segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre carneiros e lobos

Em uma floresta distante, vivia uma matilha de lobos havia muitas gerações. Levavam uma vida tranquila, cuidavam da prole e passavam as tardes de verão preguiçosamente à sombra das árvores ou se recolhiam nas cavernas durante o inverno.


Quando a fome apertava, um ou dois saíam em busca de caça. Dividiam o alimento com todos. A vida dos lobos parecia simples. E, sob certo ponto de vista, boa.


Do outro lado do vale, numa fazenda de algodão, vivia um rebanho de carneiros. O dono da fazenda produzia lã e fios de algodão para a fábrica de roupas na periferia da cidade. O algodão brotava dos campos. A lã, dos carneiros.


Naquele tempo, ainda não existiam máquinas colheitadeiras. As mãos humanas faziam o serviço — mãos calejadas, feridas, dedos cortados pelas cápsulas ásperas que protegiam o algodão. Quanto mais algodão se colhia, mais se ganhava. Mas, ainda assim, o pagamento mal dava para encher o prato no jantar. Eram vidas duras, aquelas.


Entre os trabalhadores estava Heinz. Seu nome, que em alemão deriva de Heinrich — "rei" ou "dono do castelo" —, soava como uma ironia amarga. De rei, ele só tinha o nome. Tinha quatro filhos e sua esposa, Helga. Dela, sim, vinha algo da força das mulheres nórdicas, que cuidavam da casa, dos filhos, costuravam, plantavam e sustentavam a vida em meio às dificuldades.


Aos quase quarenta, Heinz já não tinha o vigor dos jovens — o que, na Europa do século XV, significava o prenúncio da velhice.


Pela manhã, cruzava o celeiro a caminho dos campos, passando ao lado do pasto dos carneiros. Observava-os, sempre organizados para a tosquia. A lã era retirada, enviada à fábrica. Depois, os carneiros pastavam tranquilos, confraternizavam, aprendiam, cuidavam uns dos outros.


Falavam de ciência e filosofia, debatiam o ontem, o hoje e o amanhã. Riam, choravam, condenavam os arrogantes, apoiavam os artistas e — como todo rebanho que se preze — temiam os lobos.


De tempos em tempos, um deles desaparecia, levado pela floresta. E, por mais que tentassem esquecer, o medo estava sempre ali, pastando junto.


Naquela tarde, exausto, Heinz largou o trabalho antes da hora. Entregou o pouco algodão que havia colhido, recebeu as moedas minguadas e voltou cabisbaixo para casa. Passou pelo pasto dos carneiros e, entre berros e agitação, viu o bando se reunir assustado. Do outro lado do campo, um lobo se aproximava. Correu, dispersou o grupo, abateu o mais fraco e arrastou o corpo sob o olhar apavorado dos demais.


Em casa, mostrou o que havia ganho. Helga, tomada pela frustração, amaldiçoou o marido e o expulsou, indignada. Heinz saiu envergonhado e sentou-se numa pedra do quintal. Olhou para o céu e, num sussurro, pediu ajuda a Deus.


As nuvens do entardecer se abriram. Uma luz intensa iluminou a montanha. Uma voz grave ecoou pelo vale:


— Vejo tua vida, Heinz. Vejo tua miséria, tua fadiga. Se a vida que tens não te serve, posso te transformar em outra criatura. Mas só há duas escolhas: um lobo ou um carneiro. Decide.


Heinz não hesitou. Fez sua escolha.


Naquela noite, sob o luar, entre os irmãos de matilha, com o gosto quente do sangue ainda nos dentes, Heinz celebrou sua nova existência:

inocente, porém inevitável; trágica, mas bela; cruel, mas deliciosa.
















sexta-feira, 24 de março de 2023

Água batida na pedra


Água batida na pedra 

(ou uma visão realista das dificuldades atravessadas pelas pessoas trans na contemporaneidade)


Muito perto de uma cachoeira encravada na escarpa da Serra do Mar, ali perto do pé da ferrovia que vai para Paranapiacaba, vive numa casinha simples um senhor chamado Seu Beraldo.

Com os dedos calejados, Seu Beraldo verte água de um jarro de barro numa surrada caneca de alumínio e me oferece:

— Essa água não é de torneira, não, viu? Essa é água da cachoeira… ela vem batida na pedra!

Diz isso com um ar professoral, de quem sabe das coisas.

Curioso, inclino a caneca contra os lábios e, enquanto bebo, observo os pequenos olhos de Seu Beraldo por cima do alumínio. A água é gelada, gostosa.

— Qual é a diferença, seu Beraldo? Água não é tudo água?

Ele ri e explica: é diferente, sim. A água da torneira escorre pacífica quando você abre o registro. Já a da cachoeira… pacífica, ela não tem nada. É uma água vivida, sofrida, “batida na pedra”.

— Isso deixa ela especial, sabe? Tá vendo que o gosto é diferente?

Dou outro gole e penso: talvez… está geladinha. É boa.

— Mas como é isso, Seu Beraldo? O que significa “batida na pedra”?

— É assim, rapaz. Pra essa água chegar aqui, dentro dessa caneca que ocê tá bebendo, ela não veio fácil, não. Sofreu todo tipo de ataque. Veio descendo o riacho, batendo nas pedras, enfrentou redemoinho, andou muitos quilômetros, se atirou de vários metros lá de cima, bateu com força no chão cheio de pedra do rio… É água transformada. Por isso, é especial. Precisa sentir o gosto dela… é água batida na pedra.

— Então me dá mais um pouco dessa água, seu Beraldo.

— Aproveita, rapaz, porque lá na cidade grande não tem dessa, não. Lá é só água de torneira ou de supermercado. Vou te dar um galão, leva um pouco pra sua casa.

Eu me rio por dentro e lógico, aceito o galão de “água batida na pedra”, mesmo sabendo que água é tudo água. Afinal, só porque aquela água tinha rolado a cachoeira, não haveria de fazer tanta diferença assim, acho...

Eu rio por dentro e, claro, aceito o galão da “água batida na pedra”. Mesmo sabendo que água é tudo água. Ou pelo menos, achava que era.


Anos depois, contratei pessoas trans para o quadro de colaboradores da empresa onde trabalho. E, ao conhecê-las um pouco melhor, lembrei de Seu Beraldo e da água batida na pedra.

Eu já tinha um amigo trans-masculino que trabalha em assistência pessoal e antes de fazer a contratação, perguntei a ele sua opinião. Para minha surpresa, ele me desaconselhou a seguir com o processo seletivo, me explicando que o risco de que tudo aquilo se transformasse em mais sofrimento era grande demais. Mas eu insisti e ele me disse: "aprenda mais sobre as transsexualidades, o mais que você puder. Se nada daquilo te assusta, então siga com teu projeto, mas seja especialmente cuidadoso". 

Eu segui em frente, me informe o máximo que pude e conversei especificamente sobre estes temas com aqueles candidatos. Resolvemos tentar.

Percebi que, de certo modo, pessoas trans são como água de cachoeira. Passaram por todo tipo de porrada na vida: muitas foram expulsas de casa, outras saíram por não se sentirem acolhidas (o que dá no mesmo). Tiveram portas batidas na cara, enfrentaram agressões, discriminação e, não raro, a morte. Sabemos como o psiquismo humano resiste às diferenças. A simples ideia de que alguém possa ser, ao mesmo tempo, feliz e diferente é o motor de muito preconceito. E, infelizmente, isso alimenta a violência.


Não por acaso, o Brasil lidera o triste ranking de assassinatos de pessoas trans no mundo. Essa informação já basta para que qualquer pessoa trans se sinta ameaçada apenas por existir.


Água é fluida, adapta-se onde estiver. Toma a forma do lago, do rio, da poça, da caneca. Evapora, foge da gravidade. Congela, vira pedra. Escapa pelos menores buracos, pode ser torcida, batida na pedra com a força que for.

Mas gente de carne e osso não é tão fluida assim. Pessoas batidas na pedra não saem ilesas do outro lado da cachoeira. As porradas deixam marcas, cicatrizes, traumas. Exigem um tanto de jogo de cintura, de coragem, de vontade de seguir vivendo.

É por isso que empresários e colegas de trabalho precisam compreender essa realidade. Precisam criar ambientes que recebam pessoas trans com sensibilidade — sabendo que a confiança, nesses casos, é construída devagar. Depois de tanta porrada, convenhamos, não é simples acreditar que o novo grupo não será apenas mais uma pedra no caminho.

A confiança que sentimos para fazer brincadeiras — às vezes preconceituosas, mesmo sem querer — precisa ser repensada. Por respeito, por humanidade, por desejo real de construir um lugar onde todos sejam, de fato, acolhidos como iguais.

A pessoa trans não está em busca de ser diferente. Muito pelo contrário. Ela só quer ser aceita como qualquer outra pessoa.

Porque, assim como a água continua sendo água depois de longamente batida na pedra, a pessoa trans só quer chegar do outro lado reconhecida e respeitada, simplesmente, como a pessoa que é.

Um dos colegas saiu da empresa, mas o outro segue conosco até hoje.




sábado, 24 de dezembro de 2022

Meu primeiro cadáver

Foi num feriado que viajei com meus avós para passar uns dias na casa da praia. O final de semana prolongado terminou gerando muito trânsito para descer até a Praia Grande pela via Anchieta ou pela Estrada Velha de Santos que ainda era aberta. Meu avô, com seu espírito aventureiro, resolveu fazer um "atalho" e desviar por Miracatu e Peruíbe... São cerca de 200 quilômetros a mais segundo o Google Maps, mas meu avô Chico, aquele senhor de pele escura, descendente dos mouros que ocuparam Portugal por quase 800 anos e de sua épica teimosia, achou que aquilo valia a pena. 

Saímos de São Paulo e fizemos o percurso até Miracatu pela “rodovia da morte”, a Régis Bittencourt. Na época, era pista simples e mão dupla, onde acidentes graves eram rotina.

Entramos então na rodovia Casemiro Teixeira, que liga Miracatu e Peruíbe, e seguimos pela pequena serra, percorrendo em velocidade baixa as sucessivas curvas mal projetadas.

Os pneus do Fusca vermelho emitiam pequenos guinchos a cada nova curva e eu balançava de um lado para outro no banco de trás, ora me apoiando num muro de travesseiros, ora na lateral áspera do fuscão. 

Foi quando meu avô reduziu a velocidade por conta de uma enorme fila de carros. O trânsito se arrastava e, entre protestos, algum tempo depois, descobrimos o motivo.

Numa daquelas curvas, um acidente espetacular se tornara a notícia da viagem. Outro Fusca, cujo motorista provavelmente não conseguiu fazer a curva, invadiu a contramão e colidiu de frente com um caminhão amarelo. A batida foi tão violenta que tirou a vida de todos no carro.

Passamos devagar, observando o caos à beira da estrada, e meu avô Chico parou no acostamento alguns metros adiante. Parar para olhar o acidente é prática comum — talvez pelo desejo mórbido de acumular assunto para a próxima conversa, ou pelo simples alívio de saber que não foi com a gente.

Meu avô saiu do carro. Eu me ajoelhei no banco traseiro, observando ele se afastar em direção ao aglomerado de policiais, destroços e fumaça. Curioso que era o velho Chico, logo estava inclinado sobre o carro fumegante, bisbilhotando em busca de “pistas”.

Um minuto depois, vejo meu avô retornar. Ele tamborilou o vidro traseiro do Fusca para chamar minha atenção. Encaixou a cara redonda na janela e disse: 

— Vem cá, Sivuquinha, o vovô vai te mostrar uma coisa.

Em obediência à autoridade do avô, saí do carro. Minha avó saiu primeiro para levantar o encosto do banco e eu saltei para a aspereza do asfalto. Curioso, segui meu avô até o local do acidente. 

Havia fumaça subindo da frente de um dos carros. As pessoas e os policiais se aglomeravam ao redor da cena, enquanto o teto amassado do Fusca azul calcinha me chamava a atenção. Era como se o teto estivesse tentando saltar por cima do restante do carro, fugindo do próprio desastre.

Aproximei-me um pouco mais e os detalhes daquela cena inesquecível começaram a se materializar diante dos meus olhos. Havia incontáveis cacos de vidro espalhados pelo chão, a lataria deformada e enrugada como papel amassado, uma das rodas torcida violentamente para a direita, lembrando um braço quebrado, dobrado para um lado impossível. No asfalto, repousavam um quepe azul, como os dos carteiros, e o pé solitário de um tamanco de madeira, desses que estavam na moda naquela época, em plenos anos 70. Estranhamente, não havia ninguém por perto. Imaginei que alguma senhora, vítima da tragédia, havia sido levada às pressas para o hospital na ambulância dos vigilantes rodoviários.

Foi então, no calor da tarde, que meus olhos de menino enxergaram, entre a lataria retorcida, algo que parecia um homem dormindo. Mas aquilo não era sono.

Lá estava meu primeiro cadáver de verdade. 

O motorista, provavelmente. Oculto atrás da porta semiaberta, um senhor de poucos cabelos brancos, bigodes enrolados cobrindo o lábio superior e parte da boca, escancarada num enorme susto. Os olhos arregalados, parados, miravam o horizonte por cima do meu ombro. Um olhar triste, suplicante. Sentado ao volante, o peito esmagado pelo volante, respingado de sangue. O braço esquerdo caía inerte, vestido com blusa cinza de lã fina. As pernas, encolhidas, desapareciam sob o painel.

Fiquei ali quase paralizado, Observava a cena como se o tempo tivesse começado a andar mais lentamente, como se não houvesse mais ninguém em volta e todos os ruídos da tarde tivessem momentaneamente cessado. Por um instante, senti o mormaço dos raios do sol esquentar meu braço, até que de repente, algo pareceu se mexer.

Os olhos do morto se fecharam numa piscada repentina e, num segundo, abriram-se de novo, assustados. Voltaram-se diretamente para o meu rosto. A boca se fechou por um instante.

— O que você está olhando, moleque? Nunca viu não?

Aterrorizado, recuei um passo no cascalho da calçada. Um arrepio percorreu minha espinha. Mas o fascínio de ouvir aquela voz me atraiu de volta.

— Eu nunca tinha visto um homem morto antes...

— Estou morto, mas não sou atração de circo, vá arrumar alguma coisa para fazer que eu estou é bem ocupado aqui, moleque. Como você se chama?

— S... Silvio...

— Então Silvio, tá vendo onde eu fui me meter? Olha só a confusão que isso tudo deu, veja se você se liga, viu? Não vai fazer uma barbaridade dessas quando aprender a dirigir, olha como eu fiquei.

— Mas o caminhão...

— O caminhão, o caminhão... Ele não teve culpa, moleque! Eu estava correndo muito e o Fusca não faz curva, eu passei reto, não deu nem tempo.

— Não teve como desviar?

— Quando eu vi já era...

— Não tem mais jeito?

— E mesmo que tivesse? Minha mulher morreu. Nem viu nada, tava dormindo. Agora tá em algum lugar no céu, ou sei lá onde, tentando entender como foi parar lá. Levaram ela no rabecão. Culpa minha.

— Mas você está aqui falando comigo...

— Isso não me serve de nada. Daqui a pouco me levam também. Necrotério. Vou estragar a vida da minha família toda. Vai ser choradeira. Minha mulher era avó, igual tua avó. Nossos netos vão chorar. Meus filhos, meus amigos do futebol de botão. Vai ser uma bosta.

— Nossa, que ruim isso...

— É horrível e não tem mais volta. A gente não dura pra sempre, né? Tem gente que acha que sim, que é indestrutível, o mais esperto do mundo… Engano puro. Um segundo a mais de erro… tá fodido. Então, se liga, Silvio. Te chamam de Sivuca, né?

— É sim...

— Então, Sivuquinha, não faz uma cagada dessas, hein? Aprende a dirigir direito. Presta atenção nas curvas. E quando inventarem um telefone que dá pra levar no bolso, não fica teclando enquanto dirige. Vai prometer isso, moleque?

— Tá bom...

— Tá bom o que? Vai fazer o que eu disse? Presta atenção e me responde, moleque!!

— Eu vou prestar atenção... eu... eu prometo prestar atenção!

Nesse instante, uma mão tocou meu ombro. Soltei um grito. Era meu avô, ofuscado pelo brilho do sol, me puxando de volta para o carro.

— Vamo Sivuquinha, vamos que tua avó tá esperando.

Hesitei, mas fui. Antes de entrar no carro, virei o corpo e olhei uma última vez para o homem morto. Lá estava ele, imóvel, perdido no horizonte. Talvez, só talvez, com um olhar um pouco menos desesperado. Um pouco menos triste. Como quem, pela primeira vez na vida… fez algo de útil.

Esse texto é um fragmento adaptado para a primeira pessoa, de meu novo livro "Dois carecas, um bebê", que quem sabe um dia, estará a venda.

Silvio Ambrosini


domingo, 9 de outubro de 2022

Pedalando até Santos pra filar boia na mamãe

 


Saí cedo de casa pra filar boia na mamãe, peguei a bicicleta e me joguei na estrada, ai que medo, abre o olho, cuidado com os assaltantes, cuidado com os automóveis, mas também toma cuidado com a vida que passa e precisa ser vivida, porque é vida que passa rápido igual bonde que só se pega andando e tem que pular quando chegar a estação, porque o bonde, assim como a vida, não para, ela vai passando.

Olhei para baixo e vi meus pés pedalando, pedalando quase sem parar. O asfalto passa rápido, a ponte e os matos, os pássaros que fogem e gritam nos raios do sol que entram de lado ainda porque é tão cedo de manhãzinha.
Tenho vontade de terminar a subida para alcançar a descida, e descendo, olho a próxima subida que vai crescendo.

Os carros passam zunindo na estrada, todos com pressa ou sem ela, mas riscando a estrada de branco, prata e preto, as vezes um vermelho, um azul, uma moto barulhenta, um triciclo com uma caveira, um caminhão perdido na paisagem, as famílias com as crianças coladas no vidro, as moças com os pés sobre o painel, os homens com o cigarro do lado de fora da janela.

Em minha bicicleta vejo o mundo andando rápido e meus pés que rodam nos pedais. E chega a polícia rodoviária e lá estão os guardas rodoviários e olho para o outro lado fingindo que não vi. Bicicleta é proibido, mas eles não ligam, porque ciclista é tudo de bom.

Na primeira curva está o sujeito, chego perto, tudo bem? Vai para a praia? Como tu te chama? Marcos? Eu sou Sivuca. É um prazer! Vamos juntos, a gente se ajuda! E seguimos alinhados, brincando de pequenas ultrapassagens, testando a pressa que nenhum dos dois tem.

Juntos, passamos por baixo da estrada, olha a mata, os pássaros, os carros que às vezes aparecem entre as árvores e os outros ciclistas que acenam sorrindo. Rápido nas ladeiras, devagar nas pirambas. Parada na cachoeira, cuecas, a água gelada, fotos, seguimos em frente, demos dicas para os rapazes na dúvida, pedimos dicas aos rapazes com certeza.

Erramos uma curva, acertamos a outra, voltamos, carregamos as bikes nas costas, encontramos a rodovia e aceleramos o passo, cruzamos as faixas brincando de automóvel. Essa é aquela parte da viagem que a gente não conta pra ninguém... Olha aqueles dois malucos entre os carros... E no fim deu tudo certo, quantos quilômetros? Setenta e cinco! Amanhã tem mais! Obrigado Marcos, pela companhia!

Pedal é assim, é companhia de amigo que aparece porque todos querem a mesma coisa, pedalar e sentir a vida que está passando.

sexta-feira, 29 de abril de 2022

O homem invisível


O homem invisível troca a fralda do filho. Imóvel na cama, ele apenas observa. Com seus olhos tão vivos, corre por tudo ao redor, parece que tenta buscar vida em todas as outras partes do seu corpo. Este par de olhos em busca de vida, se esforça para concentrar toda vida que lhes é possível, toda vida que lhes é devida. 

E o filho observa. Sente, pensa, opina, envia suas mensagens. Claro, a tecnologia ajuda, mas o homem invisível aprendeu a observar com uma atenção especial, onde é capaz de sentir, ouvir, receber suas mensagens. 

E lá vem a mãe correndo, Ela abraça, mima, protege, alimenta, escuta e fala, descreve tudo ao redor para que seu filho escute suas palavras dando nome a todas as coisas, dando contorno ao seu pequeno mundo. O filho  responde o sorriso com seu olhos cheios de vida. Vida que esbanja e a mãe sabe disso, porque a mãe sente, a mãe ouve, a mãe ama.

Mas o filho está preocupado, tem medo de ficar sem respirar, então ele pisca o olho e o homem invisível verifica a saturação. Está baixa, então olha para o filho e seus olhos se encontram. De um jeito que não entendi ainda, através do olhar ele entende que o filho tem dificuldade para respirar. E o homem invisível faz o procedimento. Limpa a traqueia, aspira, aspira e aspira. E então os olhos do filho se encontram com seus olhos e no seu costumeiro jeito de olhar, ele diz que já se sente melhor. A tecnologia ajuda, o oxímetro confirma e o homem invisível relaxa um pouco e a mãe descansa os ombros e o filho olha para ambos sorri com os olhos.

Sabe? O filho tem medo, mas não de monstros, não dos lobisomens que uivam no quintal, nem da mula sem cabeça que corre entre as plantas do jardim e nem do monstro que mora embaixo da cama. O medo que o filho sente é de ficar sozinho, de não ter mais olhos para olhar, olhares para trocar, pele para sentir. 

Em seus sonhos, flutua sobre a cama, levanta voo e sai pela janela, flutuando sozinho pelas ruas do bairro. Penetra na escuridão do bosque da praça e escuta o uivo do lobisomem. Finge que tem o medo que ele não tem. Olha para os braços e vê os pelos eriçados, mas não é medo do lobisomem. Sente um arrepio na espinha que pouco sente, e lá está a mula sem cabeça com suas labaredas e seu grito de relincho e ele finge que tem medo também, mas não é medo da mula que ele tem. E continua sua jornada entre árvores até que sai pela rua sem medo. Ele sabe voar e sente o vento no rosto, e vai subindo pelo céu vendo sua casa lá embaixo e quando chega perto das nuvens, sente um tipo de pequena solidão. Mas mesmo assim fica feliz porque pode escolher para onde vai, escolher seu caminho, pode flutuar como quer e voar por onde quiser. Então ele sai do bosque, volta para o bairro e  lá está sua casa no fim da rua. Entra pela janela do quarto e vê os lençóis e os aparelhos com suas luzes  piscando e seus foles ocupados em inflar e desinflar. E os fios ligados e a cama tranquila e acolhedora, nem liga para o monstro que mora debaixo dela. Ele finge que tem medo porque criança sempre tem medo de monstro. Mas não é do monstro o medo que ele tem. É medo de ficar sozinho e parar de respirar e não ter ninguém para ajudar.


Então, a mãe acorda assustada. Escutou um som. Foi a janela que se fechou? O alarme disparou? Os aparelhos biparam? Foi o filho que se engasgou? Preocupada, a mãe sai da cama, e corre até o quarto do filho em busca daquele olhar. Encontra aqueles olhos que lhe dizem para se tranquilizar. Foi só um passeio, mãe... eu saí pela janela pra voar um pouco, para sentir o vento no rosto e subir até as nuvens, estava tentando sentir só um pouco uma  tal pequena solidão, mas não precisa se preocupar. E a mãe solta uma lágrima, é só uma, filho. Eu preciso deixar escapar. 
Mãe é assim, mãe pode chorar, mãe pode até quebrar, mãe precisa deixar escapar. Então o homem invisível, com o lado da mão, alcança a bochecha molhada e as seca. E a mãe fecha os olhos e mergulha no abraço do homem invisível. 
E o homem invisível também quer chorar, mas homem é assim, não pode chorar, não pode reclamar, não pode, não pode, não pode.   

E o homem invisível volta a contar histórias, a conferir os aparelhos e levanta os olhos para encontrar naquele olhar do filho, toda a vida que esse pedaço de vida tenta sempre encontrar. E naqueles olhos tão cheios de vida, onde vê o esforço para olhar, encontra a força para contar histórias sem parar. E o filho também tem histórias para contar, quer contar o sonho da noite passada, quando flutuou na floresta e escutou o uivo do lobisomem e viu as labaredas da mula sem cabeça com seu grito horroroso, mas nada disso deu medo. E quando voltou para casa e sabia que debaixo da cama, o mostro de debaixo da cama se escondia, mas ele também não tinha medo. Só de uma coisa ele tinha medo, era de parar de respirar.


Era domingo, final do dia, o homem invisível se sentou olhando o horizonte enquanto o sol mergulhava entre os prédios. Sentiu vontade de chorar, mas lembrou que não podia,  pensou nos vários anos que haviam passado enquanto aqueles olhos furtavam seu olhar e tentou se lembrar de outros tempos, tempos em que podia chorar.

Lembrou de sua avó que o levava visitar as crianças e as velhinhas da casa de auxílio. Muitas nem conseguiam andar, ficavam deitadas sem conseguir se levantar. Havia um menino que não tinha ambos os braços, mas tinha pernas fortes, boas de correr. E o homem invisível que mesmo tão novinho, conseguia perceber que dentro do olhar do menino sem braços, não havia medo de monstros, não havia medo naquele olhar. E ele brincava com o menino, corriam pelo pátio, e ele que era o homem invisível, tinha medo de que o menino caísse. Se ele cair, como vai se apoiar? Então ele tentava correr mais devagar, mas o menino não ligava, corria o mais rápido que podia até cansar e o homem invisível corria desajeitado atrás dele e quando finalmente parava, ele finalmente podia encontrar um pouco daquele olhar.

A avó chamava o homem invisível para ajudar com as pessoas que andavam em suas cadeiras de rodas e ele, que tão pequeno, mais atrapalhava do que ajudava, não se cansava de empurrar. Junto com sua avó, o homem invisível levava aquelas velhinhas ladeira acima para passear. Quando terminava o passeio, era preciso descer a ladeira, e o homem invisível tinha medo de que a avó não conseguisse segurar e corria ajudar. E o homem invisível espalhava seu olhar e via a beleza em tudo ao seu redor, nas formas, nas cores e desenhos da igreja, nos movimentos das pessoas, mas principalmente naquilo que elas tinham de mais precioso, a profundidade de seu olhar.

O homem invisível viveu suas aventuras, suas decisões, escolhas, erros e acertos, idas e vindas. Sentiu o vento bater em seu rosto e um dia, perto das nuvens, sentiu uma pequena solidão, mas ficou feliz em poder escolher para onde ir. 

Um dia o homem invisível encontro outro par de olhos. Trocaram olhares e sentiram que podiam continuar assim. Se olharam, foram morar juntos e se amaram. Então veio o filho e eles também o abraçaram e o amaram. E então num dia de manhã, era bem cedo, perceberam que naquele olhar não havia medo de monstro, de lobisomem, de mula sem cabeça. Só o medo de não ter ninguém para amar.  

E abraçaram aquele filho e em seus olhos se perderam em seu olhar, porque viam dentro daquele olhar  que ele era o lugar onde existia a mais essencial das coisas: o saber amar.


sábado, 23 de abril de 2022

Acabando com "isso aí..."

Era um país que já vinha calejado, o ranço burguês contra o sucesso do operário que virara presidente, já irritava há tempos, onde já se viu um parvo presidente? Que direito tem ele, vindo do encardido da graxa das máquinas, sentar-se à cadeira máxima do Planalto? Como se atreve a gastar tanta energia com a gentalha do nordeste? O novo presidente era o símbolo de um levante indesejado, o triunfo do proletário, a derrota da burguesia, era campanha Marxista deslavada, desavergonhada. Muita gente não gostou nada daquilo, apesar do avanço do país, o velho inconformismo falava mais alto.

O operário soube orquestrar relações, foi eleito duas vezes e suas conquistas foram derradeiras para garantir que pela primeira vez na história do país uma mulher se tornasse Presidente da República. Porém com ela, as coisas não foram tão fáceis, sua habilidade política coincidia com seu baixo nível de paciência e ela não custava muito para botar senador corrupto pra fora do gabinete. Uma mulher que fora torturada pelo sistema militar, tinha muito pouca paciência para lidar com os filhos desse mesmo sistema, herdeiros da ditadura, netos do império e da escravidão, filhos de tempos em que lugar de preto era na senzala e em nenhum outro lugar, tempos em que lugar de operário era o chão da fábrica, tempos em que a empregada não andava de avião, tempos em que o filho dela, nascido sabe-se lá de qual pai, não fazia faculdade, tempos em que favelada não vendia discos muito menos virava empresária, bons tempos em que lugar de mulher era na cozinha, com a barriga no fogão, e que homem de verdade não tinha isso aí de viadagem, e se tivesse, era doença fácil de curar na porrada, na facada e no tiro. Naquele tempo, não tinha mimimi, homem não se vestia de mulherzinha, eram tempos em que preto, se não cagava na entrada, cagava na saída... Preto apanhava primeiro, porque preto só queria roubar seu dinheiro, e bandido bom era bandido morto, e direitos humanos defende criminoso e mulher feia não merece ser estuprada, e torturador da ditadura merecia busto em praça e nome de rua.

A mulher presidenta tinha que cair e não foi difícil encontrar uma desculpa para tirá-la do cargo, a tal da pedalada cinicamente serviu para o propósito.

As denúncias de corrupção funcionaram como uma conveniente desculpa para um grupo de pessoas que odiava pobre, poder se voltar contra eles. A classe média que vivia cercada pelos muros do condomínio, comendo picanha e tomando cerveja de grife não podia ser simplesmente invadida por aquela gente. 

Ela caiu em meio a um show de horrores em seu lugar o decrépito vice-presidente assumiu o cargo.

Na época, o discurso era cheio de pompa, um padrão empolado que irritava e cansava especialmente a classe média. Foi então que surgiu um sujeito que tinha uma fala desbocada, parecida com a de nossos tios quando discutiam futebol ou jogavam truco, um jeito suburbano e grosseiro de expressar, ao estilo churrasco de sábado com cerveja além da conta, vocabulário de briga de trânsito, de discussão em portaria de clube, de barraca de feira, o clássico barraco baixaria que fazia parte do dia a dia de muitos brasileiros. No discurso do impeachment, homenageou um legítimo torturador, justamente aquele que havia sido responsável pelas torturas que durante o regime militar foram impostas inclusive à própria presidenta. As pessoas ouviram aquelas palavras e ficaram imersas em um letárgico, dolorido e assustador silêncio. Nascia ali um vírus, uma doença que levaria um bom tempo para ser curada 

E os cidadãos de bem, detentores do estandarte da família tradicional brasileira, adoraram. Finalmente alguém que não tinha frescura, não tinha o tal mimimi, que falava de porrada, que criticava a viadagem, que mandava mulher calar a boca, capaz de dizer na cara de uma deputada, que ela não servia nem para ser estuprada. E aquelas palavras foram normalizadas e isso causou arrepios em muita gente.

Assistimos atônitos o despertar de sentimentos represados e reprimidos e desesperados acompanhamos o resultado final das eleições, aquele homem grosseiro, que fugira de todos os debates e entrevistas, simulou uma facada que despertou uma simpatia inédita em uma parte indecisa da população, justamente aquelas pessoas que mergulhadas em uma história de paternalismo, sentiam falta de um ícone, de um ídolo para chamar de seu. Deu certo, junto com a desmoralização do partido dos trabalhadores, aquelas pessoas acreditaram que o método porrada era a solução. Entre eles, muitos se sentiram identificados com aquele comportamento preconceituoso, machista, homofóbico, xenófobo, misógino, com sua arrogância lasciva. Eram pessoas que tinham sido forçadas a se calar durante os anos anteriores, pelo avanço do politicamente correto. Agora, finalmente aparecia alguém para lhes dar o aval que elas desejavam, e era justamente o presidente da república. 

Nada do que veio a seguir nos impressionou mais do que envergonhou. O novo presidente revelava a cada palavra, a cada decisão, um pouco do que vinha: colocar em prática sua política fascista até as últimas consequências. Suas gafes em todas as áreas eram constantes, sua falta de habilidade política ultrapassava o grotesco enquanto isso, um estranho silêncio emanava da imprensa. 

É claro que muito foi dito contra ele, mas considerando a situação, esperava-se muito mais. Sua retórica continuou fascinando uma pequena multidão que foi gradativamente percebendo a falácia de tudo aquilo, mas um pequeno grupo muito fiel, que se identificava com a essência daquele pensamento, permaneceu agitando suas bandeirinhas verde-amarelas até o final.

Os dias iam virando história, certamente um dia os filhos de nossos filhos abririam o livro de história do Brasil para saber sobre o tempo em que nosso país se transformou em uma nova ditadura fascista sob o comando de um sociopata chamado Jair Messias Bolsonaro.


terça-feira, 29 de março de 2022

A panela de ovos



Lá vem ela descendo a avenida, toda de branco, com seu avental esvoaçando na brisa da manhã. E por trás das duras lentes, aqueles olhos que tudo veem e experimentam o mundo que pulsa sem parar ao seu redor. Ela vê as pessoas que caminham rápido, as que se detém nas vitrines, as que mergulham no celular, as que procuram pássaros pelos fios dos postes, as que olham fixo para a frente, as que olham sempre ao seu redor, as que olham e também as que querem ser olhadas. Seus sapatos ecoam tons nas pedras das calçadas e o ar que se move e os cheiros que desfilam café, frituras, incógnitos perfumes, flagrantes suores, acres e doces, os que chamam e os que repelem. E mete a mão no bolso do jaleco e lhe saem os dedos brancos de giz, o mesmo giz de professora no mesmo branco de giz que ficou nas letras da última tarefa de português. E seus alunos cuidadosos a copiaram e seus cadernos foram para as suas bolsas e em seus finais de semana produziram mais uma composição para na segunda feira, entregar a folha nas mãos da professora. Ela que, com seu saber ensina, com seu amor contagia, com sua disposição inspira seres orgulhosos a conquistarem seus lugares, dedicarem-se a aprender o alfabeto, gente simples, moradores de rua, pessoas a quem lhes foi negado a aprender da sua própria língua. Poder entregar aquilo que a vida lhe ensinou para aquelas pessoas parece completar todas as lacunas de seu dia.


E então vem o ponto de ônibus e a banca de jornal e as pessoas que desviam e as que não desviam também, aquelas que vão, aquelas que vêm. E na porta da loja popular, um homem alcança seu olhar. Nas cores desbotadas de suas roupas, nas sandálias de dedo, em seu mover cauteloso, em sua mão, um punhado de moedas de diferentes cores e tamanhos. Dona me ajuda por favor, a completar o que me falta para que eu possa comprar aquela panela. E aponta com o dedo da outra mão enquanto traz para o peito a mão das moedas, fechada em punho protegendo o que é seu. Não falta muito, se eu conseguir, até o final do dia vou poder fritar uns ovos nela. E do outro lado do vidro, a pequena panela com a etiqueta pendurada dizia dezessete reais, a panela da loja popular. E ela não pensou muito e entrou e comprou a pequena panela e a entregou na mão do homem, e ele sem acreditar questionou, mas dona, essa panela é para mim? E ela disse que sim, e que usasse as moedas para comprar os ovos, e ele então agradeceu e tremia a voz, e disse que fazia tempo que ele não via o Papai Noel... e ela brincou, Mamãe Noel, talvez... E ele brincou com as moças do caixa, que pouco lhe deram atenção, mas mesmo assim ele disse: Nessa panela, vou fritar meus ovos e vou fritar minha pele de frango, vocês já provaram que delícia que é a pele de frango com ovos? E a alegria do homem era flagrante e mesmo sem enxergar muito bem, pelo pouco que as lentes de seus óculos lhe permitiam ver, ela sentiu, mais que viu, a alegria do homem que se materializara e então o tempo andou mais devagar por um instante e o ponteiro do relógio tentou não avançar para os próximos segundos.


E ela então ela voltou para a rua e enquanto seu avental voltava a voar na brisa da manhã e as pessoas voltavam a caminhar e a brisa também voltava a soprar seu rosto, ela se lembrou de como se sentia completa em poder fazer algo por alguém, se lembrou de como era fácil encontrar felicidade assim, tão de repente. Ela que poderia ficar feliz com novos azulejos para a cozinha ou o piso do apartamento ou com qualquer coisa que ganhasse de alguém. Mas a felicidade estava lá, não no que ela recebia, mas no que ela era capaz de entregar.



Este texto foi baseado em uma história contada por Marluci Fialho.


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quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

A Van da Discórdia

Foi ainda outro dia, muito recentemente, tão recentemente que ainda molha o dedo de tinta. Deveria haver um aviso de “Tinta Fresca”... mas aí... já ia aparecer um pra questionar, né? Se a tinta é fresca, deveria ser pink, porque é a cor de “frescura”, então meninos de azul, meninas de rosa e coisas frescas de pink. Mas a coisa é que essa tinta é feita de todas as cores porque essas coisas não têm cor, só têm rancor, só têm dor e ainda lhes faltam uma boa dose de amor. 


Mas não foi nada tão grave não, foi só uma conversa, daquelas de van, de gente que não tem para onde ir, está confinado dentro do cubo metálico. Não teve soco na cara, não teve insulto direto, não teve assassinato, e olha que essas coisas acontecem a toda hora, todo dia em todo lugar. Aqui no Brasil, no país que mais mata bicha no mundo, acontece mais fácil que vento leste.

Mas como dessa vez foi só uma conversa, então me conta o amigo que se queixou com o grupo, contando que ele estava chateado, pois ele, que só queria conversar, bater um papo assim, jogar conversa fora, mas no final a conversa terminou em tumulto, virou a “Van da Discórdia” como ele mesmo contou. O caso é que vinham todos juntos, justamente dentro da tal van e voltavam de um lugar, com sérios planos de ir para outro. 

Foi mesmo bom que estivessem voltando, assim o episódio da van da discórdia ficou só para a volta, quando todos já tinham se divertido bastante, esgotado todas as possibilidades de risos e brincadeiras, de festa e diversão. Se tivesse sido na ida, aí teria complicado, pois discórdia na ida costuma atrapalhar o evento. 

Então era uma daquelas horas em que o povo já tinha se divertido além das pencas, e alguém chega à brilhante conclusão que não faz sentido a essa vida possa ser mesmo tão legal assim gratuitamente. Entredentes, o sujeito pensa que para levar uma vida tão boa, ele só pode ter algo de especial. Afinal, privilégios e mordomias não são coisa para se entregar para qualquer um, é preciso ter um diferencial, uma indicação, é preciso não ser apenas mais um na multidão. É nessa hora, quando aparece um sujeito que sente que merece algo mais que a simples multidão, que umas coisas doidas começam a acontecer dentro dele. Dá até para descrever, um tipo de força que aparece dentro do peito, um tipo de poder, como de Superman hétero, uma força de eu posso, você não pode, eu tenho, você não tem, eu mereço esse lugar na van mais que você, Rosa Parks (mulher negra símbolo do movimento segregacionista norte-americano, a que em 1913, se recusou a dar o lugar dela para um branco no ônibus, mesmo sendo o que dizia a lei naquela época).  

É assim que acontece, é assim que termina, com o sujeito fazendo sua descoberta interna onde ele não é só mais uma pessoa no mundo, mas um especial do tipo Dias Paes, ou um Especial Borba Gato, como o da estátua escravagista, ou um Especial Plínio Salgado, da escola fascista brasileira, talvez um Especial Cabral, do cara que descobriu uma terra que já tinha dono ou um especial Messias B., aquele sujeito lá no palácio que o Niemeyer construiu, enfim especial assim Especial com E maiúsculo.

Então, sem mais desvios de assunto e conduta, voltemos à van... a van da discórdia, lembra? E em meio as reflexões filosóficas que costumam tomar espaço no ócio das longas quilometragens que a estrada proporciona, um dos colegas, despretensiosamente faz um comentário a respeito de outro colega que não estava presente: “Ele é muito inteligente, apesar de ser gay”. Pelo menos cinco ou seis pares de olhos se arregalaram nessa hora e o dono de um par deles, que não se aguenta debaixo de suas cabeleiras, movimenta o indicador como ponteiros do relógio que urgem para que o tempo pare e manda um “Alto lá... o senhor por acaso está insinuando que basicamente gays não são inteligentes e esse nosso amigo conseguiu romper alguma espécie de conexão invisível que mantém a população LGBTQI+ dentro dos limites da estupidez?”. Naturalmente, a resposta vem precedida do clássico sufixo  “Veja bem” e completa: “não foi isso que eu quis dizer...”... Não quis, mas disse, bem parecido com o sujeito que atropelou os ciclistas com suas bicicletas na beira da estrada, também disse que não queria fazer aquilo, mas pelo que entendi, apesar do fato consumado do sujeito ser gay – tom de lástima, lamento ou rejeição – ele até que é surpreendentemente inteligente. 

Nesse ponto, os ânimos se enriquecem e uma argumentação inflamada segue viva, apesar da pretensa falta de inteligência apontada na direção da população gay e a van segue incólume por seu caminho pelo asfalto quente. Mas, por onde passa, cabeças se viram em sua direção, possivelmente para tentar esclarecer a curiosidade que o aroma que exala de seu interior, deixa nos acostamentos da estrada. Um aroma que pede para ser compreendido. Não é aroma novo, o cheiro lembra coisa velha, como a parte de baixo da almofada do sofá, ou o pano de chão que largado molhado ao lado da máquina de lavar na semana passada, já secou e ficou meio duro, ou então aquele odor de lista telefônica da Telesp, ou de camiseta de candidato no fundo da gaveta de baixo.

Não que estes cheiros sejam incomuns, mas a gente só costuma sentir quando chega perto de algo que já teve sua chance e em meio a velocidade com que as coisas acontecem hoje em dia, as coisas velhas rapidamente perdem espaço para as coisas novas. 

Dentro da van, seguia a discórdia, não que todos discordassem entre si, mas uma boa parcela a bordo discordava da atribuição mencionada, entretanto alguns refletiam: seria possível isso? Seria de fato possível que existisse uma relação entre a sexualidade de uma pessoa e seu nível de inteligência? Entre as mentes que matutavam esse assunto, uma se recordava dos relatos enviados à corte portuguesa quando da descoberta do Brasil, em que alguns deles falavam sobre as pessoas nuas e ignorantes que aqui habitavam. Naquela época ficava muito claro entre as mentes formadoras de opinião, que de fato os índios seriam menos inteligentes que os portugueses, quando não, bastante pouco dados ao trabalho. Viviam em choupanas improvisadas e mesmo aqueles tidos como detentores de posições de maior destaque hierárquico, sequer se preocupavam em utilizar roupas. De fato, os índios sequer possuíam alma, nem poderiam ser de fato, filhos de Deus, mas sim eram como almas perdidas que só poderiam encontrar a redenção se terminassem se convertendo em cristãos. Era muito claro que aquilo em que os europeus de Portugal acreditavam só poderia ser o certo, enquanto os índios, só poderiam estar errados. 

O mesmo podia ser dito a respeito dos escravos negros que foram trazidos ao Brasil a seguir. Os escravos, como diz o nome, eram uma mercadoria, propriedade de alguém que poderia dispor dele da maneira que desejasse. Esse dono de escravos tinha poder de vida e morte inclusive. Escravos não era diferentes de um boi ou um cavalo, talvez um pouco mais caros, talvez capazes de fazer tarefas mais complexas, mas o português europeu branco não acreditava que um escravo fosse capaz de competir com sua inteligência.

Naquela época, não existia o conhecimento de DNA que temos hoje e certamente aquelas pessoas não tinham como comprovar que tanto um índio quanto um negro eram de fato seres humanos absolutamente idênticos a um branco e era aqui que a van da discórdia ia ficando cada vez mais interessante, afinal, se dois seres humanos de cores diferentes são exatamente o mesmo ser humano, não é possível que a cor vá afetar o nível de inteligência daquelas pessoas. Da mesma maneira foi embaraçoso lembrar que até onde a tecnologia atual de escrutínio da estrutura genética, os homossexuais também possuem exatamente a mesma configuração de DNA dos heterossexuais e que uma pesquisa de 2019 feita com mais de meio milhão de pessoas sustenta que é virtualmente impossível predizer por sua informação genética, se aquela pessoa será homossexual ou heterossexual. Sendo assim, atribuir um nível mais baixo de inteligência aos homossexuais fica parecendo um arriscado passo na direção de um comportamento que objetiva desmerecer as diferenças entre os seres humanos e nesse caso, a orientação sexual.

Mas apesar de sacudir levemente, muito mais pela irregularidade do piso, a van da discórdia seguiu seu caminho até o destino e lá todos se despediram lembrando os agradáveis momentos que tinham passado juntos, fizeram promessas de novos encontros, novas festas, mais cerveja e alegria e cada um seguiu seu caminho. 

Mas no fundo do pensamento de alguns, algo havia mudado.  


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Flores para uma pessoa viva

Poliana assistia, impassível, aos seus dias sendo arruinados, toda vez que se deitava para enfrentar o intervalo entre dormir e acordar. Tentava dormir girando sob as cobertas, enquanto as horas se arrastavam. Até que, de manhã, a luz do dia entrava pela janela. Colocava os pés para fora da cama e, antes mesmo de tocar o chão frio, sentia medo. Recolhia os pés num átimo, como se tivesse pisado em brasa. Mas era o frio que também queimava.

Seu amigo e colega de trabalho, Daniel, havia morrido meses antes. Ingênua vítima da pandemia, não durou dez dias — talvez tenham sido nove. Deixou a família em prantos, os amigos incrédulos, os colegas assustados. Seus planos desmoronaram enquanto sua vida se tornava estatística.

Entrar no ônibus era um desafio. Em meio àquela loucura — amigos morrendo, máscara, distanciamento — notícias horríveis escorriam da tela do celular. Sentada no canto do ônibus, calculava como chegaria ao trabalho ilesa. Levantava-se para apertar o botão do próximo ponto e planejava cuidadosamente como sair sem tocar nos canos, sem encostar naquelas superfícies impregnadas de suspeita e terror.

Na mesa do trabalho, diante do computador, organizava tudo meticulosamente. Revisava cada item, buscando a perfeição possível — embora duvidosa — que passava pela tela do PC. Ao redor, uma imperfeição irresponsável e incorrigível controlava o mundo e estendia seus dedos frios em sua direção. Sentia medo. Sentia-se oprimida.

Em fevereiro, alguém a empurrou no ponto de ônibus e arrancou a bolsa de suas mãos. Atônita, acompanhou com os olhos o rapaz correr pela rua movimentada, arriscando a vida entre os carros. Ela, que salvava moscas perdidas nas vidraças da janela, torceu, em silêncio, para que um carro o atingisse. Imaginou seu corpo voando, o tempo se arrastando, até ele desaparecer na esquina.

Então, seu companheiro também adoeceu. Isolou-se no quarto, enquanto ela, pela fresta da porta, empurrava o prato de macarrão. Depois, sentavam-se, cada um de um lado da madeira fria. Perdiam-se em tentativas de palavras, interrompidas por longos e sóbrios silêncios. Seus olhos corriam pelo corredor. Observava as sombras na parede da cozinha, como se tentassem invadir o apartamento. Encolhia os tornozelos debaixo de si e, no frio do piso, deixava as lágrimas molharem os joelhos. Enxugava o rosto com o dorso da mão, soltava um boa-noite, tocava a fórmica e cambaleava até a cama.

No dia seguinte, tudo recomeçava. Era hora de fazer algo.

Na primeira manhã fria de outono, decidiu abandonar o trabalho. Comunicou irredutível aos patrões, enquanto escutava as monótonas sugestões alternativas: férias, descanso, afastamento… Nada disso servia. Só a demissão traria o caráter definitivo que ela precisava impor a alguma parte de sua vida tão incerta.

Ao longo dos vinte dias seguintes, as horas se arrastaram enquanto organizava o trabalho e as tarefas que deixaria para os colegas. Criou tabelas, procedimentos — tudo com a costumeira perfeição que a resgatava das dúvidas do dia seguinte. Ao longo daqueles dias, consultou especialistas, aviou receitas, lidou com melhoras e recaídas. Recebeu o consolo dos amigos e familiares, mas seu olhar traduzia o desespero onde sua alma habitava.

Chegou o dia da despedida. Imaginei que seria bom fazer uma pequena homenagem. Com flores, talvez.

Procurei uma floricultura, sem sucesso, até me lembrar que, ali perto do cemitério, certamente haveria alguma. E, no fim das contas, flores de perto do cemitério são flores como quaisquer outras, que florescem e alegram o coração de qualquer cidadão.

Entrei. Uma moça silenciosa me atendeu.

— Bom dia. Gostaria de flores para uma pessoa viva.

— Claro — respondeu, apontando alguns arranjos na extremidade da loja.

Escolhi um bonito buquê. Enquanto ela o preparava, encontrei um grande cartão colorido.

Deixei o buquê no carro e fui ao escritório. Conversei em separado com cada colega, contei que aquele seria o último dia de Poliana e pedi que escrevessem algumas palavras de carinho no cartão.

Horas depois, o cartão voltou às minhas mãos. Abri-o e vi o papel coberto de palavras espremidas, tentando caber. Fui lendo. As primeiras lágrimas brotaram dos meus olhos. O amor contido naquelas palavras me comoveu. Pessoas que nunca imaginei que escreveriam algo, colocaram ali emoções sinceras, carinho, compreensão. Havia de fato amor no coração daqueles colegas.

Comovido, combinei com Benício: eu mesmo entregaria o presente em particular.

Entrei na sala de Poliana. Ela virou o olhar. Coloquei o buquê sobre a mesa. Tentei falar, mas os soluços vieram. Atirei-me em seus braços, em prantos. Não por perder uma secretária. Mas por ver minha amiga partir, em meio a tanta dor, sem que eu tivesse conseguido ajudá-la.

Sem saber direito o que fazer, ela me abraçou. E de repente, eu era consolado pela pessoa mais triste que eu conhecia. Era possível ser superado na tristeza? Existia uma tristeza definitiva? Quem seria, afinal, a pessoa mais triste do mundo? Como se mede a tristeza?

Essas perguntas não foram ditas, mas Poliana parecia percebê-las.

Foi então que eu disse:

— Me dá uma dessas pílulas que o psiquiatra te deu, vai?

Ela riu. Riu pela primeira vez em tanto tempo. E eu senti que ela poderia sair dali e, um dia, voltar refeita.

Entre soluços, insisti:

— Tá vendo como você ainda consegue rir? Você vai ficar bem, Poliana. Você consegue, menina!

Pela primeira vez, ela pareceu acreditar. E no final daquela tarde, com um discreto pedacinho de sorriso no canto do rosto — lindo e dolorido — partiu confiante de que teria, sim, uma chance.



Você pode escutar esse texto em meu podcast no Spotify clicando aqui.



 

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Finalmente te amo, pai.

Empurrei devagar a cadeira de rodas, presente de uma amiga querida, vencendo as irregularidades da calçada de Itararé até pararmos em frente à praia. Uma brisa suave soprava do mar, trazendo umidade e calor. Estacionei a cadeira e me sentei no banco, de frente para ele. Falei sobre o tio Alfredo, sobre a tia Madalena, e ele apenas aquiesceu com um leve sorriso. Então agarrou os aros da cadeira e iniciou pequenas manobras, se esforçando para movimentar a engenhoca. Fiquei observando, espantado — estava acostumado com sua flagrante passividade. Finalmente, ele agia. Perguntei se tinha gostado da cadeira. Ele fez que sim com a cabeça, num gesto previsível dentro de seu universo de poucas palavras. Mas me surpreendeu outra vez, comentando que era boa… porque andava com medo de cair.

Concordei formalmente, mas dentro de mim uma surpresa imensa se materializou. Pela primeira vez na vida, eu o via confessar um medo. Ele, que sempre fizera questão de deixar uma impressão de invencibilidade inabalável, sempre acompanhado do eterno bom humor, com toques de ironia e arrogância… finalmente admitia um medo. Seu medo.

Poderia ter feito isso antes, Seu Fernando. Para quê demorar tanto até admitir que você é apenas humano?

E como humano, tentou ser o melhor pai que conseguiu. Mostrou seu amor das maneiras mais estranhas: se, por um lado, sua generosidade era flagrante, um estranho véu de violência pairava sobre muito do que fazia. Era o seu método. Ele estava se esforçando e acreditava nele.

É claro que, da minha parte, muito desse método era reprovável. Levei tempo para me desvencilhar da lembranças da dor dos tapas, fingir esquecer o medo dos gritos, a tensão dos seus passos ressoando no corredor de casa… mas acho que consegui.

Vi que, se não o perdoasse, entendendo a sua maneira de ser, a mágoa me corroeria para sempre. Então, escolhi recuar. Escolhi olhar para as “boas coisas”.

Ele me ensinou a apertar parafusos, martelar pregos, torcer arames, cortar e soldar fios. Me apresentou ao mundo dos carros de corrida, das marcas de automóveis, do futebol (que nunca consegui gostar), das antenas e transceptores do radioamador — e, se não fosse por isso, talvez eu nunca tivesse me tornado tão fluente em inglês.

Ele me ensinou a dirigir e, com 15 anos, eu conduzia seu caminhão carregado com quatro toneladas de tambores de latão e dois trabalhadores grandalhões ao meu lado.

Ele me ensinou a não ter medo de altura. A não ter medo dos desafios. A não ter medo do amanhã.

Com ele, aprendi a gostar de mim mesmo. Aprendi que eu poderia ser quem e o que eu quisesse ser.

Entre tapas na orelha, brigas de trânsito e o claro desprezo pelos mais fracos, ele também me valorizou, me respeitou, confiou em mim.

Com o tempo, me tornei adulto — e o “pai” gradualmente virou o “Seu Fernando”. E o filho se tornou confidente, companheiro de profissão, de vida.

Aprendi que meu estúpido pai também era meu maravilhoso pai. 

Dentro do carro, para um raro passeio pela avenida, mandei que ele apertasse o cinto e segui em frente. Parado no semáforo, olhei para sua mão esquerda encolhida sobre a perna. Tomei-a suavemente entre as minhas.

Abri seus dedos, acariciei sua palma e fui lendo, curioso, as débeis linhas. Virei a mão, passei os dedos pela pele fina que cobria os ossos.

A luz verde apareceu e acelerei, segurando o volante. Alcancei o celular e coloquei “Sapore di Sale” no Spotify. Abri os vidros e, deslizando a 25 km/h, tomei a orla do Atlântico, enquanto a brisa suave invadia o carro.


Trocamos um olhar incógnito, mas que, para mim, só significava uma coisa: eu já te perdoei, pai. Agora é hora de dizer que te amo.

domingo, 7 de março de 2021

Vamos ser pais?

VAMOS SER PAIS?

Foi a pergunta que rompeu a rotina daquela manhã. Só consegui olhá-lo nos olhos e abrir um sorriso. Era mais um sorrir que sim, do que um sorrir de “Ficou louco?”. Já havíamos viajado tanto, e tantas viagens haveriam por vir, então por que não embarcar nessa nova aventura? Durante os sete anos que havíamos vivido juntos, parecia que tínhamos sincronizado muito bem nossa vida dividida entre os dois. Aos poucos fomos aprendendo mais e mais a respeito de nós mesmos e da arte de conviver com outra pessoa. É algo parecido com uma locomotiva sobre os trilhos da vida, cada um de nós é uma dessas composições motorizadas, capaz de rodar pelos trilhos puxando seus vagões e dirigir-se ao seu destino. Quando duas pessoas decidem viver juntas, duas dessas máquinas se conectam, tornam-se capazes de subir uma montanha ou puxar uma quantidade maior de vagões, dividindo as forças, uma ajudando a outra.

É nessa hora que fica claro que ao dividir sua vida com outra pessoa, projetos que normalmente seriam muito difíceis de engajar sozinho, tornam-se factíveis. Algo como fazer uma viagem incrível, construir uma casa, ou até mesmo, criar um filho. Não que sozinha, a locomotiva não teria forças para subir montanhas ou puxar muitos vagões, mas quando você sabe que é possível dividir forças, o peso da responsabilidade também fica dividido e tudo fica mais fácil.

Mas as ferrovias variam, algumas possuem mais ou menos curvas, outras mais subidas e descidas, cruzam cidades, precisam parar em mais estações. E à moda das ferrovias, nossas vidas percorrem caminhos mais ou menos complexos. Talvez uma possível complexidade que vale a pena comentar é o fato de sermos um casal diferente da maioria, pois somos dois caras (poderíamos ser duas garotas) e vivemos num país homofóbico, bastante homofóbico por sinal. 

Mas a homofobia ainda não tinha nos incomodado diretamente, talvez por conta de nossa aparência truculenta, dois carecas fortões, que de uma forma ou de outra, ajuda a despertar alguma cautela nos mais impulsivos, tínhamos tido uma história de tranquilidade em todos os lugares que havíamos frequentado. Viajamos por países comunistas, onde dividimos a mesma cama em todos os hotéis, a mesma mesa em todos os restaurantes e o mesmo espaço em todas as calçadas. Não tínhamos recebido nada diferente de sorrisos.


Tenho a impressão de que a palavra-chave desse aparente sucesso é auto aceitação. A verdade é que pessoalmente nunca me senti desconfortável como gay, nunca estive no armário de fato, pois enquanto namorava garotas, até o início de minha vida adulta, sequer percebia que de fato eu preferia estar com rapazes. Quando descobri que me interessava mais por eles, simplesmente virei naquela direção e segui com a vida. Com o Alejandro, também tinha sido assim.  


É mais ou menos como gostar de sorvete de chocolate, você passa anos e anos de sua vida curtindo os sorvetes de chocolate belga, africano, meio amargo, ao leite, com ovomaltine ou chocolate chip... tudo bem, vive feliz e curte a festa. Até que um dia, alguém te oferece um sorvete de morango. Você reluta um pouco, oferece certa resistência como é natural quando aparece algo novo para ser enfrentado, mas a pessoa insiste e você termina experimentando o tal sorvete de morango. Você experimenta, percebe o sabor e as texturas, os pedaços de morango, a cor e o cheiro. Então sua cabeça dá um estalo, algo acontece e você se olha no espelho questionando: “Onde foi que eu estava com a cabeça e ter preferido sorvete de chocolate até hoje?”. Então, sem maiores dramas, você passa a ser um voraz consumidor de sorvete de morango e todas suas variações. Logo você se vê usando uma camiseta de sorvete de morango e fica orgulhoso de ter tomado uma decisão em sua vida, uma decisão que poderia ter acontecido há muito tempo, apenas era uma questão de ter experimentado a nova possibilidade. Você não se lamenta pelo “tempo perdido”, afinal não houve tempo perdido, apenas houve uma outra variedade de sorvete, de resto, tudo segue como antes. Você continua comendo pizzas, churrasco e tomando cerveja. Você continua mergulhando no oceano, voando de parapente, tocando um instrumento ou montando um modelo de plástico. A única coisa que de fato mudou é que o sorvete de chocolate vai sendo preterido, vai ficando cada vez mais, como uma bicicleta velha que você não curte mais e encosta em algum canto da garagem. 

Talvez por considerar minha sexualidade apenas um dos muitos aspectos de mim mesmo, e não ter me tornado um tipo de fanático com relação a isso, eu tenha me habituado a lidar com essa parte de mim de uma maneira suave. Quando algo é importante demais, a gente parece ficar mais preocupado e carrega aquilo com mais tensão. Essa suavidade me deu segurança e a sexualidade se tornou apenas mais um detalhe sobre mim mesmo. É um detalhe, mas pode ou não ser bem aceito, então você age com a precaução natural que teria com qualquer outro aspecto, mais ou menos como ter o cuidado de não ir ao estádio de futebol com a camiseta da torcida do outro time.

Eu não tinha imaginado que um dia iria me tornar pai, isso acontece, acho, com a maioria dos casais homoafetivos. É uma quebra de paradigma, afinal existe a figura do casal papai e mamãe, entalhada em nossa cultura. O macho no sofá com a cerveja e o futebol e a mulher na cozinha com as crianças ao redor, ranho escorrendo, cachorro latindo, bonecas jogadas no velho tapete, latas vazias e restos de comida na mesa de centro. Lendo essa frase assim, parece até piada, mas essa cena está no imaginário popular, impressa na cultura da gente, geração após geração. Então, arrancar essa gravura de dentro da sua antiga moldura e trocar por outra onde aparecem dois carecas revezando um bebê fofo enquanto o outro esquenta a mamadeira parece algo difícil de acontecer. Talvez um pouco porque me encantan quebrar paradigmas eu tenha dito que sim com aquele sorriso e confirmado com um “ora, então vamos ser pais?”.

A ideia tinha tudo para dar certo porque havia uma base fundamental vivendo em nós naquele momento. Era o amor que sentíamos um pelo outro, o amor que sentíamos pela intensidade de viver uma fascinante aventura após a outra e é claro, o amor completamente eterno e incondicional que explodiu como fogos de artifício que serenam prata sobre a escuridão da praia, como a aparição de uma fada de Grimm, envolta em luz, tule e estrelinhas, que lança um feitiço, um passe de mágica sobre nossos corações diante da mais remota notícia de que poderia haver uma criança, pendurada no bico de uma valente cegonha, percorrendo florestas e cidades, voando entre nuvens ensolaradas, tempestades implacáveis e oceanos bravios, a caminho de nossas vidas, a caminho de nosso ninho, a caminho de nosso lar.

 

Quando eu trabalhava no navio

Sem saber, entrei naquela enfermaria da UTI pela última vez. Percorri o corredor iluminado com aquele branco intenso, quase antisséptico, e ...