.

Foi então que eu disse:

— Me dá uma dessas pílulas que o psiquiatra te deu, vai?

Ela riu. Riu pela primeira vez em tanto tempo. E eu senti que ela poderia sair dali e, um dia, voltar refeita.

Entre soluços, insisti:

— Tá vendo como você ainda consegue rir? Você vai ficar bem, Poliana. Você consegue, menina!

Pela primeira vez, ela pareceu acreditar. E no final daquela tarde, com um discreto pedacinho de sorriso no canto do rosto — lindo e dolorido — partiu confiante de que teria, sim, uma chance.



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 Pode chorar sim Ontem chorei como há tempos não chorava… um berreiro forte, assim quase bonito, de ficar orgulhoso! Parabéns menino! Vejo q...